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segunda-feira, 22 de junho de 2020

Curtis Mayfield - "Curtis" (1970)



“Curtis escreveu um material que se tornou o exemplo clássico de como um negro inteligente, preocupado com a situação das pessoas, pode estabelecer novos objetivos e injetar orgulho na música. O talento único de Curtis combina uma melodia cativante, instrumentação interessante e comentários expressos que o levaram a um grande respeito na comunidade negra.”
Richard Robinson, para a revista Billboard

“Vidas negras importam”. 
Mensagem escrita em 
cartazes nas ruas norte-americanas 
durante as manifestações contra 
a morte de George Floyd

A história da música soul nos Estados Unidos é marcada pela revelação de talentos tão intensos que acaba sendo impossível de serem represados. O baterista contratado pela Motown estritamente para acompanhar bandas como Martha and the Vandellas e The Marvelettes no final dos anos 50 era também um cantor e compositor tão completo, que não demorou para a gravadora perceber que ele fazia jus em assinar sozinho os próprios trabalhos com o seu nome artístico: Marvin Gaye. Outro, o pianista da banda de Otis Redding nos anos 60, ganhou o protagonismo merecido antes mesmo daquela década terminar, tornando-se o genial “Black Mose” autor de “Shaft” e outras obras essenciais à música soul. Era um rapaz corpulento e de voz grave chamado Isaac Hayes.

Com Curtis Mayfield aconteceu algo semelhante. Um dos integrantes do grupo vocal de rhythm and blues de Chicago The Impressions, ele rapidamente destacou-se sobre seus companheiros, igualmente bons cantores como ele, mas não apenas pela afinadíssima voz tenor e, sim, pela incrível capacidade compositiva e de liderança que o diferia dos demais. Quem escuta os discos da banda, a qual pertenceu de 1963 a 1969, percebe que, desde a composição do primeiro sucesso, a clássica "Gypsy Woman", até o último disco como integrante, “The Young Mods' Forgotten Story”, todo escrito por ele, Curtis se tornara maior do que a Impressions. Ele não cabia mais num trio: precisava ser uno. Precisava alçar o voo solo.

Baldwin e Angela: referências
da luta racial nos anos 70
Vários fatores contribuíam para que a investida solitária de Curtis Mayfield fosse aguardada por público e crítica naquele início de anos 70. Aquele passo tinha tudo para representar uma guinada para alguém já experimentado como artista, pois acostumado com as paradas e com o showbizz, mas também de quem se esperava sintonia com o então efervescente momento de lutas raciais nos Estados Unidos. Fazia pouco que dr. King e Malcom X haviam sido assassinados, abrindo uma fenda emocional e de representatividade para a cultura negra. Em compensação, a ação dos Panteras Negras e o ativismo de figuras como Angela Davis e James Baldwin mantinham de pé as lutas pelos direitos civis. Mas dada a gravidade da situação, era preciso revoltar-se, e quanto mais (e qualificadas) vozes, melhor. A Sly & Family Stone já havia soltado o grito de resistência “Stand!”; Muhammed Ali defendia com punhos e verbos seu povo; James Brown versava as palavras do líder sul-africano Steve Biko: “Say it loud: I’m black and proud!” (“Diga alto: sou negro e orgulhoso!”); o movimento Black Power tomava as ruas exigindo “respect”. Porém, a comunidade negra precisava de mais, e Curtis, então com 28 anos, representava a ascensão e a afirmação de uma população segregada e violentada como cidadã. É nesse cenário que Curtis se lançava para um voo solo: carregando sobre suas asas a responsabilidade tanto artística quanto política da Black Music.

Ouvem-se, então, os primeiros acordes do disco: um som grave de baixo, que prenuncia um riff cheio de groove e inteligência musical. Talvez os “brothers and sisters” que a escutavam pela primeira vez naquele setembro de 1970 não percebessem que estavam diante de um dos mais célebres começos de disco de todos os tempos na música pop. Entram, na sequência, bongôs de matiz africano e vozes entrecruzadas levantando questões polêmicas, as quais são logo catalisadas pela do próprio Curtis, que anuncia com ecos retumbantes: “Não se preocupem: se houver um inferno abaixo de nós, para lá todos iremos!” É “(Don’t Worry”) If There's a Hell Below We're All Going to Go”, a arrebatadora faixa de abertura de um disco que não podia ter outro nome que não, simplesmente, “Curtis”. À exceção do tom pastel da capa, trata-se de um álbum negro em todas as dimensões possíveis: na sonoridade, no resgate da ancestralidade, na mensagem afirmativa e de denúncia e no comprometimento com o movimento negro.

Era a confirmação de que Curtis registrava sua emancipação como artista. A música conhecia pela primeira vez sua obra autoral, que abria com esse funk de reverências a James Brown e à africanidade. Curtis, consciente de seu papel, não fugia às discussões sérias, falando sobre preconceito, violência policial e repressão política: “Irmãs, irmãos e desfavorecidos/ negros e mulatos/ A polícia e os seus apoiadores/ Eles são todos os atores políticos”. “If There's...” antecipava outro trunfo da música soul daquele início de anos 70: a Blackexplotation. Quem escuta o primoroso arranjo de cordas, as percussões afro e o baixo marcado da faixa é impossível não associá-la às trilhas sonoras de filmes feitos com e para negros que “explodiriam” àquela época na indústria cinematográfica norte-americana – dentre as quais, a de “Superfly”, que Curtis assinaria poucos anos mais tarde.

Se o disco começa com algo que resume o estilo sofisticado de Curtis – as primorosas harmonias, os arranjos suntuosos, as cordas entusiasmadas, a levada groove da guitarra, o ritmo tão funky quanto fluido e, claro, o apurado falsete de sua voz –, agora ele, dono de seu rumo, queria mais. Queria tudo que lhe fosse de direito e de seus irmãos. “Other Side Of Town”, cuja abertura com harpas em cascata faz remeter à ideia de um sonho, é uma balada como as que se acostumara a escrever, mas com uma nova densidade tanto estilística quanto discursiva. O arranjo de metais dá-lhe um ar épico, como uma música triunfal da realeza africana, para, em contraste, fazer uma crítica ao apartheid a que os negros do gueto são submetidos socialmente. “Depressão faz parte da minha mente/ O sol nunca brilha/ Do outro lado da cidade/ A necessidade aqui é sempre de mais/ Não há nada de bom na loja/ Do outro lado da cidade/ (...) Minha irmãzinha, ela está com fome/ De um pão para comer/ O meu irmão me entrega sapatos/ Agora estão mostrando os pés”.

Curtis tocando ao vivo à época do disco:talento
confirmado como artista solo
"The Makings of You", novamente com o som da harpa bem presente, lembra bastante temas como “Keep On Pushing” e “For Your Precious Love” da Impressions, e comprova a incrível afinação de Curtis, que performa com sensibilidade e técnica tons agudos para cantar esta linda canção, que novamente traz as questões sociais. Porém, desta vez, relatando uma tocante cena: a de um rapaz que distribui doces para as crianças e as alegra por alguns instantes capazes de fazer com que o autor enxergue esperança “no amor da humanidade”.

A harmonia entre os homens, entretanto, está longe de se concretizar, e Curtis tinha consciência disso. Não à toa, vem, na sequência, a reflexiva “We People Who Are Darker Than Blue” (“Nós, pessoas que somos mais escuras que o azul”). Não por acaso também se trata de um lamentoso blues, o qual seu lindo canto cadencia versos como: “Nós, pessoas que somos mais escuras do que o azul/ Não há tempo para segregar/ Eu estou falando sobre marrom e amarelo também/ Garota tão amarela que você não pode contar/ Eu sou apenas a superfície do nosso poço profundo e escuro/ Se a sua mente puder realmente ver/ Você veria que sua cor é igual à minha”.

Outra preciosidade de "Curtis" é "Move on Up", grande sucesso da carreira solo do artista que prova o quanto ainda sabia escrever hits (a versão reduzida dos mais de 8 min originais passou 10 semanas no top 50 da parada de singles do Reino Unido em 1971, chegando ao 12º lugar, e se tornou um clássico da música soul ao longo dos anos). Esta empolgante soul, com exuberantes arranjos de cordas e metais, traz mais uma vez a intensa percussão afro e uma performance impecável de Curtis, responsável não apenas pela guitarra, mas por vários outros instrumentos. Aqui nota-se um músico totalmente dono de sua obra: ao mesmo tempo em que se vale de sua música para a crítica, também domina a arte de criar canções para as massas. Para os que acham que seu auge é "Superfly", "Move..." prova que este momento já estava em “Curtis”.

Curtis com a filha ainda criança,
nos anos 70
Na suingada e lúdica "Miss Black America", Curtis inicia dialogando com sua filha criança perguntando-lhe o que ela, em seus sonhos, se imagina quando crescer. A resposta induz a algo que, novamente, retraz as conquistas por direitos dos negros, uma vez que a recente vitória de uma mulher preta no concurso Miss Universo em 2019 (a sul-africana Zozibini Tunzi), ainda surpreende o mundo. "Wild and Free", com seus metais e cordas intensos, é mais um funk que reitera o discurso pelo respeito à causa racial e ao direito de ser "selvagem e livre". Agora, aliás, subindo o tom ao incrementar na letra a icônica mensagem anti-racismo "power to the people" ("Respeito por essas pessoas/ Poder para as pessoas/ Estabelecendo a velha geração/ Trazendo o novíssimo/ Selvagem e livre com a paz finalmente").

A suave "Give it Up" tem a primazia de fechar o brilhante debut de Curtis Mayfield, trabalho assustadoramente atual mesmo 50 anos após seu lançamento. A catarse mundial gerada pela revoltante morte do ex-segurança George Floyd, vitimado recentemente pela violência da polícia e da sociedade norte-americana, evidenciou o quanto as questões levantada neste disco, há cinco décadas, estão longe de serem resolvidas. Se o racismo ainda está aí, Curtis é morto desde 1999, quando, após complicações motivadas por um fatídico acidente que o deixara paraplégico, despedia-se prematuramente aos 57 anos. Só assim para frear o seu talento.

Embora não tenha feito o mesmo sucesso que seus contemporâneos de black music Marvin Gaye, Al Green, Stevie Wonder e Barry White, Curtis pode tranquilamente ser considerado integrante do.panteão dos grandes criadores da soul norte-americana. Ele é daqueles autores cuja obra demarca um “antes” e um “depois”, tanto pela beleza única de suas composições quanto pelo o que representou para o movimento negro e a luta pelos Direitos Civis norte-americanos naquele inicio de década de 70. O disco “Curtis” antecipa em um ano, inclusive, uma trinca de obras que se eternizaria, entre outras qualidades, justamente pelo teor de resistência: “What’s Going On”, de Gaye, “Pieces of a Man”, de Gil Scott-Heron, e “There’s a Riot Goin’ On”, da Sly. Curtis dizia que suas músicas sempre vieram de perguntas para as quais precisava de respostas. Vendo o quadro político-social de hoje ainda tão desigual, se estivesse vivo, 50 anos depois de ter levantado e respondido várias dessas questões, provavelmente voltaria numa delas e se indagaria: “o inferno, que eu pensava estar abaixo de nós, é aqui mesmo, então?”

Curtis Mayfield - "Move on Up"




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FAIXAS:
1. "(Don't Worry) If There's a Hell Below, We're All Going to Go" - 7:50
2. "The Other Side of Town" - 4:01
3. "The Makings of You" - 3:43
4. "We the People Who Are Darker Than Blue" - 6:05
5. "Move On Up" - 8:45
6. "Miss Black America" - 2:53
7. "Wild and Free" - 3:16
8. "Give It Up" - 3:49
Todas as composições de autoria de Curtis Mayfield

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OUÇA O DISCO
Curtis Mayfield - "Curtis"

Daniel Rodrigues

domingo, 8 de março de 2020

7 discos feitos para elas cantarem

ESPECIAL DIA DA MULHER
Eles compõem. Mas a voz é delas

por Daniel Rodrigues
com colaboração de Paulo Moreira

Michael Jackson e Diana Ross:
devoção à sua musa
Mestre Monarco disse certa vez que, embora a maioria quase absoluta de sambistas compositores sejam homens, nada sairia do zero sem a autoridade das pastoras. Se aquele samba inventado por eles entrasse numa roda de pagode e as cantoras da quadra não o "comprassem", ou seja, não o considerasse bom o suficiente para ser entoado, de nada valia ter gasto tutano compondo-o. Era como se nem tivesse sido escrito: pode descartar e passar para o próximo. Isso porque, segundo o ilustre membro da Velha Guarda da Portela, são as cantoras da comunidade que escolhem os sambas, que fazem passar a existir como obra de fato algo até então pertencente ao campo da imaginação. A voz masculina, afirma Monarco, não tem beleza suficiente para fazer revelar o verdadeiro mistério de um samba. A da mulher, sim.

Cale e Nico: sintonia
Talvez Monarco se surpreenda com a constatação de que seu entendimento sobra a alma da música vai além do samba e que não é apenas ele que pensa assim. Seja no rock, no pop, no jazz ou na soul music, outros compositores como ele partilham de uma ideia semelhante: a de que, por mais que se esforcem ou também saibam cantar (caso do próprio Monarco, dono de um barítono invejável), nada se iguala ao timbre feminino. Este é o que casa melhor com a melodia. Se comparar uma mesma canção cantada por um homem e por uma intérprete, na grande maioria das vezes ela é quem sairá vencendo.

A recente parceria de Gil
e Roberta Sá
Isso talvez não seja facilmente explicável, mas é com certeza absorvível pelos ouvidos com naturalidade. Por que, então, o Pink Floyd poria para cantar "The Great Gig in the Sky" Clare Torry e não os próprios Gilmour ou Waters? Ou Milton Nascimento, um dos mais admirados cantores da música mundial, em chamar Alaíde Costa especialmente para interpretar "Me Deixa em Paz" em meio a 20 outras faixas cantadas por ele ou Lô Borges em “Clube da Esquina”? Ao se ouvir o resultado de apenas estes dois exemplos fica fácil entender o porquê da escolha.

Nesta linha, então, em homenagem ao Dia da Mulher, selecionamos 7 trabalhos da música em que autores homens criaram obras especialmente para as suas “musas” cantarem. De diferentes épocas, são repertórios totalmente novos, fresquinhos, dados de presente para que elas, as cantoras, apenas pusessem suas vozes. “Apenas”, aliás, é um eufemismo, visto que é por causa da voz delas que essas obras existem, pois, mais do que somente a característica sonora própria da emissão das cordas vocais, é o talento delas que preenche a música. Elas que sabem revelar o mistério. “Música” é uma palavra essencialmente feminina, e isso explica muita coisa.

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Elizeth Cardoso – “Canção do Amor Demais” (1958)
Compositores: Antonio Carlos Jobim e Vinicius de Moraes

"Rua Nascimento Silva, 107/ Você ensinando pra Elizeth/ As canções de 'Canção do Amor Demais'", escreveu Tom Jobim na canção em que relembra quando, jovens, ele e o parceiro Vinicius compuseram um disco inteirinho para a então grande cantora brasileira: Elizeth Cardoso. Eram tempos de pré-bossa nova, movimento o qual este revolucionário disco, aliás, é o responsável por inaugurar. Mesmo que o gênero tenha ficado posteriormente conhecido pelo canto econômico por influência de João Gilberto e Nara Leão, o estilo classudo a la Rádio Nacional da “Divina” se encaixa perfeitamente às então novas criações da dupla, que havia feito recente sucesso compondo em parceria a trilha da peça “Orfeu da Conceição”, de 3 anos antes. Um desfile de obras-primas que, imediatamente, se transformavam em clássicos do cancioneiro brasileiro: “Estrada Branca”, “Eu não Existo sem Você”, “Modinha” e outras. O próprio João, inclusive, afia seus acordes dissonantes em duas faixas: a clássica “Chega de Saudade” e a talvez mais bela do disco “Outra Vez”.

FAIXAS
1. "Chega de Saudade"
2. "Serenata do Adeus"
3. "As Praias Desertas" 
4. "Caminho de Pedra"
5. "Luciana" 
6. "Janelas Abertas"
7. "Eu não Existo sem Você"   
8. "Outra Vez" 
9. "Medo de Amar" 
10. "Estrada Branca" 
11. "Vida Bela (Praia Branca)" 
12. "Modinha"  
13. "Canção do Amor demais"
OUÇA

Dionne Warwick‎ – “Presenting Dionne Warwick” (1963)
Compositores: Burt Bacharach e Hal David 


Raramente uma cantora começa uma carreira ganhando um repertório praticamente todo novo (cerca de 90% do disco) e a produção de uma das mais geniais duplas da história da música moderna: Burt Bacharach e Hal David. Mais raro ainda é merecer tamanho merecimento. Pois Dionne Warwick é esta artista. A cantora havia chamado a atenção de David e Bacharach, que estavam procurando a voz ideal para suas sentimentais baladas. Não poderia ter dado mais certo. Ela, que se tornaria uma das maiores hitmakers da música soul norte-americana – inclusive com músicas deles – emplaca já de cara sucessos como "Don't Make Me Over", "Wishin' and Hopin'", "Make It Easy on Yourself", "This Empty Place".



FAIXAS
1. "This Empty Place"
2. "Wishin' and Hopin'"  
3. "I Cry Alone"  
4. "Zip-a-Dee-Doo-Dah" (Ray Gilbert, Allie Wrubel)
5. "Make the Music Play"
6. "If You See Bill" (Luther Dixon)
7. "Don't Make Me Over"
8. "It's Love That Really Counts"
9. "Unlucky" (Lillian Shockley, Bobby Banks)
10. "I Smiled Yesterday"
11. "Make It Easy on Yourself"
12. "The Love of a Boy"
Todas de autoria David e Bacharach,, exceto indicadas
OUÇA

Nico – “The Marble Index” (1968)
Compositor: John Cale

Diferente de Dionne, Nico já era uma artista conhecida tanto como modelo, como atriz (havia feito uma ponta no cult movie “La Dolce Vita”, de Fellini) como, principalmente, por ter pertencido ao grupo que demarcaria o início do rock alternativo, a Velvet Underground, apadrinhados por Andy Wahrol e ao qual Cale era um dos cabeças ao lado de Lou Reed. Já havia, inclusive, gravado, em 1967, um disco, o cult imediato “Chelsea Girl”. Porém, coincidiu de tanto ela (que não gostara do resultado do seu primeiro disco) quanto Cale (de saída da Velvet) quererem alçar voos diferentes e explorar novas musicalidades. Totalmente composto, produzido e tocado por Cale, “Marble”, predecessor do dark, é sombrio, denso, enigmático e exótico. A voz grave de Nico, claro, colabora muito para essa poética sonora. A parceria deu tão certo que a dupla repetiria a mesma fórmula em outros dois ótimos discos: “Deserthore” (1970) e “The End” (1974).

FAIXAS
1. "Prelude"
2. "Lawns of Dawns"
3. "No One Is There"
4. "Ari's Song"
5. "Facing the Wind"
6. "Julius Caesar (Memento Hodié)"

7. "Frozen Warnings"
8. "Evening of Light"


Aretha Franklin – “Sparkle” (1976)
Compositor: Curtis Mayfield 


Na segunda metade dos anos 70, quando a era disco e a black music dominavam as pistas e as paradas, foi comum a várias cantoras norte-americanas gravarem discos com esta atmosfera. Aretha Franklin fez a seu modo: para a trilha sonora de um filme inspirado na história das Supremes, chamou um dos gênios da soul, Curtis Mayfield, para lhe escrever um repertório próprio. Deu em um dos melhores discos da carreira da Rainha do Soul, álbum presente na lista dos 200 álbuns definitivos no Rock and Roll Hall of Fame. As gingadas “Jump” e “Rock With Me”, bem como as melodiosas ‘”Hooked on Your Love”, “Look into Your Heart” e a faixa-título, não poderiam ter sido compostas por ninguém menos do que o autor de “Superfly”.



FAIXAS:
1. "Sparkle" 
2. "Something He Can Feel" 
3. "Hooked on Your Love" 
4. "Look into Your Heart" 
5. "I Get High" 
6. "Jump" 
7. "Loving You Baby"
8. "Rock With Me"


Diana Ross – “Eaten Alive!” (1985)
Compositor: Barry Gibb



Já que lembramos das Supremes, então é hora de falar da mais ilustre do conjunto vocal feminino: Diana Ross. Com uma longa discografia entre os discos com a banda e os da carreira solo, em 1985 ela ganha de presente do amigo e admirador Barry Gibb, líder da Bee Gees, baladas e canções pop esculpidas para a sua voz aguda e sentimental. De sonoridade bem AOR anos 80, o disco tem, além de Gibb, a da devoção de outro célebre músico à sua idolatrada cantora: Michael Jackson. Seu ex-parceiro de palcos, estúdios e de cinema, o autor de “Thriller” coassina a esfuziante faixa-título para a sua madrinha na música. Merecida e bonita homenagem.



FAIXAS:
1. “Eaten Alive”
2. “Oh Teacher” 
3. “Experience” 
4. “Chain Reaction”
5. “More And More” 
6. “I'm Watching You”
7. “Love On The Line” 
8. “(I Love) Being In Love With You” 
9. “Crime Of Passion” 
10. “Don't Give Up On Each Other”


Gal Costa – “Recanto” (2011)
Compositor: Caetano Veloso

A afinidade de Caetano e Gal é profunda e vem de antes de gravarem o primeiro disco de suas carreiras juntos, em 1966, “Domingo” – quando ele, aliás, compôs as primeiras músicas para a voz dela, como as célebres “Coração Vagabundo” e “Avarandado”. Ela o gravaria várias vezes durante a longa carreira, não raro com temas escritos especialmente. “Recanto”, disco que já listamos em ÁLBUNS FUNDAMENTAIS e entre os melhores da MPB dos anos 2010, é, de certa forma, a maturidade dessa relação pessoal e musical de ambos. “Recanto Escuro” e “Tudo Dói” são declarações muito subjetivas de Caetano tentando perscrutar a alma de Gal, o que vale também para o sentido inverso. Referência da música brasileira do início do século XXI, o disco, que tem a ajuda fundamental de Kassin e Moreno nos arranjos e produção, é, acima de tudo, a cumplicidade entre Caê e Gal, estes dois monstros da música, vertida em sons e palavras.

FAIXAS
1. Recanto Escuro
2. Cara do Mundo 
3. Autotune Autoerótico 
4. Tudo Dói 
5. Neguinho 
6. O Menino
7. Madre Deus 
8. Mansidão 
9. Sexo e Dinheiro 
10. Miami Maculelê 
11. Segunda


Roberta Sá – “Giro” (2019)
Compositor: Gilberto Gil 


Talvez este seja o único caso entre os listados em que a cantora não está à altura do repertório que recebeu. Não que Roberta Sá não tenha qualidades: é afinada, graciosa e tem lá a sua personalidade. Mas que sua interpretação fica devendo à qualidade suprema da música do mestre Gil fica. “Giro”, no entanto, é bem apreciável, principalmente faixas como “Nem”, “Afogamento”, “Autorretratinho” e “Ela Diz que Me Ama”, em que a artista potiguar consegue reunir novamente Gil e Jorge BenJor, num samba-rock típico deste último: os contracantos, o coro masculino como o do tempo do Trio Mocotó e a batida de violão intensa, a qual Gil – conhecedor como poucos do universo do parceiro –, se encarrega de tocar.




FAIXAS
1. “Giro”
2. “O Lenço e o Lençol”
3. “Cantando As Horas”
4. “Ela Diz Que Me Ama”
5. “Nem”
6. “Fogo de Palha”
7. “Autorretratinho”
8. “A Vida de um Casal”
9. “Xote da Modernidade”
10. “Outra Coisa”
11. “Afogamento”

quinta-feira, 18 de junho de 2015

Ornette Coleman – “The Shape of Jazz to Come” (1959)



"Ornette é um dos meus astronautas favoritos"
Wayne Shorter


“’Kind of Blue’ era um álbum bonito, delicado,
mas não lembro de ele ter realmente
virado minha cabeça na época.
 Então, quando Ornette surgiu,
 ele de fato soava como se
 pertencesse a uma outra era, 
a um outro planeta.
A novidade estava ali”.
Joe Zawinul



Chego ao meu 50° ÁLBUM FUNDAMENTAL por um motivo especial. Embora todos os discos sobre os quais escrevi sejam caros a mim, quando percebi que chegava a essa marca não queria que fosse apenas mais um texto. Tinha que ser por um motivo especial. Escreveria sobre os artistas brasileiros a quem ainda não resenhei: Chico BuarqueEdu LoboMilton NascimentoPaulinho da Viola? Ou das minhas queridas bandas britânicas, como The CureThe SmithsCocteau Twins, Echo and The Bunnymen? De algum dos gênios da soul, Gil Scott-Heron, Otis Reding, Curtis Mayfield, que tanto admiro? Do para mim formativo punk rock (Stranglers, Ratos de Porão, New York Dolls)? Obras consagradas de um Stravinsky ou alguma sinfonia de Beethoven? Outro de John Coltrane ou Miles Davis? Nenhum desses, no entanto, me pegava em cheio. A resposta me veio no último dia 11 de junho, quando o saxofonista norte-americano Ornette Coleman deu adeus a esse planeta. Aos 85 anos, Coleman morreu deixando não apenas o mérito da criação do free-jazz como uma das mais revolucionárias obras do jazz. A cristalização da proposta de inovação musical – e espiritual – de Coleman veio pronta já em seu primeiro disco, o memorável “The Shape of Jazz to Come”.

Gravado no mesmo ano de 1959 que pelo menos outros dois colossos do jazz moderno – "Kind of Blue", de Miles, arcabouço do jazz modal (agosto), e “Giant Steps”, de Coltrane, a cria mais madura do hard-bop (dezembro) –, “The Shape...”, vindo ao mundo a 22 de maio, não aponta para o lado de nenhum deles. Pelo contrário: engendra uma nova direção para a linha evolutiva do estilo. Nascido no Texas, em 1930, Coleman era daquelas mentes geniais que não conseguiam pensar “dentro da caixa”. No início dos anos 50, já em Nova York, nas contribuições que tivera na banda de seu mestre, o pistonista Don Cherry, ele, saudavelmente incapaz de seguir as progressões harmônicas do be-bop, já demonstrava um estilo livre de improvisar não sobre uma base em sequências de acordes, mas em fragmentos melódicos, tirando do seu sopro microtons e notas dissonantes, arremessadas contra às dos outros instrumentos, contra si próprias. Fúria e espírito. Carne e alma.

Seu processo era tão complexo que, exorcizando clichês, atinge um patamar até psicanalítico de livre associação e reconstrução do inconsciente coletivo, o que levou um dos pioneiros do cool jazz, John Lewis, a dizer: “Percebi que Coleman cunhou um novo tipo de música, mais semelhante ao ‘fluxo de consciência’ de James Joyce do que o entretenimento operado por Louis Armstrong com sua variação sobre uma melodia familiar”. Se na literatura este é seu melhor comparativo, faz sentido colocá-lo em igualdade também a um Pollock nas artes plásticas ou um Luis Buñuel no cinema. Na música, remete, claro, a Charlie Parker e Dizzie Gillespie, mas tanto quanto a compositores atonais da avant-garde como John Cage e György Ligeti.

Em “The Shape...”, a desconstrução conceitual já se dá na formação da banda. Traz o desconcertante sax alto de Coleman, a bateria ensandecida de Billy Higgins, o duplo baixo de outro craque, Charlie Haden (de apenas 22 anos à época), e o privilégio de se ter o próprio Cherry, com sua mágica e não menos desafiadora corneta. Nada de piano! Tal proposta, tão subversiva da timbrística natural do jazz a que Coleman convida o ouvinte a apreciar, assombra de pronto. “Lonely Woman”, faixa que abre o disco, é uma balada fúnebre e intempestiva. O free jazz, consolidado por Coleman um ano depois no LP que trazia o nome do novo estilo, dá seus primeiros acordes nesse brilhante tema. Dissonâncias na própria estrutura melódica, compasso discordante da bateria e um baixo inebriado que parece buscar um plano etéreo, longe dali. Algo já estava fora da ordem, anunciava-se. Coleman e Cherry, pupilo e mestre, equiparados e expondo uma nova construção composicional aberta, incerta, em que a música se cria no momento, numa exploração dramática conjunta.

Na revolução do free jazz, cada membro é tão solista quanto o outro. “Eventually”, um blues vanguardista em alta velocidade, e “Peace”, com seus 9 minutos de puro improviso solto, sem as amarras do encadeamento tradicional, são mostras disso. Cada músico está ligado ao outro primeiramente pelo estado de espírito, não apenas pela habilidade técnica. E eles perdem o apelo momentâneo? Jamais, apenas o centro melódico é outro. Os riffs e o tom estão lá como os do be-bop; a elegância do blues trazida do swing também. Mas o conceito e a dinâmica aplicados por Coleman e seu grupo fazem com que se desviem das formas tradicionais a as diluam, direcionando a uma tonalidade expandida como praticaram Debussy, Messiaen e Stravinsky.

Nessa linha, "Focus on Sanity" se lança no ar inquieta, mas logo freia para entrar o maravilhoso baixo de Haden, suingando, serenando-a. Não por muito tempo: por volta dos 2 minutos e meio, Coleman irrompe e o grupo retorna em ritmo acelerado para seu novo solo da mais alta habilidade de fúria lírica. O mesmo faz Cherry, que entra raspando com o pistão e forçando que o compasso reduza-se novamente. “Foco” e “sanidade”, literalmente. A inconstância desse número dá lugar ao blues ligeiro "Congeniality". Mais “comportada” das faixas, traz, entretanto, a fluência do quarteto dentro de um arranjo em que se prescinde da referência harmônica das cordas – o piano. Pode parecer um be-bop comum, mas, ditado pela intuição e não pelo arranjo pré-estabelecido (tom, escala, variação), definitivamente não é. Fechando o álbum, “Chronology” mais uma vez ataca na desconstrução da progressão acorde/escala. As explosões emocionais súbitas de Coleman e seu modo atritado e carregado de tocar estão inteiros neste tema.

Wayne Shorter, Anthony Braxton, Eric Dolphy, Albert Ayler, Pharoah Sanders e o próprio Coltrane, mesmo anterior a Coleman, não seriam os mesmos depois de “The Shape...”. O fusion e o pós-jazz nem existiriam. Coleman influenciou não apenas jazzistas posteriores como, para além disso, roqueiros do naipe de Jimi Hendrix, Don Van VlietFrank Zappa e Roky Erickson. Ele seguiu aprofundando esse alcance em vários momentos de sua trajetória. No ano seguinte ao de sua estreia, emenda uma trinca de discos, começando pelo já referido “Free Jazz” (dezembro) mais “Change of the Century” (outubro) e “This Is Our Music” (agosto). Em 1971, surpreende novamente com a sinfonia cageana “Skies of America”, para orquestra e saxofone. No meio da década de 70, ainda, adere ao fusion, quando lança o funk-rock “Body Meta” (1976), recriando-se com uma música dançante e suingada.

Além disso, Coleman teve a coragem de legar ao jazz um sobgênero, o que, juntamente com o contemporâneo “Kind of Blue”, referência inicial do jazz modal, ajudou a desafiar conceitos e padrões estabelecidos. O jornalista e escritor Ashley Kuhn, em “Kind of Blue: a história da obra de Miles Davis”, recorda a receptividade de “The Shape...” à época entre músicos e críticos, os quais vários deles (como um dos pioneiros do fusion, o pianista Joe Zawinul), colocavam os dois discos em polos opostos: free jazz versus modal. No entanto, como ressalta Kuhn: “No fim das contas, Coleman e Davis parecem mais filosoficamente compatíveis do que musicalmente opostos: ambos dedicaram suas carreiras a reescrever as regras do jazz”.

Desde que meu amigo Daniel Deiro, que mora em Nova York, disse-me anos atrás tê-lo assistido em um bar da Greenwich Village, fiquei esperançoso de também vê-lo no palco um dia. Não deu. O astronauta do jazz, capaz de fazer quem o ouve também flutuar sem gravidade, deixa como suficiente consolo uma obra gigantesca e densa a ser decifrada, sorvida, descoberta. Como a de um Joyce, Pollock ou Buñuel. Se a função do astronauta é desbravar o espaço, Ornette Coleman cumpriu o mesmo papel através da arte musical, que ele tão bem soube explorar em sua dinâmica atômica e imaterial através da propagação dos sons no ar, na atmosfera. E o fez de forma livre, como bem merece um free jazz. Agora, então, foi ele que se libertou para poder voar sobre outros planetas igual à sua própria música.

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FAIXAS:
1. "Lonely Woman" - 4:59
2. "Eventually" - 4:20
3. "Peace" - 9:04
5. "Focus on Sanity" - 6:50
5. "Congeniality" -  6:41
6. "Chronology" - 6:05

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OUÇA O DISCO:






sábado, 9 de maio de 2015

Lucas Arruda – “Sambadi” (2013)





Musicalmente falando, eu acho que o que estou fazendo é, basicamente, a continuação de uma estética de linguagem musical que existe no Brasil desde os anos 60 e 70, mas que de repente ficou meio esquecida por aqui.”
Lucas Arruda

Esse cara é um gênio. Para mim, ele salva esse cenário supermedíocre de hoje”.
Ed Motta

Ano passado publiquei aqui no Clyblog uma lista dos meus melhores discos instrumentais brasileiros de todos os tempos. Salvo a minha ignorância de não listado a obra-prima de Robson Jorge e Lincoln Olivetti, de 1982 (menção esta aqui com a qual me sinto agora livre do justo espancamento), um que não incluí, pois ainda não o conhecia nem o entendia suficientemente devido à sua recência, é “Sambadi”, de Lucas Arruda, de 2013. Considero, no entanto, que desfaço agora duplamente a injustiça ao sagrá-lo como um ÁLBUNS FUNDAMENTAIS, tanto por destacá-lo assim, exclusivamente, como pelo fato de ser o álbum mais recente sobre o qual já escrevi entre os meus mais de 40 para esta seção.

O certo é que esse destaque não se sustenta por um sentimento de culpa. “Sambadi” é que é muito bom. Primeiro disco deste talentoso jovem capixaba multi-instrumentista radicado no Rio de Janeiro, é ao mesmo tempo um trabalho autoral e raro na música brasileira dos últimos 20 anos como também uma homenagem aos ídolos da soul music e do samba-jazz brasileiro, forte nos anos 60 e 70 mas gradativamente desvalorizado a partir dos 80. O resultado é um disco semi-instrumental altamente sofisticado pela habilidade de Lucas, responsável por praticamente todos os instrumentos (a bateria, único que ele não toca, é de seu irmão, Thiago Arruda). As referências vão dos mestres norte-americanos Stevie Wonder, Curtis Mayfield e George Duke aos brasileiros Tamba Trio, Azimuth, Marcos Valle, Black RioSambrasa Trio, Ed Motta, os próprios Robson Jorge, Olivetti, entre outros dentre os que dominam o legado da MPB e o manancial estético oferecido pelo jazz e o R&B.

“Physis” dá a cara da abertura com uma linha de sintetizador marcando acordes que vão e voltam, acompanhados por vocalises de Lucas. Ao fundo, um clima muito brasileiro se forma com sons da natureza de nossa flora e fauna. Prenúncio da brasilidade que se sentirá fortemente a partir dali. Sem dar tempo de respirar, a primeira faixa emenda com “Tamba”, um samba-funk gostoso e sofisticado no qual Lucas manda ver em lindos improvisos de seus teclados (piano, Fender Rhodes e sintetizador). Nos tons médios, a guitarra, numa levada de mexer o esqueleto, sustenta a base junto com o Rhodes e a batida sincopada da caixa, enquanto o baixo e o bumbo mantém a seção grave. Afora a visível homenagem ao famoso trio de bossa-jazz dos anos 60 comandado pelo pianista Luiz Eça, a sonoridade remete mesmo durante todo o disco fortemente à Azimuth, outra grande banda da mistura de jazz e MPB, porém esta, já setentista, com o espírito fusion de então.

Aliás, a arquitetura timbrística de “Sambadi” respira o tempo todo a Rio de Janeiro e a essa atmosfera da Azimuth, e isso por dois motivos. Primeiro, pelo arranjo e produção serem do próprio Lucas Arruda, que encerra todas as músicas do disco dentro do mesmo conceito sonoro: bateria e/ou percussão e/ou programação de ritmo (uma ou duas juntas no máximo), guitarra, baixo, piano elétrico e sintetizador ou Fender Rhodes. Fora um ou outro instrumento ocasional (cavaquinho, violão) ou voz, as texturas do disco são permanentemente essas, o que lhe dá bastante coesão. E essa sonoridade é muito Azimith, principalmente no mitológico "Light as a Feather", de 1979, porém adicionando a isso a limpidez dos estúdios digitais de hoje. Segundo: quem executa tudo é apenas um músico: o próprio autor – fora a bateria, que também vêm de alguém do sangue Arruda. E com tamanho talento, tudo funciona redondinho. “Batuque” (outra referência a seus mestres, nesse caso, o clássico “Batucada Surgiu”, dos irmãos Valle, de 1967) acelera o ritmo mas mantém a mesma malemolência e elegância. Na percussão, além da bateria, um agogô joga o ouvinte pra dentro de um terreiro de samba. Nesta, Lucas investe em solos não só de seus teclados, mas também da guitarra, tudo sob uma linha de baixo 4/4 maravilhosa a la Ron Carter que lembra as realizadas pelo baixista norte-americano nas memoráveis gravações com os brasileiros Airto Moreira, Tom Jobim e Hermeto Paschoal.

A black music ganha um preito especial em “Who’s that Lady”, de autoria de O'Kelly Isley, do grupo soul norte-americano Isley Brothers, das poucas cantadas do disco. Clima sensual e charmoso nesse AOR que podia rodar em qualquer rádio retrô tipo Continental que os desavisados achariam que foi gravada nos anos 70. Sem percussão, apenas no piano elétrico e sintetizador, “Rio Afternoon”, na sequência, é quase uma vinheta atmosférica como a inicial “Physis”, demarcando agora o começo de uma nova seção do disco, como se o CD tivesse o lado B do vinil. Essa segunda parte começa com a também curta “Na Feira”, um baião hi-tech, provando o quanto Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira são sofisticados.

Tudo isso faz cama para a excepcional faixa-título em seus cerca de cinco minutos de puro desenvolvimento de solos e perícia nas linhas de base. O espírito nordestino se mantém na marcação metálica de um triângulo, que vem com os keyboards espaciais do Rhodes e uma rica linha de guitarra ao estilo Nile Rodgers. Uma programação eletrônica, associada à bateria e a percussões, aponta o ritmo. O baixo, entretanto, é um destaque à parte, denotando o quanto Lucas é ouvinte atento de suas fontes. Com uma letra quase incidental, ele canta versos que mais fazem dar sentido melódico à ideia de “samba de” (“Sambadi balada/sambadi quebrada/ sambadi embolada/ sambadi linha do mar...") do que para inventar poesia. A melodia, swingada e requintada, algo entre o samba e o funk, dá espaço tanto para os solos quanto para floreios dos instrumentos, principalmente da guitarra e do Rhodes.

Outra aberta lembrança à Azimuth, “Carnival” (alusão à “Jazz Carnival”, sucesso da banda de José Roberto Bertrami) põe ainda mais groove no samba. Já “Alma Nova” faz cair novamente o ritmo para aclimatar uma bela bossa-nova romântica, a última com letra de verdade. Lucas canta com leveza e afinação sobre uma batida de violão sincopada, característica do estilo, somada a um acompanhamento na bateria do irmão Thiago digno de um Milton Banana ou um João Palma. O piano e o Rhodes estão ali funcionando no arranjo como integradores da faixa ao restante do repertório mesmo com a estética distinta que a bossa-nova impõe. Para arrematar, uma nova sequência de “Tamba”, finalizando o álbum novamente com um instrumental de alto virtuosismo.

Festejado por gente do calibre de Ed Motta, por quem a admiração é recíproca, o surgimento de Lucas Arruda vem como um raiar de esperança na música brasileira contemporânea tão infestada pelo medíocre, conformada com o mediano e, quando melhor que isso, ainda ditada por artistas de gerações (bem) anteriores. Ironicamente, o que acontece com Lucas Arruda é a repetição do que muitas vezes já se viu em terras tupiniquins: seu trabalho foi apreciado antes no exterior (no caso dele, Europa e Japão) para depois receber atenção aqui. Pouca, diga-se de passagem. E se a galera da MPB pós-bossa-bova está toda na faixa dos 70 anos, o aparecimento de um guri de apenas 32 de idade (30 quando gravou “Sambadi”) é no mínimo alentador. Com uma estreia luminosa como essa isso se torna ainda mais promissor. Neste sentido, não parece coincidência que seu novo CD, lançado em março desse ano (novamente primeiro no exterior) traga um título consideravelmente simbólico: “Solar”.

Lucas Arruda - Sambadi (Radio Edit)
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FAIXAS:
1. Physis - 1:15
2. Tamba, Pt. 1 - 7:10
3. Batuque - 5:38
4. Who's That Lady (O'Kelly Isley) - 3:40
5. Rio Afternoon - 1:37
6. Na Feira - 1:29
7. Sambadi - 5:18
8. Carnival - 3:30
9. Alma Nova (Arruda/Fabricio Di Monaco) - 5:33
10. Tamba, Pt. 2 - 4:41

todas as composições de autoria de Lucas Arruda, exceto indicadas.
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quarta-feira, 16 de outubro de 2019

Música da Cabeça - Programa #132


Enquanto a Venezuela segue ladeira abaixo e o Bozo espera sentado a indicação do Trump pra OCDE, a gente aqui curte uma boa Música da Cabeça. Nós e esse monte de artistas legais que vão pintar por aqui hoje: Seal, Curtis Mayfield, Nei Lisboa, King Crimson, New Order, Los Calvos e outros. Tem quadro "Música da Fato", "Palavra, Lê" e um "Cabeça dos Outros", quando é o ouvinte que escolhe o que ouvir. Pra curtir também, é só vir conosco na Rádio Elétrica, às 21h. Produção e apresentação: Daniel Rodrigues.


Rádio Elétrica:
http://www.radioeletrica.com/

sexta-feira, 18 de setembro de 2020

Donald Byrd - "Black Byrd" (1973)



"Há muito tempo, dentro e fora da música, Donald é um pesquisador. Ele continua buscando e absorvendo experiências. Quanto ao seu futuro na música, na opinião do próprio Donald, 'o céu é o limite'".
Nat Hentoff, texto da contracapa original do disco

Um dos melhores e mais perfeitos álbuns que já ouvi. Foda, foda, foda! Os puristas gritaram de indignação quando Donald Byrd lançou "Black Byrd", uma incursão completa no R&B que irrompeu em um fenômeno popular. Byrd foi considerado um vendido e um traidor de suas credenciais no hard bop, especialmente depois que "Black Byrd" se tornou o álbum mais vendido da história do Blue Note. O que os elitistas perderam, porém, foi que "Black Byrd" foi o momento em que a marca de fusão de Byrd finalmente saiu da sombra de sua principal influência, Miles Davis, e encontrou uma voz própria e distinta. Nunca antes um músico de jazz abraçou o som e o estilo de celebração do funk contemporâneo tão completamente quanto Byrd fez aqui - nem mesmo Davis, cujo dark funk da selva caótico contrastava fortemente com a música alegre e dançante do "Black Byrd".

Byrd dá rédea solta ao produtor/arranjador/compositor Larry Mizell, que cria uma série de peças melódicas fortemente focadas, muitas vezes em dívida com as orquestrações mais longas de Isaac Hayes e Curtis Mayfield. Eles são construídos sobre os ritmos funk mais simples que Byrd já enfrentou, e se as estruturas não são tão soltas ou complexas como seu material de fusão anterior, elas compensam com um senso funky de groove que é quase irresistível.

Os solos de Byrd são principalmente melódicos e econômicos, mas isso permite que o funk ocupe o centro do palco. Claro, talvez o piano elétrico, os efeitos sonoros e a onipresente flauta de Roger Glenn datem um pouco a música, mas isso é realmente parte de seu charme. "Black Byrd" era o que há de mais moderno para a época e estabeleceu um novo padrão para todas as futuras fusões jazz/R&B/funk - das quais havia muitas. Byrd continuaria a refinar esse som em álbuns igualmente essenciais como "Street Lady" e os fantásticos "Places and Spaces", Mas "Black Byrd" se mantém como sua declaração de assinatura inovadora.

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FAIXAS:

1. "Flight Time"  - 8:31
2. "Black Byrd" - 7:21
3. "Love's So Far Away"  - 6:01
4. "Mr. Thomas"  (L. Mizell/W. Jordan) - 5:04
5. "Sky High"  5:57
6. "Slop Jar Blues" - 5:39
7. "Where Are We Going?" (L. Gordon/ L. Mizell) - 4:39
Todas as composições de autoria de Larry Mizell, exceto indicadas


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por Daniel Vicini