Ir ao Museu de Arte do Rio, o
MAR, é sempre uma experiência
rica e penosa. Rica pelo óbvio: a qualidade das exposições que lá circulam, não
raro as mais bem curadas e capitalizadas que passam pelo Rio de Janeiro (esta,
por sinal, a cidade de maior concentração de grandes exposições do Brasil junto
ou até mais do que São Paulo). Mas também penosa porque, além de extensas (o
que, por mais gratificante que seja, é também cansativo), dificilmente se consegue
aproveitar tudo que o MAR oferece simultaneamente. No caso, foram seis mostras,
das quais pude, na companhia de
Leocádia e do amigo
Eduardo Almeida, ver com um
pouco mais de atenção três delas.
Uma destas, contudo, posso dizer que foi a melhor que
presenciei no Rio desta feita: “FUNK: Um grito de ousadia e liberdade”. Um
espetáculo. Com curadoria da Equipe MAR junto a Taísa Machado e ninguém menos
que o lendário Dom Filó – um dos principais ativistas da causa negra e
agitadores culturais do funk dos anos 70, responsável pela descoberta de que
ninguém menos que gente como a Banda Black Rio e Carlos Dafé –, a principal
mostra do ano do MAR perpassa os contextos do funk carioca através da história.
A temática da exposição apresenta e articula a história do funk, para além da
sua sonoridade, também evidenciando a matriz cultural urbana, periférica, a sua
dimensão coreográfica, as suas comunidades.
Para chegar aos morros e favelas onde o funk carioca se
tornou obra e sinônimo e estilo, a mostra traz com muita propriedade toda a construção
desdobramentos estéticos, políticos e econômicos ao imaginário que em torno
dele foi constituído, recuperando as audições públicas do início do século XX, os clubes para negros dos anos 40/50, os bailes hi-fi dos anos 60, até chegar, aí sim, no fenômeno das
festas black dos anos 70. Influenciados pelo movimento Black Power, Panteras Negras,
a Blackexplotation e, claro, a música soul norte-americana e outros, a galera tomou conta de ginásios e galpões da Zona Norte e
mandou ver no movimento mais libertário e dançante que o Brasil moderno já viu.
E tudo isso estava representado na exposição através de fotos, posters, pinturas,
capas de disco, e também em som, seja dos hinos funk até o poderoso off do
próprio Dom Filó. Ninguém melhor que ele para a tarefa de contar a história
daquele momento crucial para a cultura pop no Brasil, o que viria a dar no funk
carioca tal qual conhecemos.
Toda a parte que mostra a evolução do funk em terras
cariocas é bem interessante, evidenciando as etapas vividas nos anos 90, a
entrada no século XXI e o advento/chegada das novas tecnologias no morro. O
contraste – inevitável, proposital, ressignificado – entre pobreza e riqueza,
periferia e centralidade, comunidade e cosmopolitismo, é de uma riqueza
incalculável, muito a se assimilar. Porém, mesmo com bastante material, esta
segunda metade da exposição, mesmo sendo o crucial do projeto, não é tão
interessante quanto a sua primeira, a que traz a pré-história do funk do Rio.
Talvez pelo fascínio que a mim tem a era Black Rio, suas inspirações políticas,
comportamentais e culturais que bebem nos Estados Unidos, isso tenha me
prendido mais a atenção – embora tenha a sensação de que, documentalmente
falando, seja pelos áudios, obras, objetos, músicas, etc., esta parte
introdutória pareça mais completa.
Contudo, a principal sensação que se sai é a de que, enfim, chegamos aos espaços de arte. Embora eu não tenha relação e nem pertença ao universo do funk carioca (embora o seja contemporâneo, mesmo que de longe), a exposição fez-me aludir aos versos de Cartola em sua música "Tempos Idos", quando ele via seu samba assumindo a nobreza que lhe é merecida: "O nosso samba, humilde samba/ Foi de conquistas em conquistas/ Conseguiu penetrar no Municipal". Aqui, é a cultura pop na melhor acepção da palavra que adentrou os salões nobres das Belas Artes, o que suscita um sentimento de pertencimento. Ver meus ídolos da música pop negra brasileira - Black Rio, Dafé, Gerson King Combo, Tim Maia, Cassiano, Toni Tornado, Sandra Sá, Dom Salvador - e internacional - James Brown, Isaac Hayes, Parliament/Funladelic, Chic, Curtis Mayfield, Marvin Gaye - estampados, um mais bonito que outro, redimensionando suas belezas estéticas e simbólicas, é algo que realmente preenche o coração.
Todos os desdobramentos artísticos explícitos e implícitos são, no mínimo, admiráveis, se não objeto de muita apreciação e análise, como a hipnotizante dança do passinho, as pichações, a estética das armas, a sensualidade, a pele preta à mostra, a luz tropical, os cortes de cabelo. Na música, a constatação de que o funk carioca, original, é muito mais advindo dos ritmos africanos (inclusive do Nordeste da África, na Península Arábica) do que somente do funk importado dos states. Tem mais macumba do que enlatado.
Independentemente, vale a pena demais a visita ao MAR, nem que seja para ver apenas esta exposição. Mas se for, aviso: vá com tempo.
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Já na entrada, o maravilhoso corredor com as pichações iluminadas |
Recepção ao som de pukadão
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King Combo: mandamentos black, brother |
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Edu "tatuado" pela projeção de uma das obras de Gê Viana da série "Atualizações Traumáticas de Debret" |
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A pré-história do funk: Pixinguinha puxa Ângela Maria (esq.) pra dança e Jackson do Pandeiro punha be-bop no samba, tropicalizando a globalização - e não o contrário |
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As desbotadas cores dos antigos bailes hi-fi revistas por Gê Viana |
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O artista Blecaute também reconta os apagados eventos sociais negros do passado em novas cores |
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Mais de Gê Viana em sua série em que recria Debret: genial quebra do tempo simbólico e cronológico
Outra arte imponente, esta de Maria de Lurdes Santiago |
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Anos 60/70: as referências de fora chegaram. Nunca mais o mundo foi o mesmo |
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Reprodução de cartazes dos Black Panthers: a coisa ficou séria agora |
Eis que chega a Black Rio, potente como uma Maria Fumaça
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Dom Filó e sua turma da Soul Grand Prix, promotores das festas black da Zona Norte |
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Os pisantes, indispensáveis nos clubes soul em arte de André Vargas
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Tão indispensáveis quanto, as potentes
aparelhagens de som
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James Brown, uma das referências máximas da galera, em fotos no Brasil |
Os "times" liderados pelos grandes nomes da soul brasileira
Lindas fotos, maioria P&B, dos tempos dos bailes funk nas noites da Zona Norte carioca e seus sagrados palcos
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Encerrando a primeira parte da exposição, obras da genial gaúcha (e preta) Maria Lídia Magliani |
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Mais Magliani |
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Os corpos femininos sempre tão explorados... prenúncios de dança da bundinha |
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Já nos anos 90, a beleza dos passinhos se mistura à fúria violenta dos excluídos |
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Esta cocota que vos escreve rebolando até o chão |
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Corpos negros femininos quebrando padrões de beleza e gênero |
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Presença LGBTQIAP+ nas comunidades, outra força simbólica na cosmologia do funk |
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Pop art gay no morro: "Só tem no Brasil" |
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Sem concessões, a exposição mostra também mazelas como as drogas
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E esta incrível pintura, que mais parece serigrafia? |
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Funk também é afrofuturismo |
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Pra finalizar a exposição, uma frase cheia de sarcasmo que contraria os detratores
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texto: Daniel Rodrigues
fotos e vídeos: Daniel Rodrigues, Leocádia Costa e Eduardo Almeida
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