"Meu nome é
Antonio Carlos Gomes
Belchior Fontenelle Fernandes,
portanto, um dos grandes nomes
da música popular brasileira”.
Belchior,
em entrevista em 1982
para o jornal O Pasquim
Em
1976, Antonio Carlos Gomes Belchior Fontenelle Fernandes, ou
simplesmente Belchior, era apenas mais um cantor e compositor
cearense que tentava a vida no Rio de Janeiro. Dois anos antes, tinha
lançado seu primeiro disco, “A Palo Seco”, pela Gravadora
Continental, que tinha seu primeiro sucesso de crítica “Hora do
Almoço”. Mas a repercussão ficou somente aí. O público não
comprou. Mesmo assim, ele conseguiu um contrato com a Polygram, a
gravadora mais importante do Brasil na época. Com produção de
Mazzola, ele entrou nos estúdios e fez o quinto disco da minha lista
de favoritos e o primeiro de MPB desta lista pessoal e
intransferível: “Alucinação”.
Como
todo mundo naquele tempo, ouvi o disco pela primeira vez no rádio.
Continental 1120, por supuesto. A canção era a faixa que
abre o disco, “Apenas um Rapaz Latino-Americano”. Com aquela
maneira de se expressar, somente Raul Seixas em seu “Ouro de Tolo”
tinha feito coisa parecida. Um jeito Dylan de cantar e recitar a
letra ao mesmo tempo, incomum na época. Muito antes do rap. A
harmônica ajuda na comparação com Robert Zimmerman. Nela, Belchior
faz sua profissão de fé na condição de compositor naqueles tempos
bicudos de ditadura militar: “Não me peça que eu lhe faça/
Uma canção como se deve/ Correta, branca, suave/ Muito limpa, muito
leve/ Sons, palavras são navalhas/ E eu não posso cantar como
convém/ Sem querer ferir ninguém”. Mais adiante, ele avisa
que o ouvinte não deve se preocupar com os horrores que diz, pois “a
vida é muito pior”. Na perspectiva de hoje, é incrível que a
censura – tão raivosa em inúmeros momentos com outros
compositores, por exemplo, Chico Buarque e Milton Nascimento –
tenha sido condescendente com as letras de Belchior.
Na
sequência, ele faz versões menos roqueiras de duas músicas que
haviam sido gravadas por Elis Regina em seu álbum ”Falso
Brilhante”: “Velha Roupa Colorida” e o hit do disco, “Como
Nossos Pais”. Em “Velha Roupa...”, ele se preocupa com os
saudosismos: “No presente, a mente, o corpo é diferente/ E o
passado é uma roupa que não nos serve mais”. Também fala que
uma nova mudança vai acontecer. Só que isto levou quase nove anos
para começar. Já em “Como Nossos Pais”, ele garante que “viver
é melhor que sonhar” e que, apesar de lutar para buscarmos a
vida e não o sonho, a conclusão é aterradora: “Ainda somos os
mesmos e vivemos/ Como nossos Pais”. O disco é todo embalado
por baladas mid-tempo – como dizem os americanos –, bem ao
estilo, bem... dylanesco.
“Sujeito
de Sorte” já é diferente. Depois de um começo que flerta com o
rock um pouco mais pesado, ela vira uma canção onde o piano
elétrico de José Roberto Bertrami (do grupo Azimuth) faz a base
melódica para a bateria de Ariovaldo. E a letra diz: “Tenho
sangrado demais, tenho chorado pra cachorro/ ano passado eu morri mas
este ano eu não morro”, numa referência direta a “Its All Right, Ma' (I'm Only Bleeding)” de Dylan. Ele novamente. “Como o
Diabo Gosta” tem um tom solene com o órgão fazendo a base para
violões e violas e Belchior cantando: “E a única forma que
pode ter norma/ é nenhuma regra ter/ é nunca fazer nada que o
mestre mandar/ sempre desobedecer/ nunca reverenciar”. Uma moda
de viola “muderna”.
O
lado 2 começa com as canção mais importante de todo este grande
disco, a faixa-título que, direto já diz: “Eu não estou
interessado em nenhuma teoria/ Em nenhuma fantasia, nem no algo
mais... a minha alucinação é suportar o dia a dia/ E meu delírio/
é a experiência com coisas reais”. E depois de toda uma
descrição da vida difícil e insossa das grandes cidades, Belchior
afirma que “amar e mudar as coisas/ me interessa mais”.
Essa é outra canção em que a bateria de Ariovaldo faz a diferença,
tocando o “feijão com arroz” necessário para passar a mensagem
do compositor. Neste sentido, é exemplar a produção de Mazzola. A
banda se destaca por carregar de forma convincente as letras e os
vocais do bardo cearense.
A
referência de Dylan misturado com Luiz Gonzaga está em “Nâo Leve
Flores”, com violões e piano country ao lado de uma
sanfona, sublinhando a marca cowboy ou... bem, vocês já
sabem. O pessimismo de Belchior fica evidenciado neste trecho: “Tudo
poderia ter mudado, sim/ pelo trabalho que fizemos - tu e eu/ mas o
dinheiro é cruel/ e um vento forte levou os amigos/ para longe das
conversas, dos cafés e dos abrigos/ e nossa esperança de jovens não
aconteceu, não, não”.
Como
muita gente não havia ouvido seu primeiro disco, Belchior resolveu
regravar “A Palo Seco” (que havia sido interpretada pelo seu
amigo e conterrâneo Raimundo Fagner no disco de 1975, “Ave
Noturna”). E ele reforça a canção escrita em 1973 dizendo: “E
quero que este canto torto/ feito faca, corte a carne de vocês”.
Prestem atenção no que faz o piano de José Roberto Bertrami
durante toda a canção. Lembrou-me o que Nicky Hopkins fazia nos
discos dos Rolling Stones da década de 70.
“Fotografia
3X4” é, talvez, a canção mais desesperada e autobiográfica de
todo o disco. “Eu me lembro muito bem do dia em que eu cheguei/
Jovem que desce do norte pra cidade grande/ Os pés cansados e
feridos de andar légua tirana”. E, a partir daí, segue a saga
difícil de um imigrante. E sobra até para o Caetano de “Alegria,
Alegria”: “Veloso o sol não é tão bonito pra quem vem/ do
norte e vai viver na rua”. Já sabedor que este disco iria
mudar sua realidade, ele hesita em dizer: “A minha história
é... talvez/ É talvez igual à sua/ jovem que desceu do Norte/ e no
Sul viveu na rua”. Como é importante para ele reforçar esta
noção de que o imigrante, especialmente o nordestino, sofria muito
com este êxodo. Tudo ponteado pela guitarra de Antenor (onde
andará?).
Pra
fechar, numa levada country novamente, um recadinho rápido e
básico de “Antes do Fim”: “Quero desejar, antes do fim/ pra
mim e os meus amigos/ muito amor e tudo mais... não tome cuidado/
não tome cuidado comigo/ que eu não sou perigoso/ viver é que é o
grande perigo”.
Este
disco significou muito pra mim. Acredito que foi a partir dele é que
comecei, aos 16 anos – atrasado, eu sei, mas antes tarde do que
nunca –, a me dar conta do que estávamos vivendo aqueles anos
terríveis que se convencionaram chamar de “de chumbo”. Mas acho
que, aos 15 para 16 anos, eu tinha um álibi. Vivíamos numa ditadura
militar onde nada era contado como devia, tudo era escondido. Foi o
começo do auge da TV Globo ditando as regras da comunicação
brasileira. Estudava numa escola pública maravilhosa onde, porém,
estudávamos “OSPB” (pra quem não sabe Organização Social e
Política Brasileira) e “Educação Moral e Cívica”. Duas
clássicas matérias onde éramos ensinados a adorar a Transamazônica
e as “realizações” do governo militar. Com toda esta lavagem
cerebral, foi muito importante surgir um disco como o de Belchior pra
dar uma desmistificada no que aprendíamos até mesmo nas escolas. E
é um disco que ouço não só com o viés nostálgico, mas como um
disco de música de qualidade. Quem não conhece, ouça.
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FAIXAS:
1. "Apenas um rapaz latino-americano" - 4:17
2. "Velha roupa colorida" - 4:49
3. "Como nossos pais" - 4:41
4. "Sujeito de sorte" - 3:56
5. "Como o diabo gosta" - 2:33
6. "Alucinação" - 4:52
7. "Não leve flores" - 4:11
8. "A palo seco" - 2:56
9. "Fotografia 3x4" - 5:27
10. "Antes do fim" - 0:59
por Paulo Moreira
Um ótimo texto sobre um ótimo álbum.Quando eu estudava,década de setenta,não tinha conhecimento da realidade do meu País,só depois tomei conhecimento.
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