Brasil com "H"
Quatro capas de "Brasil", lançado por Warner, Philips, Universal e em edição conjunta com o disco imediatamente anterior de João, "Amoroso" |
"Quando dizem que João é o grande mestre inventor da bossa nova, não é gratuita essa denominação. Ele, com essa capacidade aglutinadora de vários elementos musicais para uma direção especial, foi o grande inventor desse conjunto extraordinário".
Gilberto Gil
"Todo e total respeito e reverência a essa entidade da música brasileira".
Maria Bethânia
"A bossa nova tem sido, de fato, para nós como para estrangeiros, o som do Brasil do descobrimento sonhado".
Caetano Veloso
Definir um povo através da música nem sempre é uma tarefa
fácil. Países como Portugal e seu fado ou a Argentina com o famoso tango talvez
sejam afortunados por conseguirem essa identidade sonora, o que certamente lhes
é favorecido pelas pequenas dimensões territoriais e a formação social uniforme – resultante, não
raro, de alguma dose de tragédia. Porém, esse aspecto ganha complexidade quando o
povo em questão é diverso e a jurisdição bem maior, tal como ocorre com os
continentais Estados Unidos e Brasil. Assim como os norte-americanos tem tanto
o jazz quanto o country, o rock ou o blues, o Brasil, obviamente, não é só
samba. O Sul da milonga difere brutalmente do Nordeste do baião, do forró e do
maracatu, igual ao carimbó do Norte ou o sertanejo do Centro-Sul. O que dizer
então, quando se aprecia as peculiaridades culturais – e musicais, por
consequência – entre os estados? A riqueza mestiça de Minas, o balanço leve da Bahia, a
realeza malandra carioca, a dureza concreta de São Paulo...
O que abarcaria, então, um conceito minimamente consensual que representasse o ser brasileiro para dentro e para fora dos limites fronteiriços? A resposta talvez esteja justamente no gênero que efetivou esse protagonismo interna e externamente. O estilo que achou a "caixa de munição" ideal e sintética do Brasil: a bossa nova. João Gilberto, promotor da revolução ao inferir sua estética infalível de canto e instrumental (e espírito) às harmonias jobinianas já suficientemente revolucionárias, o ponto perfeito entre a tradição e o moderno, acreditava nesse poder simbólico da bossa nova. Depois do seu advento, com todos os seus protagonistas e personagens (Tom, Vinicius de Moraes, Johnny Alf, Antônio Maria, Carlos Lyra, Dolores Duran, entre outros) o Brasil, em recente industrialização pois ainda fortemente rural e mero exportador de matéria-prima naquela metade de século XX, nunca mais foi o mesmo. Entrou, definitivamente, no mapa da produção intelectual mundial.
Além disso, João completava 50 naquele 1981. Era hora de celebrar a própria trajetória, bem como a do estado e do país que lhe fizeram artista. Isso ajuda a explicar porque João, sem pudores, chamou para gravar consigo os conterrâneos baianos e súditos Caetano Veloso, Gilberto Gil e Maria Bethânia um disco corajosamente chamado "Brasil". A "estação primeira do Brasil", aquela que o destino quis que recebesse o navio descobridor impregnado de Velho Mundo, juntava seus mais célebres porta-vozes para cantar-lhe, o Brasil, nos seus versos.
O autor de “Bim Bom”, em sua inteligência e sensibilidade supremas,
sabia muito bem o que queria com esse projeto, que completa 40 anos de
lançamento em 2021. Tanto que é ele mesmo quem assume pela primeira vez na
carreira de então mais de 30 anos e onze discos gravados a própria produção do
álbum. E o faz com total domínio, nada tão complicado para alguém dotado de
ouvido absoluto e atento aos dedos hábeis de craques das mesas de som com quem
trabalhou, como Tommy LiPumma, Aloysio de Oliveira e Creed Taylor. O
repertório, escolhido a dedo, igualmente, saiu de sua cabeça, que desde os anos
50 propusera uma releitura constante e modernizante (mas também arraigada nos
matizes de um Brasil complexo e multicultural) da música através das notas
dissonantes. Era samba-de-roda, era batuque de morro, era bloco de escola. Mas
era também o choro, a modinha, a seresta, a valsa e uma pitada da jazz norte-americano
para os gringos ficarem boquiabertos com tamanha musicalidade vinda dos trópicos.
Os manos Caê e Bethânia admiram o mestre João ao vivo exibindo sua arte: momento único |
A fórmula é repetida com igual brilhantismo em “Bahia com H”, samba dos anos 40 escolhido por motivos óbvios, e, ainda mais bairrista. “Milagre”, a versão da fantasia praieira de Caymmi, artista largamente reverenciado por todos eles, é muito mais que uma faixa, mas um acontecimento único na história da música brasileira. O trato do violão e da voz de João à rica melodia e a perfeita harmonia da canção, estarrece. Gil, cujas guias de Logunedé, Jimi Hendrix e Luiz Gonzaga carrega sempre consigo no pescoço, elabora o canto com seu gingado gracioso. Já a voz de cristal de Caetano parece acariciar as notas, joão-gilbertiando o que há de bom.
A união de vozes do trio volta para interpretar uma deliciosa versão de Haroldo Barbosa para o standart “All of Me” num jazz rebatizado nas águas de Senhor do Bonfim. Arranjo, produção, timbrística, tudo impecável. E quando João percebeu ser necessário uma voz feminina? Chamou outra baiana, claro. Mas nada de recrutar alguma falsa delas, mas sim Bethânia, que faz dueto com ele e com os parceiros de Doces Bárbaros no brejeiro samba “No Tabuleiro da Baiana”, outra de Ary Barroso. Uma única participação da poderosa voz da Abelha-Rainha, mas marcante e significativa. Aliás, como em todo o disco – e a bossa nova em si –, mínimo é mais.
A faixa de encerramento, "Cordeiro de Nanã", é um comovente mas breve canto, quase uma vinheta, para a orixá da sabedoria, a que domina os trânsitos entre a vida e a morte. Impressionante como uma canção pode ser tão singela e penetrante: pouco menos de 1 minuto e meio de uma das coisas mais bonitas da música brasileira. E com ela se encerra este sucinto mas acachapante disco: com sons que parecem misturar-se com o ar, que parecem soprados pela natureza, que parecem emergidos das águas profundas da mais velha das Yabás. Sabedoria é o que define.
Ouvir “Brasil”, indepentemente da época, faz com que, pelo menos durante sua pouco menos de meia hora, acredite-se que este é o Brasil que deu certo, seja para dentro de seus domínios como para fora dele. Os germânicos legaram ao mundo a sintaxe da música clássica, os norte-americanos forjaram o arrojado jazz, mas não é nenhum exagero dizer que o mais sofisticado dos gêneros musicais modernos tem pele mestiça e se chama bossa nova. Internamente, faz-se ainda mais provável essa tese. Há Villa-Lobos, o chorinho e a tentativa legítima do movimento Armorial de cunhar um estilo genuinamente brasileiro. Mas ninguém realizou esse sonho como João e seu violão. Seu Brasil foi a Bahia, de onde ele veio e invariavelmente voltava para lá. A Santa Bahia Imortal a qual ele ficava contente da vida em saber que era Brasil. Um Brazyl, aliás, que conheceu o Brasil. Um Brasil que foi, sim, ao Brazil. Aquele mais cosmopolita e contemporâneo, mas basicamente folclórico, popular e profundo, como as águas protegidas por Nanã Buruquê. Caetano tem razão: definitivamente, depois dos acordes dissonantes emanados do peito dos desafinados, a nossa vida nunca mais foi igual.
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documentário "Brasil", de Rogério Sganzerla (1981)
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2. "Disse Alguém (All of Me)" (Gerald Marks, Seymour Simons – versão: Haroldo Barbosa) - 5:18
3. "Bahia com H" (Denis Brean) - 5:13
4. "No Tabuleiro da Baiana" (Ary Barroso) - 4:50
5. "Milagre" (Dorival Caymmi) - 4:57
6. "Cordeiro de Nanã" (Dadinho, Mateus) - 1:20
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Daniel Rodrigues
Maravilha de disco! Maravilha de texto!
ResponderExcluirO texto talvez seja até melhor que o disco,rs.
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