"Porque ninguém me ama, é verdade.
Não como você"
trecho de 'Sour Times'
Tenho que admitir que me pareceu estranho num primeiro momento.
Aquilo parecia sem vida.
Na época eu lembro de ter definido aquilo como música de plástico. Era como se só a voz ali tivesse algum sinal humano. O resto era artificial, eletrônico, duro, sintético.
Aos poucos fui derrubando minha barreira criada nas primeiras audições e, além de entendendo melhor a música do Portishead, acabei sentindo-a melhor também. Ela tinha um elemento que me agradava muito, cria dos 80 como sou, que era aquela melancolia e escuridão do som dos góticos e similares; a voz da vocalista, Beth Gibbons, então, era na maioria das vezes pura dor e angústia, mas demorei um pouco para assimilar a transposição daquele tipo de som que eu curtia para os novos tempos que se apresentavam ali na metade dos anos 90. No fim das contas, provavelmente os elementos que eu mais relutara em aceitar, inicialmente, eram os que mais davam mérito ao som quase que único do trio de Bristol: as batidas secas, as programações, os scratches, os samples. Costuma-se definir o Portishead como uma banda de trip-hop mas, tão amplo de influências, referências e criatividade, considero hoje, já apaixonado por seu trabalho, limitado enquadrá-los apenas neste gênero.
"Dummy" seu álbum de estreia vai do jazz ao country, passando por funk, trilhas de filmes, tango, soul, hip-hop com naturalidade, sempre com samples inteligentes e criativos utilizados em colagens espertíssimas.
"Mysterons", a primeira do disco e a música que me fez começar a gostar de Portishead, apresenta-nos uma base fantasmagórica conduzida sobre uma percussão eletrônica à militar e um vocal levado entre a doçura e a angústia; um arpejado em linhas de tango abrem a boa "Sour Times" que traz um pouco mais de ritmo, mas não abre mão do pessimismo (" 'cos nobody loves me..."); em "Strangers" Geoff Barrow apronta com uma genial repetição que lembra um telefone ocupado, acompanhado por uma guitarra bem distorcida; e o hip-hop chique "It Could be Sweet" pega mais leve e até poderia ser doce se não fosse sua letra amarga.
Scratches enlouquecidos, o vocal bem agudo e a batida 'de lata' marcam "Numb", uma das músicas responsáveis pela projetação da banda; um órgão quase monocórdio caracteriza "Wandering Stars"; "It's a Fire" é uma balada melancólica de vocal dolorido; "Roads" que parece estar ressoando o tempo inteiro é uma das que soa mais tristes do álbum e Beth Gibbons chega a parecer estar a ponto de se desfazer em lágrimas chegando ao final com o vocal rouco quase se desintegrando; "Pedestal" introduzida com um batidão alto e pesado, é bem jazz e traz uma linha de baixo sampleada bacanérrima, nesta com a voz soando mais mecânica que nas demais; e "Biscuit", com seu ar misterioso e repleto de dramaticidade, tem destaque para os trabalhos de samples, um de orquestra que permeia praticamente a música toda, e um de vocal ("I'll never fall in love again") que compõe e se integra à canção de uma maneira magnífica.
O disco encerra-se com a ótima "Glory Box", composta a partir do sample da música "Ike's Rap II" de Isaac Hayes, que depois de todos os clamores suplicantes de Beth Gibbons, de um solo estridente e melancólico de guitarra de Adrian Utley, é finalizada com uma batida grave e estrondosa como que imitando um coração batendo.
É, eu estava errado. Aquilo não era música de plástico.
Ali havia vida.
Ali existia um coração batendo.
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FAIXAS:
1."Mysterons" – 5:02
2."Sour Times" – 4:11
3."Strangers" – 3:55
4."It Could Be Sweet" – 4:16
5."Wandering Star" – 4:51
6."It's a Fire" – 3:48
7."Numb" – 3:54
8."Roads" – 5:02
9."Pedestal" – 3:39
10."Biscuit" – 5:01
11."Glory Box" – 5:06
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Ouça:
Portishead Dummy
Cly Reis
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