"Quanto mais eu ouvia Jorge Ben, mais eu percebia que sua música é capaz de induzir
a um determinado estado de espírito: um estado de plenitude e força,
capaz de inspirar uma atitude altiva perante a vida.
Não por acaso sua lira é recheada de incríveis heróis, obstinados e orgulhosos guerreiros."
Paulo da Costa e Silva
"Ele é um enigma, porque ninguém sabe de onde vem a música de Jorge Ben (...)
Não é Jackson do Pandeiro, não é o pessoal do samba tradicional,
também não é um cara que "Ah, esse cara trouxe o rock pro Brasil",
como o Tim Maia trouxe o soul.
Ele faz samba com algum tempero de música pop, rock, que depois foi ampliando,
chegou até a juntar samba enredo com disco music, fez algumas fusões assim,
mas ele realmente é um enigma, porque foi a alquimia mental dele
que transformou o samba no que ele fez.
Ele criou um samba dentro do samba..."
Tárik de Souza
jornalista, escritor e crítico musical
Desde o primeiro momento em que dei de cara com os títulos da coleção "O Livro do Disco" fiquei enormemente empolgado com a ideia e com a iniciativa de examinar grandes discos de forma mais detida e aprofundada. Muito desse entusiasmo deve-se ao fato que o conceito da coisa é muito próximo ao que fazemos aqui no ClyBlog na seção ÁLBUNS FUNDAMENTAIS onde dissecamos grandes discos de todos os tempos e todos os estilos buscando enaltecer as grandes virtudes que fazem daquela obra um trabalho de exceção. O interessante é que, assim como a nossa seção aqui do blog, a coleção da editora Cobogó não se amarra a um formato apresentando linhas de construção e análise diferentes entre os autores, valorizando ainda mais o projeto e mantendo sempre renovado o interesse para a leitura dos demais números.
"Unknown Pleasures" do Joy Division, o primeiro que li, esmiuçado pelo jornalista Chris Ott, tinha uma abordagem um pouco mais precisa e técnica, fixando-se muitas vezes em números, datas, equipamentos, pormenores e etc., sem deixar no entanto de chamar atenção para letras, motivações e outros aspectos particulares da banda. Leitura extremamente válida e rica, especialmente para os interessados em cada detalhe da obra de uma banda que tinha um trabalho de pós-produção muito significativo em grande parte por conta de seu produtor, Martin Hannet, um gênio de estúdio que se por um lado era altamente excêntrico, por outro era extremamente profissional, perfeccionista e exigente.
Já "Daydream Nation" do Sonic Youth é mais emocional. O autor Matthew Stearns descreve cada elemento com um fervor e paixão admiráveis. Se o do Joy Division repassava tudo, inclusive os singles da época, neste do Sonic Youth, os capítulos formam os lados do LP e cada lado (de um disco duplo) apresenta cada uma das faixas.
O que trata do disco de Jorge Ben, "A Tábua de Esmeralda", do pesquisador Paulo da Costa e Silva, me surpreendeu uma vez que a proposta do autor foi a de não falar especificamente do disco e de suas faixas e sim abordá-lo de um modo mais amplo, mencionando suas músicas, é claro, mas não ordenando o livro e analisando uma a uma. O autor examina o interesse do cantor pelos assuntos de alquimia, misticismo e astrologia e como estes elementos funcionam dentro de sua obra sob diversos prismas como o da inventividade, o da transformação, o do comportamento, o da filosofia, o da modernidade, o do medievalismo. Embora não se detenha faixa a faixa, o autor se debruça mais atentamente sobre "Os Alquimistas estão Chegando" e toda a questão químico-místico-científica-filosófica que a envolve e como estes itens se traduzem na música de Jorge Ben, e mais aprofundadamente ainda sobre a canção "O homem da gravata florida (A gravata florida de Paracelso)", utilizando-a como ponto de convergência de uma série de ideias do compositor presentes no disco, para isso dedicando um capítulo inteiro a ela.
Paulo da Costa e Silva, com muito respeito e admiração, ainda discorre sobre o lugar que Jorge Ben ocupa na música brasileira e o posto único e diferenciado que lhe é garantido por sua forma de composição absolutamente ímpar e sem precedentes. Ainda sobre isso destaca a valorização do heróis na obra do cantor e o rol de grandes personagens que o mesmo construiu ao longo de sua obra sempre enaltecendo a humildade, a coragem, a bondade, a sabedoria, o gesto nobre, como um verdadeiro cavaleiro medieval.
A propósito dos heróis da galeria jorgebeniana, um capítulo é dedicado especialmente a Zumbi dos Palmares, personagem emblemático na história da escravidão negra no Brasil e que mereceu de Jorge duas versões musicadas, uma delas com o característico balanço samba-rock e caráter "visual" altamente ilustrativo no disco em questão, "o Tábua de Esmeralda"; e outra de tom desafiador e agressivo no disco "África Brasil" de 1976. "Zumbi" é tomada como exemplo da exaltação da negritude, sempre presente na música de Jorge Ben, ao mesmo tempo que traduz algumas de suas características compositivas mais marcantes como a aglomeração, muitas vezes improvável, de versos; a espontaneidade quase aleatória de sua batida, a miscelânea funk, soul, samba, rock e blues; e a formação de uma fotografia musical capaz de congelar no espaço momentos, situações, imagens e paisagens como poucas vezes se fez na música brasileira (Aqui onde estão os homens/ de um lado cana de açúcar/ do outro lado imenso cafezal/ ao centro senhores sentados/ vendo a colheita do algodão branco/ sendo colhido por mãos negras").
Se os outros livros da coleção me causaram sensações de descoberta, de informação, de empolgação, este por toda a merecida reverência a um dos artistas mais originais da música nacional, pelas menções ao heroísmo nobre de seus personagens; e ainda pela identificação com a exaltação da dignidade da negritude da qual Jorge Ben sempre procurou impregnar sua música, fizeram com que minha leitura fosse carregada de orgulho e emoção. Salve Jorge! Salve!
Cly Reis