“Quando a melodia de ‘The Sidewinder’
me veio à mente,
me veio à mente,
não estava pensando naquele tipo de cobra,
mas sim num cara mau”.
Lee Morgan
O trompetista
norte-americano Lee Morgan é um dos maiores nomes da história
do jazz, inegavelmente. Porém, seu caminho poderia ter sido ainda
mais frutífero não fossem essas coisas inexoráveis da vida. No
caso dele, a morte. Porém, durante os 36 anos em que esteve no
planeta Terra iluminando-o com sua música, o período entre 1963 e
1964 lhe é especialmente relevante. Foi quando ele produziu algumas
de suas mais significativas obras. Poderia muito bem falar aqui do
hard bop “The Gigolo”, com sua explosão soul de “Yes I
Can, No You Can't”, que lançou, em 1965, com uma afinadíssima
banda (Harold Mabern, piano; Bob Cranshaw, baixo; Billy Higgins,
bateria; e o mestre Wayne Shorter, no sax tenor). Podia, igualmente,
voltando dois anos no tempo, exaltar o brilhante “Search for the
New Land”, cuja faixa-título é dos colossos do jazz mundial mas
que, para além disso, é inteiramente radioso, contando com os
mesmos Higgins e Shorter e mais as luxuosas adições de Reggie
Workman, no baixo, e os dedos mágicos de Grant Green na guitarra e
de Herbie Hancock ao piano. Ainda caberia trazer o obscuro bop
modal “Tom Cat”, em que Morgan se juntara, logo depois, às feras
Jackie McLean (sax alto), Curtis Fuller (trombone), McCoy Tyner
(piano), Cranshaw (baixo) e seu “padrinho” Art Blakey (bateria).
Porém, a fase era
tão produtiva que Morgan não ficou apenas nesses grandes feitos.
Outro deles pode ser considerado ainda mais revolucionário e
esplendoroso: “The Sidewinder”. Juntamente com o já
resenhado aqui nos ÁLBUNS FUNDAMENTAIS "Empyrean Isles",
de Hancock, compõe o duo de discos que lançaram, há exatos 50
anos, as bases do jazz-funk, inspirando toda uma geração de
jazzistas (Vince Guaraldi, Miles Davis, Green, Henri Mancini, João Donato, Don Salvador) além da soul music e do pop-rock. Foram
os discos que fizeram o jazz sair do chão. A beleza formal dos
acordes complexos ganha aqui ainda mais malícia, gingado, groove.
Nascido na
Filadélfia, o prodígio Edward Lee Morgan começou pré-adolescente
a soprar seu instrumento inspirado em Miles, Clifford Brown – seu
ídolo – e Dizzy Gillespie, com quem tocara no início da carreira.
Em 1956, aos 19 anos, tem a chance de integrar a The Jazz Massangers
de Blakey, mesmo ano em que assina pela primeira vez com o selo Blue
Note, do qual saiu quatro anos e sete discos depois. Nessa época já
se via o virtuosismo, a fluência e o vigor de seu toque, destacando
os poderosos registros agudos, estilo que foi aperfeiçoando ao longo
dos anos (inclusive, na célebre participação como sideman
em “Blue Train”, memorável álbum de John Coltrane de 1957). Até
que, após passagens por gravadoras menores, em 1963 retorna à
“casa” e, com a mão Rudy Van Gelder na mesa de som e produção
de Alfred Lion (além da sempre linda arte de Reid Miles na capa),
leva ao estúdio da Blue Note, em Nova York, os camaradas Cranshaw e
Higgins juntamente com as feras Joe Henderson, no sax alto, e a Barry
Harris, no piano, para registrar “The Sidewinder”.
Como todo bom
jazzista, Morgan é altamente ligado ao blues. Entretanto, ele injeta
ao rhythm’n’blues uma carga ainda inédita do funk oriundo
das ruas dos guetos urbanos, que tinham, desde os anos 50, na figura
de James Brown, Otis Redding, Solomon Burke e Aretha Franklin seus principais representantes. A química foi infalível. A faixa-título
faz as honras de abertura, mostrando como se faz jazz com
inteligência, apuro técnico e alma soul. Cranshaw dedilha um
acorde de quatro notas que desencadeia uma explosão de groove,
com Higgns, brilhante, metendo swing na caixa e no prato;
Harris, segurando tudo num gostoso tempo 2 x 2; e os sopros, que
mandam ver no chorus. Impossível não balançar o esqueleto!
Tão lindos quanto o improviso de Morgan, de Harris e de Henderson –
músico experiente como Morgan que de cara já diz a que veio –, o
de Cranshaw, atrevido, fecha a sequência de solos, quando a banda
retoma inteira para concluir o número. Para coroar o feito de
Morgan, ninguém menos que uma de suas principais inspirações,
James Brown, regravou a faixa menos de um ano depois. O Godfather of
Soul gostou tanto da homenagem que pôs a The James Brown Band a
executar uma mais acelerada versão de “The Sidewinder” em “James
Brown Plays James Brown: Yesterday and Today”, com nada menos que
um naipe de cinco metais à frente.
“Totem Pole”,
com base de acordes circulares do baixo, traz uma estrutura mais
tradicional do hard bop. Porém, os solos são de uma
malemolência inquestionável. Morgan arranja o seu numa combinação
orgânica com o piano de Harris, que dialoga com o trompete durante
todo o improviso. Nesta, Handerson, que já havia soltado as garras
na anterior, realiza um de seus mais memoráveis solos. Capaz de unir
a bossa-nova e o be-bop a um virtuosismo de cores parkerianas,
ele incrementa a música com seu estilo particular.
“Gary's Notebook”
traz ainda mais embalo e um riff complexo, tocado com simetria
pelos sopros. De encher os olhos. Morgan mais uma vez se dá o
direito de iniciar os improvisos, ditando um toque fluente e variante
que Henderson e Harris seguem com desenvoltura. Na mesma linha e
ritmo, "Boy, What A Night" é mais uma de impressionar pela
sincronia de toda a banda, seja no chorus ou nos momentos de
realce dos instrumentos. Desta vez, é o sax de Henderson que inicia
os trabalhos, num conceito interessante em que ele estende as notas,
criando intervalos diferenciados e elásticos. Que Morgan é sempre
um espetáculo é sabido; mas nesta Harris não fica para trás, seja
na marcação swingada da base, seja no solo, certamente o destaque
da faixa. Tomada de blues, a improvisação do piano bem poderia
figurar em qualquer rock de Little Richard ou Jerry Lee Lewis.
Colorida, “Hocus
Pocus” fecha o álbum em alto astral. Morgan eleva a escala, num
tocar radiante. Van Gelder inteligentemente deixa o microfone captar
ao fundo a empolgação de algum dos músicos, que acompanha com a
voz algumas frases dos instrumentos (provavelmente o próprio band
leader) – o que faz lembrar Charles Mingus em sua ode ao blues
“Oh Yeah”, de 1962. Henderson e Harris mantêm o clima e a
qualidade indiscutível. Perto do final, Higgns, dos principais
responsáveis pelo conceito do álbum, uma vez que o amarra de ponta
a ponta com um ritmo gingado e bluesy, ganha seus momentos de
improviso também, conversando com o trompete de Morgan. Este, por
sua vez, também não deixa terminar a gravação sem emitir suas
peculiares notas agudas, que surpreendem o ouvido e o deliciam ao
mesmo tempo.
“The Sidewinder”
entrou para a história como o maior sucesso de Lee Morgan, atingindo
o 10º lugar na categoria R&B da Billboard. Os anos subsequentes
iriam alçar o músico cada vez mais ao posto de um dos grandes do
jazz universal, ao lado de craques da sua geração como Sonny
Rollins, Hancock, Shorter, Henderson, Cannonball Adderley, Ornette
Coleman e Coltrane. Porém, como havia ocorrido com este último em
1967, vitimado por um câncer, os céus tinham outros planos para Lee
Morgan. Todo aquele talento foi bruscamente ceifado por um brutal
assassinato pelas mãos da própria esposa, de quem recebeu um tiro
no coração quando tocava num clube em Nova York em 1972. O motivo? Não se
sabe. O crime ainda hoje é mal explicado. O que a levou a cometer
tal ato? Será que, domesticamente, Morgan encarnava o tal “cara
mau” a quem o próprio se referiu? Não se sabe – e nem importa.
Resta, sim, sua obra, que somente um cara com uma boa dose de
“maldade” podia ter criado. Uma maldade no sentido de “malícia”.
Afinal, não há males que vêm para bem?
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FAIXAS:
1 -
The Sidewinder – 10:25
2 -
Totem Pole – 10:11
3 -
Gary's Notebook – 6:03
4 -
Boy, What a Night – 7:30
5 -
Hocus Pocus – 6:21
todas
as composições de Lee Morgan
Lee Morgan - "The Sidewinder"
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OUÇA
O DISCO:
por Daniel Rodrigues
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