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quinta-feira, 8 de agosto de 2024

Caetano Veloso & Chico Buarque - "Caetano e Chico Juntos e ao Vivo” (1972)



por Márcio Pinheiro

"Eu gosto muito de você, Caetano, porque você me desconcerta."
Chico Buarque

No final de 1972, Chico Buarque estava na Bahia, ao lado de Caetano Veloso - que completou 82 anos no último dia 6 - para a realização de um show que dava fim a qualquer boato que colocasse os dois artistas em campos opostos. Registrado pela gravadora Philips, o show se transformaria em disco que seria lançado ainda antes do Natal.

O momento histórico reunindo os dois músicos – numa triste coincidência, na mesma noite em que o poeta e jornalista Torquato Neto se suicidara no Rio de Janeiro – mostra em pouco mais de meia hora de gravação como a afinidade entre eles era imensa.

Com um repertório reunindo composições de Chico (“Bom Conselho”, “Quando o Carnaval Chegar” e “Partido Alto”) e de Caetano (“Tropicália” e “Esse Cara”), com os dois ora se alternando, ora dividindo os vocais, o disco já nascia como relato  histórico caráter antológico. A aparente separação em algumas canções era soterrada na abertura do lado B, com Caetano convidando Chico em “Eu quero dar o fora/E quero que você venha comigo”, em “Você não Entende Nada”, e Chico aceitando o convite e respondendo com “Todo dia eu só penso em poder parar/Meio-dia eu só penso em dizer não/Depois penso na vida pra levar/E me calo com a boca de feijão”, em “Cotidiano”.

Como foi bem observado pelo crítico Julio Hungria em texto no JB, a gravadora apenas se descuidou ao não dar ao evento a condição de caráter histórico, omitindo do registro diálogos, frases de bastidores, confidências que retratassem a importância do encontro. “É um disco predestinado”, definia Hungria, sem esquecer que a censura se fazia presente, como em "Bárbara", de Chico e Ruy Guerra, em que a letra fala de uma “paixão vadia, maravilhosa e transbordante como uma hemorragia” e onde os cortes da Censura podem ser adivinhados apesar da habilidade dos técnicos de gravação. Ou ainda em “Ana de Amsterdã”, dos mesmos autores, em que, num dos versos, a palavra “sacana” da versão original virou “bacana”

Trecho do livro "O Que Não Tem Censura Nem Nunca Terá", de Márcio Pinheiro

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FAIXAS:
1. "Bom Conselho" (Chico Buarque) - Intérpretes: Chico Buarque - 02:00
2. "Partido Alto" (Chico Buarque) - Intérpretes: Caetano Veloso - 05:32
3. "Tropicália" (Caetano Veloso) - Intérpretes: Caetano Veloso - 03:31
4. "Morena dos Olhos D'Água" (Chico Buarque) - Intérpretes: Caetano Veloso - 02:32
5. "A Rita" (Chico Buarque)/ "Esse Cara" (Caetano Veloso) - Intérprete: Caetano Veloso - 03:35
6. "Atrás da Porta" (Chico Buarque/Francis Hime) - Intérpretes: Chico Buarque - 02:44
7. "Você Não Entende Nada" (Caetano Veloso)/ "Cotidiano" (Chico Buarque) - Intérpretes: Chico Buarque/Caetano Veloso - 07:01
8. "Bárbara" (Chico Buarque/Ruy Guerra) - Intérpretes: Caetano Veloso/Chico Buarque - 03:50
9. "Ana de Amsterdam" (Chico Buarque/Ruy Guerra) - Intérpretes: Chico Buarque - 01:45
10. "Janelas Abertas Nº 2" (Caetano Veloso) - Intérpretes: Chico Buarque - 01:56
11. "Os Argonautas" (Caetano Veloso) - Intérpretes: Caetano Veloso - 03:23

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OUÇA O DISCO:

segunda-feira, 27 de abril de 2020

Caetano Veloso - "Caetano Veloso" (1971)



"Esse [disco] é deprimidérrimo. É o primeiro do exílio em Londres e o primeiro disco em que toco violão. Os ingleses me liberaram para o violão. Achavam lindo o meu jeito de tocar e os brasileiros achavam horrível. Se eu não tivesse sido preso e exilado, talvez nunca tocasse violão num disco." 
Caetano Veloso, em 1991

"Um santo francês disse uma vez que é tão perigoso para um escritor experimentar um novo idioma quanto é para um crente experimentar uma nova religião: ele pode perder a alma.Caetano adotou o inglês para as letras deste álbum para converter suas primeiras impressões de viver em um país estrangeiro."
Texto de apresentação na contracapa do disco

Ausência, isolamento, solidão. Exílio. Esta foi a condição de Caetano Veloso ao gravar o álbum de 1971. Em tempos de coronavírus, onde o isolamento nos fez reféns, este álbum nos serve como um bálsamo para abrandar e até compartilhar dos sentimentos de falta, ao menos refletirmos sobre.

“Caetano Veloso”, o álbum, é um disco triste, porém lindo. Muito lindo. E me fez pensar no dito de que “é no desespero que parimos nossas obras mais lindas”. Caetano estava depressivo, ao encararmos sua feição na capa do disco, envolto em um casaco de pele ele nos fere com seu olhar cansado, triste, longínquo.

“A Liitle More Blue”abre o álbum, melancólica, uma carta de saudades do Brasil. O Brasil do “ame-o ou deixe-o”, corrompido por uma falsa promessa de crescimento. Caetano foi vítima do nacionalismo e conservadorismo que, juntos, ceifam o pensamento crítico e a liberdade de expressão. O álbum segue com “London, London”. Linda, uma bela melodia que canta a liberdade numa terra estranha. Porém, não é a casa, não é a Bahia: é o exílio.

“Maria Bethânia”, a terceira música, uma carta para sua irmã que está no Brasil. Aqui Caetano brinca com o diminutivo de Bethânia (Beta) com a palavra em inglês “better”. “Melhorando, Melhorando, Beta, Beta, Bethânia”. No que antecedeu a gravação do disco, Bethânia havia solicitado aos órgãos de repressão brasileiros a possibilidade de Caetano vir ao Brasil para o aniversário de casamento dos pais, o que foi liberado. A música mantém um clima de repente nordestino, que se encaixou perfeitamente na levada samba hipnótica. Sendo que, neste álbum, Caetano tocou violão em todas as músicas a pedido dos produtores ingleses, que adoravam seu estilo de tocar.

“If You Hold A Stone”: Caetano Veloso criou esta música a partir da obra “Nostalgia do Corpo”, de Lygia Clark, realizada na II Bienal da Bahia, em 1968, onde uma pessoa segura uma pedra e outra pessoa faz um abrigo, sem se tocarem. Pode ser bom então tentar resgatar algumas lições deixadas por Lygia Clark: a casa é o corpo, existe cuidado sem contato, é possível exercer o sensível como uma expansão compartilhada da duração e da presença.

“In the Hot Sun of Christhmas Day”, é a história da prisão de Caetano e Gil em 1968, no advento do AI-5. “Asa Branca” fecha o disco, na minha opinião é um lapso do interior nordestino conectado ao cosmos. Caetano universal. Sideral.

Uma curiosidade: no aniversário de 70 anos de Caetano, um esforço foi feito pelas redes sociais para descobrir quem no mundo tinha a edição inglesa deste disco gravado em Londres. Porque a edição brasileira tem um corte em “A Little More Blue” feito pela censura. Caetano fazia uma menção à (atriz argentina) Libertade Lamarque e a censura pensou ser que Caetano estava pedindo liberdade para Lamarca.

Se para preservar a saúde de si e dos outros será necessário mantermos distância, pode ser também propício criar novas formas de contato entre nós – ainda que de longe. Em termos de distância, Caetano Veloso canta sua saudade do Brasil e, obviamente, da Bahia, estando exilado em Londres quando ao lançamento deste disco, que é o meu favorito na discografia dele.

D A N I E L   V I C I N I


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FAIXAS:
1. "A Little More Blue"
2. "London, London"
3. "Maria Bethânia" 
4. "If You Hold A Stone"
5. "Shoot Me Dead"
6. "In The Hot Sun Ff A Christmas Day" (Gilberto Gil/Caetano Veloso)
7. "Asa Branca" (Luiz Gonzaga/Humberto Teixeira)
Todas as composições de autoria de Caetano Veloso, exceto indicadas


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OUÇA O DISCO:


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Daniel Vicini, natural de São Marcos (RS) é, desde sempre, apaixonado por artes plásticas ou simplesmente arte. Estudou Artes, mas não chegou a se formar,, pois no fim, num delírio de êxtase, pensou não ser um diploma que o fizesse o artista que era/queria ser. É um receptor universal, destro, mas de esquerda. Hoje pode dizer que suas paixões na vida são as artes plásticas, o teatro e a música. Era uma vez um artista contemporâneo e os abismos que arrastava por onde ia.

quinta-feira, 15 de abril de 2010

Caetano Veloso - "Transa" (1972)

"Chamei os amigos para gravar em Londres(...) "Transa" foi  meu primeiro disco de grupo, gravado quase como um show ao vivo".
Caetano Veloso



 No embalo do meu retorno a Londres, deu vontade de falar de um dos grandes discos brasileiros de todos os tempos, intimamente ligado à capital inglesa: “Transa” de Caetano Veloso, de 1972.
Gravado no exílio do cantor na época da ditadura militar, álbum é uma fantástica mistura de sons, tendências, línguas e costumes. Tem regionalismos junto com rock’n roll, inglês com português, gíria com poesia, berimbau com guitarra... Tudo resultado de uma criatividade que estava prenhe, precisando ser expelida, manifestada. Uma vontade de ser brasileiro mesmo estando fora. E parece que é exatamente isto que Caetano consegue transmitir quando mistura as línguas e linguagens: assimilar, experimentar, sem perder suas raízes.
O início, com “You Don’t Know Me”, uma balada que vai se encorpando aos poucos, tem sua letra em inglês toda “invadida” por pedaços em português, como o trecho de “A Hora do Adeus” de Luiz Gonzaga, e ‘Saudosismo” do próprio Caetano, com a voz de Bebel Gilberto.
“Nine Out of Ten” que a segue, é espetacular em sua sonoridade toda cheia de embalo e ritmo. Caetano mesmo afirma ser esta sua melhor letra em inglês. Em inglês, sim, mas, assim como na anterior, com incursões em português, mas nesta, genialmente mais integradas na letra (“I’m Alive and VIVO, MUITO VIVO, VIVO, VIVO”). Caetano diz sobre esta música: “Tem a Nine out of Ten, a minha melhor música em inglês. É histórica. É a primeira vez que uma música brasileira toca alguns compassos de reggae, uma vinheta no começo e no fim. Muito antes de John Lennon, de Mick Jagger e até de Paul McCartney. Eu e o Péricles Cavalcanti descobrimos o reggae em Portobelo Road e me encantou logo. Bob Marley e The Wailers foram a melhor coisa dos anos 70.”
Caetano utiliza-se da poesia barroca de Gregório de Mattos para compor “Triste Bahia”, a mais experimental do disco, repleta de idas e vindas sonoras, regionalismos, linguagem coloquial, versos de folclore e cantigas populares.
Em “It’s a Long Way”, uma doce e melancólica canção, minha favorita do disco aliás, volta a se utilizar muito fortemente do recurso bilíngüe, depois dos primeiros versos totalmente em inglês, passa para a língua natal novamente com linguagem coloquial, dísticos populares e jogos de roda (“os olhos da cobra verde/ hoje foi que ARREPAREI/ se ARREPARASSE a mais tempo/ não amava quem amei”)
Sobre “Mora na Filosofia”, de Monsueto Menezes, um samba lento, marcado no violão, Caetano diz: “Mora na Filosofia, que é um grande samba, uma grande letra e o Monsueto é um gênio. Me orgulho imensamente deste som que a gente tirou em grupo".
Segue “Neolithic Man”, que é a que gosto menos no disco e fecha com o ótimo e embalado rock’n roll acústico e curtinho "Nostalgia (That's What Rock'n Roll Is All About)".
O álbum contou com arranjos e participações especialíssimas de amigos que estavam em Londres na época, entre eles Jards Macalé e Péricles Cavalcanti, mas que, curiosamente, por negligência no acabamento gráfico, não foram creditados no encarte original. O fato é que o próprio Caetano faz questão de lembrar estas participações e salientar que elas foram extremamente estimulantes para o trabalho em torno do álbum naquelas circunstâncias de exílio, saudades, solidão; e, ouvindo “Transa”, não é difícil notar o quanto as companhias contribuíram para a qualidade e resultado final da obra.

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FAIXAS:
  1. "You Don't Know Me" (Caetano Veloso) – 3:49
  2. "Nine Out of Ten" (Caetano Veloso) – 4:57
  3. "Triste Bahia" (Gregório de Matos Guerra, Caetano Veloso) – 9:47
  4. "It's a Long Way" (Caetano Veloso) – 6:07
  5. "Mora na Filosofia" (Monsueto Menezes, Arnaldo Passos) – 6:16
  6. "Neolithic Man" (Caetano Veloso) – 4:55
  7. "Nostalgia (That's What Rock'n Roll Is All About)" (Caetano Veloso) – 1:22
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Ouça:
Caetano Veloso Transa


Cly Reis

segunda-feira, 2 de abril de 2018

"Tropicália" ou "Panis et Circencis" - vários (1968)


O Descobrimento do Brasil

“Eu organizo o movimento/ 
Eu oriento o carnaval/ 
Eu inauguro o monumento/
No planalto central do país.”
Versos da canção “Tropicália”, de Caetano Veloso

“SEQUÊNCIA 5 – CENA 9
INTERIOR, NOITE EXTERIOR, DIA, ESTÚDIO DE GRAVAÇÃO. NARA, GAL, GIL, CAETANO, TORQUATO, CAPINAN E OS MUTANTES. FRENTE AO MICROFONE. OBEDECEM AO MAESTRO ROGÉRIO DUPRAT. UNÍSSONO. 
TODOS – As coisas estão no mundo, só que é preciso aprender.
CORTA.”
Trecho do texto do encarte original de “Tropicália”

“Só a ANTROPOFAGIA nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente.“ 
Trecho do Manifesto Antropofágico, de Oswald de Andrade, 1928.


A filosofia antropofágica que o modernista Oswald de Andrade concebeu em finais dos anos 20 traz no cerne uma revolução conceitual cuja difícil assimilação perdura ainda nos dias de hoje. Como criar uma arte brasileira e original ao deglutir, temperado com os sabores tropicais, aquilo que vem de fora? Oswald converteu o ato de canibalismo ameríndio do colonizador numa metáfora de combate ideológico. Noutras palavras, devorar e digerir todas as influências estrangeiras que sirvam para fortalecer a própria cultura e, assim, recriá-la.

Desafiador, por óbvio. Afinal, isso significa, antes de saber identificar o que é de fora, entender o que pertence a si próprio. Complicado de concretizar, ainda mais em terras tupiniquins historicamente subjugadas e inferiorizadas. Houve quem topasse a briga, contudo. E não foi um alguém, mas um grupo. Em 1967, Caetano Veloso e Gilberto Gil, filhos da santa Bahia imortal e seguidores da bossa-nova de João Gilberto, organizaram o movimento e orientaram o carnaval. Sob a égide das ideias oswaldianas, criaram aquilo que pertinentemente se chamou de “Tropicália”, disco e movimento, que estão completando celebráveis 50 anos. Vestidos de parangolés por dentro e por fora, eles, mais os representantes da Paulicéia Desvairada Mutantes e Rogério Duprat, os conterrâneos baianos Gal CostaTom Zé, a carioca Nara Leão o os poetas tão nordestinos quanto universais Torquato Neto e Capinan, fizeram aquilo que o continental, desigual e rico Brasil moderno ensejava: estabelecer uma verdadeira ponte entre o rural e o urbano, a alta e a baixa cultura, o bom e o mau gosto. Vicente Celestino dialogava, sim, com rock britânico, e Carmen Miranda não ficava abaixo da avant-garde. O mesmo para com Luiz Gonzaga em relação à Disney, ou os sambistas do morro à linhagem clássica do Velho Mundo. Tudo junto e misturado. Era mais que um desejo: era uma necessidade.

Caetano e Gil à época do Tropicalismo, as duas principais
cabeças do movimento
De fato, a conturbação sociológica a que os anos 50 e 60 se acometiam não era pouca: Guerra do Vietnã, ameaça de desastre atômico, ascensão das ditaduras nas Américas, Crise dos Mísseis, assassinato de Kennedy, corrida espacial, revolução sexual. No Brasil, se a bossa-nova, a arquitetura de Niemeyer e o Cinema Novo colocavam o País no mapa mundial da produção intelectual – para além apenas da habilidade física de um futebol já bicampeão mundial àqueles idos –, os primeiros anos de Ditadura Militar anunciavam tempos cada vez mais sombrios de censura, perseguições, prisões, vigília, cerceamento e exílio – como acabaria por ocorrer com Caetano e Gil menos de dois anos dali. Os festivais espocavam de euforia e tensão. A cultura de massa começava a fermentar nas telas da tevê. Roberto Carlos, Elis Regina e Wilson Simonal movem multidões. Ao mesmo tempo, pairava no ar um clima de inquietação, medo e incertezas. E a antropofagia cultural caía como uma luva para compreender essa louca realidade brasileira.

“Tropicália” mostrava-se, então, como um acidente inevitável. Não tinha mais como fugir: era ir adiante sem lenço e sem documento enquanto o seu lobo não vinha."Tupi or not tupi", era essa a questão. Os acordes de órgão em clima litúrgico abrem o disco dando uma noção da complexidade que seguirá até o seu término. A missa pagã irá começar! É o início de “Miserere Nobis”, cuja letra de Capinan guarda em seu latim ecumênico ideias revolucionárias de igualdade social (“Tomara que um dia de um dia seja/ Que seja de linho a toalha da mesa/ Tomara que um dia de um dia não/ Na mesa da gente tem banana e feijão”) e de resistência (“Já não somos como na chegada/ O sol já é claro nas águas quietas do mangue/ Derramemos vinho no linho da mesa/ Molhada de vinho e manchada de sangue”).

A influência do rock psicodélico da época está totalmente presente, como na colegam das faixas, igual ao então recente e já referencial “Sgt. Peppers Lonely Hearts Club Band”. Mal “Miserere...” anuncia seu término, já começam a se ouvir estrondos intermitentes. É a percussão martelada de “Coração Materno”, a superversão do seresteiro Vicente Celestino pela ótica tropicalista. Inspirando-se na veia sinfônica dos Beatles (“She’s Leaving Home”, “Eleanor Rigby”, entre outras), mas superando-os em conceito, a música evoca a orquestração carregada de Duprat e o canto emotivo de Caetano para dramatizar (ainda mais!) a canção escrita nos anos 30, redimensionando seu caráter operístico. Novamente, a dialética clássico versus popular. Ao mesmo tempo, a nova leitura moderniza o antigo original, cuja certa breguice esconde um ar tragicômico, dando-lhe um caráter de seriedade que o faz parecer... ainda mais tragicômica! Fina ironia.

É a vez, então, dos Mutantes aparecerem pela primeira vez com “Panis et Circencis”, um dos hinos do movimento e tão importante no repertório que subtitula o projeto. A produção impecável e ousada de Manuel Berenbein põe os acordes do Repórter Esso – noticiário de radio e telejornalismo símbolo da cultura de massa daquele Brasil – antecipando a exótica melodia que vem a seguir, misto de balada medieval com cantata italiana. A letra faz aberta crítica às “pessoas da sala de jantar”, a burguesia alienada apenas “ocupada em nascer e morrer”. Metalinguística, lá pela metade da faixa, o coro de Rita Lee, Arnaldo Baptista e Sérgio Dias é emulado como se o tape tivesse sido desligado. Um segundo momento na música traz solos de flauta e corneta e repetições de versos enquanto o andamento acelera para, em nova interrupção, entrar a ambiência de uma sala de jantar com pessoas à mesa, quando, enfim, tudo acaba sendo engolido de vez por um som agudo. Só no terceiro final, aí que a música acaba realmente. Como numa edição de um filme de Glauber Rocha ou um quadro de Hélio Oiticica, a fragmentação e a descontinuidade que traduziam os tempos confusos de então.

Nunca se vira nada igual na música brasileira (e nem mundial) até então.

Fragmentação na edição de "Terra em Transe", de Glauber Rocha, de 1967

Eis que dá a impressão de que tamanha subversão parece ser superada com “Lindoneia”, um bolero classicamente orquestrado e com a doce voz de Nara, símbolo da bossa-nova e do “bom gosto” consensual na música brasileira. Ledo engano. Inspirada numa tela do artista visual Robens Gerchman – aliás, autor da arte da capa do disco –, “Lindoneia” remonta a história de depressão de uma linda modelo que, diante da hipocrisia asfixiante da sociedade moderna, se suicida. “Despedaçados, atropelados/ Cachorros mortos nas ruas/ Policiais vigiando/ O sol batendo nas frutas/ Sangrando”. São as imagens que as retinas da jovem não conseguem parar de enxergar até que, fatalmente: “No avesso do espelho/ Mas desaparecida/ Ela aparece na fotografia/ Do outro lado da vida”. Sem precisar das famigeradas guitarras elétricas, combatidas pelos conservadores da MPB àqueles idos, a música é tão impactante e provocativa quanto o restante.

Na linha do que pautaria toda sua obra, “Parque Industrial”, de Tom Zé – que ainda gravaria o primeiro disco solo naquele ano –, é outra obra-prima de “Tropicália”. A sonoridade de bandinha marcial, como se celebrasse ignorantemente a industrialização do sentimento humano, é típica da ironia do baiano de Irará. Ele critica num só tempo as indústrias do entretenimento, dos bens de consumo e da comunicação, sem deixar de dar uns tapas na Igreja Católica: “Despertai com orações/ O avanço industrial/ Vem trazer nossa redenção”. E o refrão diz, impiedoso: “Pois temos o sorriso engarrafado/ Já vem pronto e tabelado/ É somente requentar/ E usar/ Porque é made, made, made, made in Brazil”.

O baião-exaltação “Geleia Geral” tem na poesia de Torquato e na brilhante melodia de Gil outro hino tropicalista, quase um ideário ali condensado. “Um poeta desfolha a bandeira/ E a manhã tropical se inicia/ Resplendente, cadente, fagueira/ Num calor girassol com alegria/ Na geleia geral brasileira/ Que o jornal do Brasil anuncia”. A letra carrega a complexidade cultural que a Tropicália descobria, como que tirando um véu das escondidas “relíquias do Brasil”:“Doce mulata malvada/ Um LP de Sinatra/ Maracujá, mês de abril/ Santo barroco baiano/ Superpoder de paisano/ Formiplac e céu de anil/ Três destaques da Portela/ Carne seca na janela/ Alguém que chora por mim/ Um carnaval de verdade/ Hospitaleira amizade/ Brutalidade, jardim.” Brasilianista, carrega em seus versos Macunaíma, Sérgio Buarque de Hollanda, cultura de massa, diáspora africana, arte popular, folclore. Uma das mais belas letras do cancioneiro nacional.

Instalação "Tropicália", de Oiticica,
de 1966, antecipando o movimento
Se a referencial bossa-nova carioca permeia toda a obra, como no sucesso “Baby” – aqui, na sua versão mais clássica – e "Enquanto seu Lobo Não Vem", genial em sua construção em contrapontos, o igualmente basal baião nordestino sustenta a dissonante "Mamãe, Coragem", outra joia da parceria Caetano/Torquato (“Mamãe, mamãe não chore/ Não chore nunca mais, não adianta/ Eu tenho um beijo preso na garganta/ Eu tenho um jeito de quem não se espanta”) cuja interpretação de Gal é irretocável. Novamente, um final abrupto que, junto de todos os outros elementos sonoros e simbólicos, dá feições não apenas musicais, mas também visuais e antropológicas à proposta tropicalista.

A poesia concretista-visual da
letra de"Bat Macumba"
O passeio pela cultura brasileira está presente ainda na farra “Bat Macumba”, de letra claramente sintonizada com o concretismo de um dos padrinhos do movimento, Augusto de Campos, e cujo arranjo mistura os batuques de terreiro com as guitarras distorcidas do rock; na releitura histórico-musical de “Três Caravelas”; e na faixa que encerra apoteoticamente o álbum, "Hino ao Senhor do Bonfim", que se indica uma afirmação “baianística” dos seus mentores, também funciona como um interessante contraponto à música de abertura, “Miserere Nobis”: primeiro, a súplica e, depois, a elevação.

Caetano, Gil e a turma tropicalista já eram artistas populares tanto por suas obras musicais quanto pelas participações ativas em teatro, tevê e cinema. Mas é a partir desse projeto coletivo muito bem concebido e acabado que eles engendram uma revolução não somente em suas obras e carreiras, mas na cultura nacional. Nunca mais o Brasil foi o mesmo. Nunca mais o Brasil se viu da mesma forma. BRock, Black Rio, Lambada, Axé Music, Pagode, Mangue Beat: tudo teve (e seguirá tendo) o visto do Tropicalismo.

A pretensão modernista ainda hoje é digerida pelos dentes do Tropicalismo. Mesmo tão influente que foi e é, ainda lhe restam pedaços mal comidos sobre o prato – basta ver, hoje, o abismo que há entre Anitta e Criolo, dois influenciados. Por querer ou não, o movimento abriu caminho para a proposição de uma verdadeira identidade nacional, uma expressão brasileira salvadora. A Tropicália, em sua assimilação da antropofagia, fez o contrário dos inocentes índios quando os europeus lhes compravam com meros espelhos: dessa vez, foi o nativo quem apresentou o espelho para o forasteiro e lhe disse: “Olha só como eu sou”.

O Tropicalismo pôs o Brasil sobre um palco iluminado pelo sol dos trópicos e ornamentado com frutas e vegetação – com direito a mulatas rebolando e declamações de poesia ufanista. Sugeriu que o Brasil enxergasse a si próprio, que se lhe percorresse as matas, os sertões,os  mangues, as praias e os morros. Conhecesse por dentro suas mansões, malocas, palafitas e ocas. Considerou admitir-se complexo, pois mestiço e pluricultural. Levantou a esperança da realização da alternativa alegre e sábia diante dos outros povos do mundo. “A alegria é a prova dos nove”, como já preconizava o Manifesto Antropofágico.

 Se “o Brazyl não conhece o Brasil”, pois “nunca foi ao Brazil”, como disse certa vez Tom Jobim, a Tropicália propôs uma ruptura emancipadora a estes tristes trópicos. Ir a seu próprio encontro, mas não ao vento de caravelas, e sim, de expresso. De número 2222. No embalo do ritmo alucinante da modernidade para forjar o renascimento de uma nação. Como um (re)descobrimento do Brasil.

FAIXAS
1. "Miserere Nóbis" (Capinam, Gilberto Gil) – com Gilberto Gil - 3:44
2. "Coração Materno" (Vicente Celestino) – com Caetano Veloso - 4:17
3. "Panis et Circencis" (Caetano Veloso, Gilberto Gil) - Os Mutantes - 3:35
4. "Lindoneia" (Caetano Veloso) – com Nara Leão - 2:14
5. "Parque Industrial" (Tom Zé) – com Gilberto Gil, Caetano Veloso, Gal Costa, Os Mutantes e Tom Zé - 3:16
6. "Geleia Geral" (Gilberto Gil, Torquato Neto) – com Gilberto Gil - 3:42
7. "Baby" (Caetano Veloso) – com Gal Costa e Caetano Veloso - 3:31
8. "Três Caravelas (Las Tres Carabelas)" (Algueró Jr., Moreau. Versão: João de Barro) - Caetano Veloso e Gilberto Gil - 3:06
9. "Enquanto seu Lobo Não Vem" (Caetano Veloso) - com Caetano Veloso, Gilberto Gil e Rita Lee - 2:31
10. "Mamãe, Coragem" (Caetano Veloso, Torquato Neto) – com Gal Costa - 2:30
11. "Bat Macumba" (Caetano Veloso, Gilberto Gil) – com Caetano Veloso, Gal Costa, Gilberto Gil e Os Mutantes - 2:33
12. "Hino ao Senhor do Bonfim" (Artur de Sales, João Antônio Wanderley) com Caetano Veloso, Gal Costa, Gilberto Gil e Os Mutantes - 3:39

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OUÇA O DISCO
Vários - "Tropicália"

Daniel Rodrigues

segunda-feira, 17 de dezembro de 2018

Caetano Veloso - "Caetano Veloso" (1986)



"No disco americano, o poeta/cantor domina o tempo e portanto pode cantar: '´já tem coragem de saber que é imortal'". 
Matinas Suzuki, em resenha da Folha Ilustrada de 1986

"Como existe João, e para que não se esqueça isso, este é um disco de rock and roll. Sem aspas."
Caetano Veloso, ao Correio da Bahia, 1990

Os anos 80 foram de diversificação para Caetano Veloso. Maduro artisticamente, mais curado das feridas do exílio nos anos 70 e consolidado como um dos artistas mais importantes e populares do Brasil, o baiano lançou-se em vários tipos de projetos naquela década. Estreia, em 1986, um programa de auditório na Globo ao lado de Chico Buarque, “Chico & Caetano”, marco da tevê brasileira. Cria trilhas para tevê, teatro e cinema, além de rodar o seu próprio filme, o autoral “O Cinema Falado”, daquele mesmo ano. Arrisca-se até como ator nos filmes “Tabu”, de Julio Bressane, de 1982, e um ano depois, “Onda Nova”, de José Antônio Garcia e Ícaro Martins. Também, escrevera artigos tão polêmicos quanto carregados de qualidade literária e filosófica. Na carreira musical, concluía a jornada junto à Outra Banda da Terra – que o acompanhara por praticamente toda a década anterior –, integra o naipe de “Brasil” (1981), de João Gilberto, juntamente com Gilberto Gil e Maria Bethânia, produz o amigo Jorge Mautner e obtém sucesso naquilo que era o ápice da popularidade de um músico no Brasil à época: as trilhas de telenovelas – casos de “O Homem Proibido”, de 1982 (com “Queixa”), “Eu Prometo”, 1983 (“Você é Linda”) e “Tieta”, 1989 (“Meia Lua Inteira”).

Dentre esses variados projetos, faltava investir mais fortemente em um: a projeção internacional. Se no seu quintal estava tudo dominado, agora eram os gringos que precisava atingir para expandir seu trabalho naturalmente universal. Conhecido na Europa desde que vivera na Inglaterra, no período da Ditadura Militar, Caetano mantinha frequência de shows internacionais em diversos países, como Suíça, Portugal, França, Itália, Israel, entre outros. Mas faltava o coração da indústria fonográfica: os Estados Unidos. Surge, então, a oportunidade de gravar em Nova York um disco especialmente para o mercado norte-americano, algo que Gil já o fizera, em 1979, no ótimo “Nightingale”. Porém, ao contrário do parceiro de Tropicalismo, que optara por versar para inglês clássicos de seu repertório, os quais ganharam novos arranjos para banda, Caetano escolhe a simplicidade do acústico. É o que se revela no cristalino “Caetano Veloso”, de 1986.

Formato que já vinha sendo lapidado pelo artista há alguns anos em shows – incluindo “Totalmente Demais”, disco coirmão gravado no Brasil naquele mesmo ano –, o som voz/violão/percussão ganha no “Disco Americano”, como é apelidado, a sua mais alta qualidade. Com um repertório escolhido a dedo, Caetano traça um histórico de seu gênio compositivo ao longo das então mais de três décadas de carreira. Composições antigas, como “Coração Vagabundo”, de seu primeiro disco (“Domingo”, de 1967), e “Saudosismo”, de 1968, se aliam a temas mais recentes, como “Luz do Sol”, escrita para a trilha do filme “Índia, a Filha do Sol”, de 1982, e duas de “Velô”, de 1983. Além disso, puxam-se clássicos do cancioneiro caetaneano como “O Leãozinho”, “Terra” e “Trilhos Urbanos”, esta última, a que tem a primazia de abrir os caminhos, ditando o clima que se seguirá nas 13 faixas do álbum. Tudo sob um arranjo simples e sofisticado ao mesmo tempo, com o violão do próprio Caetano fazendo toda a base bossa-novística, as percussões de Mestre Marçal e Marcelo Costa contribuindo com texturas e leves ritmações e o violão solo de Toni Costa completando a arquitetura sonora.

Assim como “Trilhos...”, ainda melhor do que sua original nessa versão, ocorre o mesmo com “O Homem Velho”, que, somente voz/violão, faz revelar a real essência da canção. Escrita para o pai de Caetano quando de seu falecimento, tem uma de suas mais tocantes letras, com versos como: “A solidão agora é sólida, uma pedra ao sol/ As linhas do destino nas mãos a mão apagou/ Ele já tem a alma saturada de poesia, soul e rock'n'roll/ As coisas migram e ele serve de farol”. Caetano está cantando lindamente, dando às interpretações a medida certa de emotividade. É o que se nota em “Eu Sei que Vou te Amar”, numa das mais belas versões do clássico de Tom e Vinícius – à altura das interpretações de Elizeth Cardoso, João Gilberto e do próprio Tom Jobim.

Outras imortais de Caê, como “O Leãozinho”, bastante afeita ao acústico, também são levadas apenas por seu intérprete ao violão, límpidas. Mesmo caso de “Odara”, originalmente uma disco music que, desta maneira, soa como se sempre tivesse sido tocada na sutiliza do acústico. Aliás, a musicalidade de Caetano é tamanha que ele consegue dar tal roupagem a duas melodias totalmente distintas dos ritmos brasileiros: “Get Out of Town”, standart do cancioneiro norte-americano, de Cole Porter, e “Billie Dean”, o pop dançante de Michael Jackson. Tal como ousara nos anos 70 em “Qualquer Coisa”, de 1975, quando pôs Beatles dentro do som mais brasileiro de todos: o samba. E são duas das mais belas canções do disco: “Get Out...”, superelegante, que conta com um solo de violão arrasador de Toni Costa, e “Billie...”, em que aproveita a radiosa melodia original para transformá-la, inclusive mesclando-a em pout-pourri com o samba de gafieira “Nega Maluca” e a sinfônica “Eleanor Rigby”, que o faz voltar a Lennon e McCartney, inclusive pela marcante participação de Toni Costa relembrando a guitarra de Perinho Albuquerque em "Eleanor...";

“Cá-Já”, do álbum “Muito”, de 1978, ganha arranjo mais encorpado com as percussões e o violão de Toni Costa. Daquele mesmo disco, “Terra”, talvez a mais brilhante composição de Caetano, encerra repetindo a sonoridade de pequena banda e, mais uma vez, superando a primeira gravação. Versos inesquecíveis como: “De onde nem tempo, nem espaço/ Que a força mande coragem/ Prá gente te dar carinho/ Durante toda a viagem/ Que realizas no nada/ Através do qual carregas/ O nome da tua carne...”, se redimensionam em beleza na discrição exata em que cabe a canção. Caetano faz menos ser muito mais.

Naquela mesma década de 80, logo em seguida viria uma nova fase na carreira musical de Caetano quando, junto aos “Ambitious LoversPeter Scherer e Arto Lindsay, incorpora elementos do pós-jazz e da ethnic fusion à sua abundante musicalidade e poética tropicalista. Mais uma faceta que Caetano apresentava. Porém, a versatilidade de usar de formas variadas seu talento naqueles anos ganha no “Disco Americano” certa redenção. Todos sabem (mesmo que alguns façam de conta do contrário) de suas qualidades artísticas, mas o seu âmago está, de fato, no ensinamento permanente e na profunda reverência à batida e ao canto de João. O resto é quase perfumaria – e se não é, o disco feito para os Estados Unidos faz passar essa sensação ao ouvi-lo. Tudo cabe ali: o samba, o jazz, o rock, o pop. O moderno e o passado. Só voz, violão e canção: basta isso para Caetano ser totalmente demais.

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FAIXAS:
1. Trilhos urbanos
2. O homem velho
3. Luz do sol
4. Cá-já
5. Dindi (Tom Jobim/Aloysio de Oliveira)/ Eu sei que vou te amar (Tom/Vinicius de Moraes)/ 
6. Nega maluca(Fernando Lobo, Evaldo Ruy)/ Billie Jean (Michael Jackson)/ Eleanor Rigby (Lennon-McCartney)
7. O leãozinho
8. Coração vagabundo
9. Pulsar (Augusto de Campos/Caetano Veloso)
10. Get out of town (Cole Porter)
11. Saudosismo
12. Odara
13. Terra
Todas as composições de autoria de Caetano Veloso, exceto indicadas


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OUÇA O DISCO:
"Caetano Veloso" - Caetano Veloso (1986)


Daniel Rodrigues

terça-feira, 7 de agosto de 2012

Caetano Veloso - "Qualquer Coisa" (1975)




“Ô, guri, aonde tu vai com esse disco?”



O disco “Qualquer Coisa”, de Caetano Veloso, sempre me encantou. Tanto que me fez cometer um fora que, na minha adolescência, foi motivo de um engraçado episódio, do qual achei por bem contar como uma homenagem aos 70 anos desse grande artista de nosso tempo completos neste 7 de agosto. Ali pelos 13, 14, eu já era amante e consumidor inveterado de música. Curioso, ia atrás de coisas novas e velhas, que me empolgavam em descobrir. Era um mundo novo que se abria diante de mim. Desses, um universo dos que mais me encantava era a MPB, a música produzida no meu próprio país a qual eu já começava a suspeitar naqueles idos que dava de 10 a 0 na maioria do que se produzia no estrangeiro – o que não demorei muito a me certificar. Nessa busca voraz por conhecer as coisas, uma das práticas que mantinha era a de ir ao Centro de Porto Alegre vasculhar as lojas de discos de vinil. Como a grana da mesada não era muita, não dava pra comprar tudo que eu queria. Então, a solução era abrir os encartes, admirar as capas dos bolachões, ler as fichas técnicas e, o melhor de tudo, escutar. Pois uma das alternativas que as lojas davam era que o próprio cliente escolhesse alguns LP’s e os ouvisse em toca-discos privativos com fones de ouvido, daqueles grandes e de ótima qualidade.
 Numa dessas ocasiões, na antiga loja Pop Som, na Galeria Chaves, estava eu escutando e desvendando os discos de Caetano Veloso, arrebatado com aquela sonoridade, com aquela voz, com aquela musicalidade que me surpreendia a cada volver do prato. Um dos que escutei naquela tarde foi “Qualquer Coisa”. Desde a capa a pop art de Rogério Duarte até as músicas, tudo me encantava. Escutei faixa por faixa. Depois guardei de novo o disco no plástico interno, admirei novamente a capa e, sem ter como comprá-lo naquele momento, saí dali um tanto desolado mas ainda tomado de emoção. Já cruzando a porta de saída, ouvi uma voz feminina ralhar comigo: “Ô, guri, aonde tu vai com esse disco?” Absorto naqueles sons que ouvira, eu estava saindo da loja com o disco debaixo do braço sem perceber. A vendedora, obviamente pensou que eu fosse roubá-lo, e eu, na ingenuidade desarmada da mocidade, entreguei o volume sem me defender. Imaginem eu argumentando naquela época: “Eu não queria roubar: foi que eu fiquei encantado com a música!” Era inimaginável. Que vergonha que me deu!
 Mas antes do constrangimento eu me deliciei ouvindo o disco. Com arranjos super bem elaborados, pensados por Caetano com apoio ora do craque Perinho Albuqerque, ora do mestre João Donato, “Qualquer Coisa” me espantava naquela audição pela coesão aliada a um repertório quase improvável, que misturava  Beatles ,  Jorge Ben , composições próprias de Caê, Chico e Chabuca Granda. Tudo junto e muito bem misturado. O assombro iniciava de cara com a voz e violão de Caetano entrando direto, sem me deixar respirar, no clássico que abre e dá título ao disco: uma bossa-nova sensual meio portenha, meio nordestina, meio cubana. Literalmente, qualquer coisa! A letra, verborrágica e de sentido vago, servia para formar versos impactantes e musicalmente sonoros – tão marcantes que são sempre cantados pelo público inteiro nos shows: “Esse papo já tá qualquer coisa/  Você já tá pra lá de Marrakesh”.
 Em seguida, continuando a verborragia e a sensualidade, “Da Maior Importância”, cuja letra, cheia de anacolutos, expele tesão por todos os lados, pois narra uma tentativa desesperada de autoconvencimento de não transar com uma amiga (“Teria sido na praia/ Medo/ Vai ser um erro.”). O clima mantinha-se sexy, mas agora nos versos boêmios de Chico Buarque  na linda versão para “Samba e Amor”, com aqueles silêncios capciosos entre um verso e outro. A esta altura, eu já percebia que o lado A do LP era todo neste clima, pois as próximas eram “Madrugada e Amor” e, depois, uma das melhores do disco e de toda a obra deste baiano: “A Tua Presença Morena”. Letra moderninsta, é marcada por anáforas, que, com sua proposital repetição no início dos versos, reforçam a ideia de admiração e amplitude que Caetano devota à sua musa tropical. Nessa, ele cria versos de um lirismo impressionante como: “A tua presença coagula o jorro da noite sangrenta”, ou “A tua presença se espalha no campo derrubando as cercas.” “Drume Negrinha”, só ao piano de Donato, fechava o lado A do LP num tom leve e malicioso: “Drume Negrinha, que eu te transo uma nova caminha”.
 Aí vinha o lado B. Virei o disco. O que eu encontraria ali? Continuaria naquele clima “fogoso”? Soltei a agulha. Logo percebi que aquilo tomava outro rumo, pois abria com uma versão para “Jorge de Capadócia”, que talvez seja tão clássica quanto a de Jorge Ben. Com arranjo mais acústico que a eletrificada original, não perdia, contudo, o tom épico e ritualístico da composição, que conclama tanto com São Jorge quanto Ogum. Excelente. Em seguida, outra surpresa. Aliás, tripla surpresa: três versões para canções dos The Beatles: “Eleanor Rigby”, magnífico samba lento só ao violão e percussão, com um tempo marcado e cadenciado, além de contar com um show de vocal; “For no One”, sem dúvida a melhor delas em que Caetano, com extremo lirismo, traduz a melancólica peça de Lennon e MacCartney para uma bossa suingada que remetia novamente à sensualidade do lado A; e “Lady Madonna”, na qual faz o inverso: tira todo o gás da esfuziante original dos rapazes de Liverpool e fica quase que só com a melodia. “Qualquer Coisa” tem ainda “La Flor de la Canela” e “Nicinha”, uma curta e doce homenagem à irmã que faz Caetano voltar a Santo Amaro, onde nasceu, numa volta à origem. Final do disco, ruídos da agulha no final da faixa.
Caetano completando 70 anos
neste dia 7 de agosto
 Se na época aquela gafe na loja de discos me traumatizou – a ponto de, por anos, não contar a ninguém –, hoje o relembro com carinho e entendimento. Afinal, “Qualquer Coisa” é realmente de tirar qualquer um do chão. Álbum de conceito, é a primeira parte de um duo de discos que se completaria com “Joia”, de um ano depois. Também é a afirmação do ex-exilado artista, que, já consagrado, havia voltado ao Brasil abaixo de pedrada quando do lançamento do concretista e malcompreendido “Araçá Azul” (1972), um dos maiores fracassos de venda da história da indústria fonográfica brasileira. “Qualquer Coisa”, bem aceito por gregos e troianos, vinha assentar a posição que Caetano Veloso sempre fez jus em ocupar: o de um dos maiores gênios da música ainda vivos, um artista dono de uma obra não só descomunal como permanentemente criativa e criadora. Por isso, neste 7 de agosto, comemoro as sete décadas de mano Caetano reouvindo “Qualquer Coisa”. Mas não pensem que ouvirei qualquer coisa do “Qualquer coisa”. Não! Ouvirei o meu LP, curtindo faixa a faixa com o encarte debaixo do braço.



vídeo de "A Tua Presença Morena", Caetano Veloso

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FAIXAS:

1. Qualquer coisa (Caetano Veloso)
2. Da maior importância (Caetano Veloso)
3. Samba e amor (Chico Buarque)
4. Madrugada e amor (José Messias)
5. A tua presença morena (Caetano Veloso)
6. Drume Negrinha (Drume negrita) (Ernesto Grenet)
7. Jorge de Capadócia (Jorge Ben)
8. Eleanor Rigby (McCarney, Lennon)
9. For No One (McCartney, Lennon)
10. Lady Madonna (McCartney, Lennon)
11. La flor de la canela (Chabuca Granda)
12. Nicinha (Caetano Veloso)



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Ouça

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

Maria Bethânia - "Drama - Anjo Exterminado" (1972)



capa e contracapa do álbum

"Drama
E ao fim de cada ato
limpo no pano de prato
as mãos sujas do sangue das canções"
da letra de "Drama"


Há tempos que queria escrever sobre este disco nos ÁLBUNS FUNDAMENTAIS, mas sempre hesitava exatamente por gostar demais dele e achar que por mais que o elogie, que lhe exalte, que lhe credite predicados, não seria o suficiente para ressaltar o quanto ele é bom, o quanto é grandioso, o quanto é excepcional. Ora, mas vamos tentar ao menos. Pra começar, Maria Bethânia é na minha opinião, nada mais nada menos que a maior cantora brasileira, a maior voz, a grande intérprete da MPB, talvez só comparável a Elis Regina. Neste disco em especial, “Drama - Anjo Exterminado” de 1972, Bethânia tem algumas de suas mais notáveis interpretações em um repertório extremamente bem selecionado que inclui Gilberto Gil, Luís Melodia, Herivelto Martins e, claro o irmão Caetano Veloso, indo do ponto de umbanda ao fado, visitando o brega e eventualmente o jazz, inveriavelmente esbanjando qualidade, emoção e versatilidade ao longo das 12 faixas.

A vinheta, canto tradicional praticamente declamado, “Ponto” abre o disco já emendando no choroso choro “Esse Cara”, cantado de forma triste e delicada por ela e encerrando com um pequeno trecho do clássico do cancioneiro romântico brasileiro, “Bodas de Prata”. O famoso samba “Volta por Cima” de Paulo Vanzolini fica vigoroso com ela, não somente pela interpretação única mas por uma linha de baixo quebrada que dá um toque sofisticado à canção; a espetacular “Anjo Exterminado” já seria admirável por si só por conta da brilhante composição de Jards Macalé e da letra de Wally Salomão, mas o jeito que ela canta, cada palavra, cada verso, cada inflexão... Nossa!!! parecendo carregar em si toda aquela angústia, aquele desespero, aquela procura, faz com que nas suas mãos, ou melhor na sua voz, torne-se algo superior e inigualável; “Estácio, Holly Estácio” de Luís Melodia ganha igualmente uma versão notável da Abelha Rainha; e a fantástica “Iansã”, oferenda musical de Caetano e Gil para a deusa dos raios no candomblé, é outra que vai da delicadeza ao vigor com uma naturalidade que somente uma grande intérprete pode conseguir.
O nome do disco não é à toa e o tom dramático, as tragédias, os abandonos estão presentes com freqüência: além das já mencionadas “Esse Cara” e “Bom Dia”, “Maldição”, por exemplo, um fado-samba com batidas altas de surdo, é extremamente dramático, quase teatral com um vocal cheio de sentimento e dor; isso sem falar na sangrenta “Drama”, tão cotidiana e praticamente novelística tal o exagero das emoções ali expostas.
A gostosa “Trampolim”, a graciosa “O Circo” e a sonoridade agradável, apesar da premissa pessimista, de “Negror dos Tempos”, suavizam o climão dolorido e sofrido da maior parte do disco. No entanto, não engane-se achando que esse conteúdo trágico, choroso, comovido venha a constituir um produto final maçante, de audição difícil, forçada. Pelo contrário: “Drama - Anjo Exterminado” com faixas bem distribuídas e minuciosamente bem produzido pelo mano Caetano, parece provocar sensações novas, diversas e surpreendentes a cada faixa compondo, ao fim, uma unidade absolutamente coerente e harmoniosa. Uma espécie de grande peça cênico-musical protagonizada por esta baiana de voz firme, potente, empostada que desfila interpretações, situações e personagens que culminam num final grandioso, um final dramático, como que ajoelhada com as mãos para o alto, com as mãos sujas de sangue das canções.
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FAIXAS:
01 - Ponto (Tradicional)
02 - Esse Cara / Bodas de Prata (Caetano Veloso - Bodas de Prata de Roberto Martins e Mário Rossi)
03 - Volta Por Cima (Paulo Vanzolini)
04 - Bom Dia (Herivelto Martins/ Aldo Cabral)
05 - Anjo Exterminado (Jards Macalé/Waly Salomão)
06 – Maldição (Alfredo Duarte/ Armando Vieira Pinto)
07 – Iansã (Gilberto Gil / Caetano Veloso)
08 – Trampolim (Caetano Veloso / Maria Bethânia)
09 - Negror dos Tempos (Caetano Veloso)
10 - O Circo (Batatinha)
11 - Estácio, Holly Estácio (Luís Melodia)
12 – Drama (Caetano Veloso)

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Ouça;
Maria Bethânia Drama / Anjo Exterminado

Cly Reis

domingo, 7 de agosto de 2022

Caetano Veloso - “Estrangeiro” (1989)




“'Estrangeiro' é um grande disco (...). Foi feito em Nova Iorque e foi produzido por Arto, que eu conhecia desde que cheguei a Nova Iorque, em 1982 ou 83, e queria muito produzir um disco meu. Arto conhecia bem minha música, porque tinha vivido muito tempo no Brasil e adora o trabalho dos tropicalistas. Ele queria que aqueles procedimentos tropicalistas fossem conhecidos e reconhecidos internacionalmente (...) O 'Estrangeiro' tem também a marca muito forte do Peter Scherer - sempre a partir das coisas que eu estava fazendo, das ideias que vinha tendo - e de muitas ideias musicais do Arto: sempre resultado das conversas que tínhamos os três.” 
Caetano Veloso


Em “O Cru e o Cozido”, Claude Lévi-Strauss sustenta que todo compositor musical é perpassado pelos mitos os quais o definem como indivíduo em uma coletividade. “O mito da mitologia”, define. Esta acepção, articulada em 1964, parece se adequar a Caetano Veloso, que chega gloriosamente às oito décadas de vida. O mesmo antropólogo francês que Caetano diz ter detestado a Baía de Guanabara na música que dá título ao disco “O Estrangeiro”, de 1989, talvez tenha este conceito de um dos cartões-postais do Rio de Janeiro e do Brasil justamente por ser alguém de fora e distanciado da mitologia a qual não pertence. Não é nem a falta de elogio, e sim o fato de que este olhar estrangeiro dá vantagens as quais Caetano não só não contrapõe - embora discorde - como entende muito bem. 

Como em qualquer mitologia, porém, nem tudo é perfeito. Pode soar pouco festivo, mas a chegada de Caetano Veloso aos 80 anos simboliza um Brasil que nunca se realizou. Menos pessimista, que seja: uma promessa de Brasil. Caetano, tanto quanto alguns de sua dourada geração – Gil, Chico, Nara, Hermeto, Elis, Edu, Jards – mas mais do que todos eles em alguns aspectos, estetizou o Brasil assim como fizeram alguns dos ícones da nossa cultura: Villa-Lobos, Portinari, Machado de Assis e Mário de Andrade. E o fez, em grande parte, pela discordância. Caminhando contra o vento, sem lenço e sem documento, num movimento constante de imersão e submersão, de identificação e distanciamento. Isso faz com que ponha no mesmo pentagrama axé music e microtonalismo, pop e vanguarda, e nos ensine a não só ouvir, como pensar essas diferenças/semelhanças para chegar a um fim maior: o âmago da própria mitologia. A dissonância aprendida na bossa nova de João Gilberto aplica em tudo sem nunca, sobretudo, fugir do embate. Ele, que discutiu com universitários esnobes e alienados no FIC de 1968; que se exilou por causa da Ditadura; que sempre disse o que pensava e não admite desaforo. 

“Estrangeiro”, um dos melhores discos da extensa obra do baiano, materializa em sons, letras e forma essa utopia tropicalista quase policarpiana de ser mito e mitologia ao mesmo tempo. A começar pela capa, reprodução da maquete concebida pelo Hélio Eichbauer para a peça "O Rei da Vela", do Oswald de Andrade, montada em São Paulo pelo Zé Celso Martinez Corrêa nos anos 60, pensada por Caetano quando este estava fora do Brasil. 

A faixa de abertura, igualmente, é uma daquelas grandes composições de Caetano em letra e música, e traduz a ideia dual do álbum, em que diversos ritmos se cruzam e se hibridizam em tonalismo e atonalismo, assonância e dissonância. O reggae conversa com eletrônico, que conversa com o batuque, que conversa com world music, que conversa com a art rock e o jazz contemporâneo. Naná Vasconcelos, no esplendor da maturidade, e Carlinhos Brown, já um grande entre os grandes, são dois dos principais contribuintes da sonoridade do disco, visto que integram, através de suas percussões universais, aquilo que há de mais visceral e de mais moderno em arte musical. Sem refrão, numa verborragia típica do seu autor, “O Estrangeiro” (“Uma baleia, uma telenovela, um alaúde, um trem?/ Uma arara?/ Mas era ao mesmo tempo bela e banguela a Guanabara” ou “À áspera luz laranja contra a quase não luz, quase não púrpura/ Do branco das areias e das espumas/ Que era tudo quanto havia então de aurora”), reflexiona o ser brasileiro se colocando numa posição quase brechtiana de distanciamento e proximidade com o objeto. Até o videoclipe, dirigido pelo próprio Caetano, é um exercício de cinema de arte, extensão do experimental “O Cinema Falado”, único filme dirigido por ele três anos antes. E convicto de sua posição, ainda arremata: “E eu, menos estrangeiro no lugar que no momento/ Sigo mais sozinho caminhando contar o vento”. A música, aliás, inaugura algo que se poderia chamar de brazilian-post-jazz, o que o próprio Caetano, que atribui a Gilberto Gil a criação não reclamada do “samba-jazz-fusion”, mostra-se ainda mais modesto ao também desdenhar tamanho feito. 

Videoclipe de "O Estrangeiro", de e com Caetano Veloso 


Não à toa, “Estrangeiro” é produzido por dois músicos além-fronteiras: os Ambitious Lovers Peter Scherer e Arto Lindsay – este último o qual, assim como Caetano, faz uma permanente ponte entre o nordeste brasileiro e cosmopolitismo, visto que norte-americano de nascimento, mas criado em Pernambuco. Ligados a cena do jazz M-Base de Nova York e a nomes ultramodernos como Ryuichi Sakamoto, Laurie Anderson, John Zorn e Brian Eno, Arto e Peter edificam a melhor e mais bem acabada produção da discografia de Caetano até então, algo que o músico não só repetiria a dose (“Circuladô”, de 1991) como serviria de base para revolucionar a música brasileira do início dos anos 90 inaugurando-lhe um novo padrão produtivo, a se ver por trabalhos marcantes como “Mais” e “Verde, Anil, Amarelo, Cor-de-Rosa e Carvão" (1992 e 1994), ambos de Marisa Monte, “The Hips of Tradition”, de Tom Zé (1992), e “Alfagamabetizado”, de Carlinhos Brown (1996).

Na sequência de “O Estrangeiro” vem o lindo pop afoxé “Rai das Cores”, que evoca as colorações sonoras tanto da canção-irmã “Trem das Cores”, composta por Caetano em 1982 para “Cores Nomes”, quanto outra ainda mais antiga: “Beira-Mar”, em parceria com Gil e gravada por este em seu primeiro disco, de 1966. A reiteração do “azul” como símbolo de beleza e pureza (“Para o fogo: azul/ Para o fumo: azul/ Para a pedra: azul/ Para tudo: azul”) dialoga com os belos versos finais da balada cantada em ritmo de bossa-nova pelo parceiro: “É por isso que é o azul/ Cor de minha devoção/ Não qualquer azul, azul/ De qualquer céu, qualquer dia/ O azul de qualquer poesia/ De samba tirado em vão/ É o azul que a gente fita/ No azul do mar da Bahia/ É a cor que lá principia/ E que habita em meu coração”. Já “Branquinha”, esta, aí sim, deixa de lado modos mais modernos para voltar à bossa-nova a qual Caetano nunca se desligou homenageando com graciosidade a então recente esposa Paula Lavigne, ainda hoje companheira e com quem ele teria dois filhos, Zeca e Tom, ambos músicos como o pai. Quão lindos, sensuais e apaixonados estes versos: “Branquinha/ Carioca de luz própria, luz/ Só minha/ Quando todos os seus rosas nus/ Todinha/ Carnação da canção que compus/ Quem conduz/ Vem, seduz”. E, mais uma vez ciente do deslocamento no mundo, ele diz: “Vou contra a via, canto contra a melodia/ Nado contra a maré”. 

Mais um grande momento de “O Estrangeiro”: “Os Outros Românticos”. Samba-reggae potente, a música discute os conceitos de modernidade e racionalidade propostos no livro “O Mundo Desde o Fim” do não apenas compositor, poeta e parceiro Antonio Cícero, mas também filósofo. Além disso, traz os teclados firmes de Peter, as guitarras abrasivas de Arto e a sonoridade dos tambores afro de Salvador, que tanto começavam a fazer sucesso àquele final de anos 80 com a Olodum e a qual o próprio Caetano se valeria bastantemente dali para adiante, como em “Haiti” (“Tropicália 2”, 1993), “Luz de Tieta” (trilha sonora de “Tieta do Agreste”, 1997), “Alexandre” (“Livro”, 1997) e “Ó Paí Ó” (trilha do filme, 2007). Afora isso, a letra, análise sociopolítica contundente com referência ao olhar “universal” do cineasta alemão Win Wenders em “Asas do Desejo” (“Anjo sobre Berlim”), é daquelas altamente poéticas de Caetano: “Eram os outros românticos, no escuro/ Cultuavam outra idade média, situada no futuro/ Não no passado/ Sendo incapazes de acompanhar/ A baba Babel de economias/ As mil teorias da economia”. Para emendar com “Os Outros...”, a ainda mais internacional “Jasper”, parceria de Caetano com seus produtores. Outro ponto alto do disco, afora a brilhante melodia de ares eletro-funk e afro-brasileiros, traz por trás do inglês do cantor belos versos como: “Tempo é tão leve como a água”.

Ainda mais autorreferente, a segunda parte do álbum começa com a tocante “Este Amor”, que se pode classificar como a “Drão” de Caetano. Assim como a clássica canção de Gil dedicada à antiga esposa quando da separação dos dois, em “Este Amor” Caê versa para Dedé Gadelha, com quem vivera quase 20 anos e tivera Moreno, outro talentoso músico, espelhando-a dentro do disco com a anterior “Branquinha”, feita para a atual mulher. Ao contrário da balada melancólica de Gil, no entanto, a de Caetano é um afoxé suavemente ritmado e um canto sereno de um homem maduro, entrando nos 50 anos, capaz de olhar para trás e enxergar sem mágoa a beleza do que se viveu. “Se alguém pudesse erguer/ O seu Gilgal em Bethania... Que anjo exterminador tem como guia o deste amor?”. 

Assim, espelhando-se mais uma vez na família de sangue e de vida, o disco prossegue com “Outro Retrato”. Se fez presentes Gal Costa, a irmã Maria Bethânia e Gil – também oitentão como ele em 2022 –, Caetano agora retraz a sua maior devoção: João Gilberto. Em ritmo caribenho, a música diz: “Minha música vem da música da poesia/ De um poeta João que não gosta de música/ Minha poesia vem da poesia da música/ De um João músico que não gosta de poesia”. Traços do arranjo de “Outro...” inspirariam canções futuras, como “Neide Candolina” e “"How Beautiful a Being Could Be", como os contracantos e a pegada pop sobre o ritmo latino. É o mesmo João que evoca, mas aqui junto de Tom Jobim e Vinicius de Moraes, em “Etc.”, melancólica e romântica como os primeiros sambas da parceria clássica da bossa nova. 

Caetano acompanhado de Brown e Moreno
na turnê de "Estrangeiro", em 1989
Quase fechando o álbum, a faixa que talvez tenha surpreendido até Caetano tamanha repercussão que fez: “Meia-Lua Inteira”. Primeira de autoria Brown com maior projeção popular, a música estouraria nas rádios depois de entrar na trilha de “Tieta”, uma das telenovelas de maior sucesso da Rede Globo, e roubar o protagonismo, inclusive, da canção-tema, que abria o programa. Na época, até poderia soar um tanto modístico aquele samba-reggae colorido como os que Olodum, Banda Reflexus e Luiz Caldas vinham fazendo. Mas Caetano é Caetano. Tropicalista, mais uma vez adiantava-se ao que a crítica supunha entender e fincava a bandeira das manifestações populares e urbanas. “Meia-Lua Inteira”, aliás, mesmo sendo Caetano um artista desde muito acostumado com as paradas, pode ser considerado o seu abre-alas para as grandes vendagens, o que ocorreria pelo menos mais três vezes com “Não Enche” ("Livro"), “Sozinho” (“Prenda Minha – Ao Vivo”, 1998) e "Você não me Ensinou a te Esquecer" (trilha de "Lisbela e o Prisioneiro", 2003).

Para desfechar, Caetano vai buscar, enfim, a própria mitologia. O poeta retorna ao seu âmago, à sua origem, às suas reminiscências da infância em Santo Amaro da Purificação, no Recôncavo baiano, onde nasceu, com a brejeira “Genipapo Absoluto”. No livro “Sobre as Letras” (2003), Caetano diz que um dado da letra que lhe emociona é que essa canção fala de sua identificação com o pai (“Onde e quando é jenipapo absoluto?/ Meu pai, seu tanino, seu mel”). Mas declara, em seguida: “minha mãe é minha voz”. Quando canta os versos “Que hoje sim, gera sóis, dói em dós”, inclusive, ele o faz imitando a de Dona Canô. E outro tocante refrão: “Cantar é mais do que lembrar/ É mais do que ter tido aquilo então/ Mais do que viver, do que sonhar/ É ter o coração daquilo”. Ao citar a irmã Mabel em certo momento, também é possível fazer ligação com outra antiga melodia sua: “Alguém Cantando”, do disco “Bicho”, de 1977, igualmente uma faixa de encerramento e cuja voz, literalmente, não é a sua, mas da outra irmã do compositor, Nicinha.

Caetano, tão nativo quanto forasteiro, decifrou o Brasil nestas últimas oito décadas de vida e seis de carreira unindo alta e baixa cultura, provando por que, pela visão tropicalista, é possível, sim, levar o pensamento aprofundado a “quem não tem dinheiro em banco” e catequisar “as pessoas da sala de jantar”. Utopia? Pode ser, mas sua obra gigantesca e da qual “Estrangeiro” é um dos mais significativos exemplares, está aí para ser sorvida. “Todo mundo pode aprender tudo”, disse ele certa vez. Mais do que apenas misturar, a diferença de Caetano está na sua visão, uma visão para além do óbvio, para além da própria música e da poesia, visto que filosófica. Caetano, literato e intelectual, ensinou o Brasil a pensar-se. "As coisas migram e ele serve de farol"... Mito e mitologia, ajudou a fundar a nossa modernidade. Ele, que é o tropicalista mais convicto de todos, visto que dialoga com a mesma potência poética "a delícia e a desgraça" como escreveu sobre os estrangeiros americanos. O estrangeiro que canta, na verdade, é ele próprio, num país que nunca, de fato, se realizou. 

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FAIXAS:
1. “O Estrangeiro” - 6:14
2. “Rai Das Cores” - 2:37
3. “Branquinha” - 2:35
4. “Os Outros Românticos” - 4:58
5. “Jasper” (Caetano Veloso, Peter Scherer, Arto Lindsay) - 4:58
6. “Este Amor” - 3:26
7. “Outro Retrato” - 5:00
8. “Etc.” - 2:06
9. ”Meia-Lua Inteira” (Carlinhos Brown) - 3:43
10. “Genipapo Absoluto” - 3:22
Todas as composições de autoria de Caetano Veloso, exceto indicadas


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OUÇA O DISCO:


Daniel Rodrigues