“- O groove é uma batida do
coração.
Mexe com tudo em você, forte e simples.
Isso é groove.
- E como você se define
exatamente?
- Acabei de definir, moça.”
Diálogo entre James Brown e uma
repórter do filme
“James Brown – Get on Up”,
que estreia no Brasil este ano
Considero-me uma pessoa do meu tempo, por isso não lamento não ter
vivido determinado momento no passado. Com raras exceções. Queria ter estado, por
exemplo, em 1913, na estreia d’”A Sagração da Primavera”, de Stravinsky, quando
a companhia Ballets Rousses, coreografada por Nijinsky, escandalizou Paris e o
mundo com aquilo que se tornaria uma revolução nas artes cênicas e na música
contemporânea. Também, se pudesse, estaria em 1940, na première de "Cidadão Kane", clássico divisor de águas do cinema
moderno, de Orson Welles, quando, indignados com tamanhos “atrevimento” e “impropriedade”, exibidores jogavam na calçada da entrada de seus cinemas os
rolos do filme para quem quisesse ficar com “aquilo”. Queria ter visto a
surpresa na cara dos espectadores dentro da sala de cinema deparando-se com
aquela narrativa irregular e até então inédita (vejam que não tem nada de homem
pisando na lua ou título da Seleção de 70).
Pois outro desses raros eventos que gostaria de ter vivido é o show que
James Brown apresentara no Apollo Theatre, casa de espetáculos encravada no
bairro negro do Harlem, em Nova York, naquelas duas históricas noites de 24 e
25 de junho de 1967. À época, nem pensava
em nascer ainda. Mas para a minha felicidade e de toda a humanidade, esta
apresentação foi registrada e transformada em dois LP’s um ano depois, o que
diminui em parte meu pesar. Não dá pra enxergar Mr. Dynamite dançando
enlouquecidamente, seus trejeitos sensuais, sua boca gesticulando para cantar,
a expressão delirante no rosto do público, o suor escorrendo de sua testa e da dos
integrantes da banda enquanto sustentam o som minutos a fio para Brown entreter
a plateia. Não, não dá pra ver. Mas se sente. O show é tão contagiante, tão
efusivo, tão emocionante que é quase como estar lá presente, no meio da galera.
Delirando.
A exemplo do primeiro volume por ele gravado no mesmo teatro, em 1962, “Live
at the Apollo” é esfuziante. Uma aula de soul
music. O script em si já contém
pompas de grande espetáculo. Antes de começar o show, o mestre-de-cerimônias Charles
Bobbit entra no palco e anuncia, em ordem cronológica, os números que serão
executados, ditando o título de cada um intercalado por um golpe na caixa da
bateria. Como que dissesse: “preparem-se,
pois vem aí chumbo grosso!”. E de fato é o que acontece. Finalizada a abertura,
ouve-se Bobbit dizendo efusivamente: “James
Brown, ladies and gentlemens!” A partir dali entra-se no mundo do Godfather
of Soul. Brown sobe ao palco, enlouquecendo a plateia, que explode em festa.
Imediatamente, o clássico “Think” começa a tocar seu ritmo contagiante de mais
puro rithum n’ blues. Em dueto com Marva
Whitney, Brown dá início àquela apresentação, que se tornaria memorável.
Mal “Think” termina e já emenda com “I Wont to be Around”, uma das
baladas do repertório, que fez o ritmo desacelerar. Em compensação, os ânimos
continuam a mil, dada a sensualidade e o groove
que se emitem da rouca voz de Brown. Que vocal! Uma naturalidade e um alcance
de tons impressionantes, que variam da emissão mais sussurrada ao famoso grito
agudo, sua marca registrada, que só um verdadeiro cantor gospel criado nas
igrejas Batista americanas é capaz de fazer. A banda, bem como a Famous Flames,
dupla vocal formada por Bobby Byrd e Bobby Bennett que acompanha o grupo, está
afiadíssima. É o que se vê no R&B “That’s Life” e no bluesão “Kansas City”.
Depois de uma pausa, anunciada por Bobbit, o show reinicia, passando a ter
apenas composições do próprio Brown (à exceção da linda “Prisioner of Love”), e
aí a coisa esquenta de verdade! Uma sequência funk de tirar o fôlego engata
“Let Yourself Go”, “There Was a Time”, “I Feel All Right” (na qual ele começa
sua interatividade com a plateia, brincando com os tempos da música e gesticulando
tão sugestivamente que dá pra enxergá-lo tal a reação do público) e “Cold
Sweet”, esta, a música que inspirou o riff
da clássica "So What" de Miles Davis (que, fã, inteligentemente apenas inverteu
as notas). A já citada bateria de John “Jabo” Starks e Clyde Stubblefield,
aliada à percussão de Ronald Selico, dão um show à parte. Timbre perfeito,
encaixe perfeito, ritmação perfeita. Igualmente, as guitarras de Jimmy “Chank”
Nolen e Alpholson “Country” Kellum seguram todas do início ao fim.
Comandados por Alfred “Pee Wee” Ellis, arranjador da banda e
responsável pelo órgão e sax alto, Brown e Cia. arrasam na terceira parte do
show. O naipe de metais (que ainda conta com Maceo Parker e L.D. Williams nos
saxofones tenor; St. Clair Pinckney, no sax barítono; Waymon Reed e Joe Dupars,
nos trumpetes; e Levi Harbury, no trombone de vara) manda a irresistível “It
May Be the Last Time”, das melhores do mestre. O hit “I Got You (I Feel
Good)” – talvez seu maior sucesso tanto na versão original, de 1964, quanto na
mais funkeada, que gravara em 1975 – vem, aqui, num pequeno e agitado R&B,
quase uma vinheta. Em seguida (antecedida pela ótima “Out of Sight”, também
curta), “Try Me”, de seu primeiro disco, de 1959, tira o pé do acelerador novamente,
noutra balada melodiosa. Aí vem talvez o melhor do show – o que, a esta altura,
é uma atitude quase improvável. A quarta parte começa com a matadora “Bring it
Up”, que põe todo mundo pra dançar (sei que não é possível ver, mas quem teria
ousado ficar parado?).
Depois de incendiar bem o público é hora de
descansá-los, certo? Mais ou menos. Que o ritmo cai, é fato. Mas o que os
próximos 17 minutos e 27 segundos promovem é daquelas coisas que, essas sim, me
deixam com inveja de não ter estado lá. “It's a Man's Man's Man's World”, das
mais célebres canções de sua carreira, e “Lost Someone”, irrepreensível, formam
um medley em que, se o compasso é
mais lento, a interpretação de Brown, sua entrega, sua qualidade vocal, sua
alma, sua interação orgânica e quase sexual com o público, ao contrário, deixam
o clima realmente agitado.
Nestas duas, Brown despeja toda a intensidade
existencial de ex-boxeur e quase
marginal que, por essas obras divinas, virou um dos maiores artistas de seu
tempo. Na letra de “It’s a Mans...”, ele critica a sociedade machista e se
revela: “o homem está perdido na selva/ Ele está perdido na amargura”. E ainda complementa filosófica e romanticamente: “O homem fez os carros para nos levar para a
estrada/ Homem fez os trens para transportar cargas pesadas/ O homem fez a luz
elétrica para nos tirar do escuro/ O homem fez o barco para a água, como Noé
fez a arca/ Trata-se de um homem, um homem, um mundo de homens/ Mas não seria
nada, nada sem uma mulher ou uma garota”. Gritos
ensandecidos do público a cada frase cantada, a cada suspiro, a cada movimento
sugestivo no palco, tomados por aquela força negra avassaladora à sua frente. Ele
domina a plateia como um encantador de serpentes. O público, hipnotizado, acompanha
todos os seus passos, atende a todos os seus comandos. Estão magnetizados.
O final disso? A apoteose. “Please, Please, Please”, num soul mil vezes mais quente que sua
original, é a despedida e também quando e acontece uma cena tão marcante que
chega a ser visível só ouvindo-a. Num estado catártico, Brown, tomado pela
música, pelo show, pelo clima, pelo público, canta, grita e dança. O Apollo
Theatre vem abaixo! No meio da performance,
o rei do soul deixa o pedestal do microfone cair no chão mas, inebriado, nem
percebe e segue dançando, enquanto a galera quase desvanece de tanto êxtase. O
apresentador Charles Bobbit, então, recolhe o microfone e, sem mais o que
dizer, simplesmente exalta aquele mito que está ali no palco, a seu lado, concluindo
um show sabidamente histórico já naquele exato momento. “James Brown! James Brown! James Brown! Esse é Sr. Dynamite, o rei do
rithum n’ blues. James Brown!”. O que mais ele conseguiria dizer, né?
A importância de James Brown para a história da música é incalculável. Criador
de um dos gêneros musicais mais difundidos e absorvidos do mercado do
entretenimento, o funk, foi inspiração para toda a geração em estilo,
sonoridade, estética e atitude. A soul
music, o rock, o jazz, a MPB, todos beberam nele. De Sly & Family Stone
a Beatles, de George Clinton a Erasmo Carlos, de Rolling Stones a Lenny Kravitz,
de Miles a Morcheeba. O rap ou o britpop
dos anos 90 nem existiriam, pra se ter ideia. Além disso, foi Brown quem, de
fato, ensinou o mundo pop a dançar, liberando o salão para outros grandes
bailarinos populares como Michael Jackson, Madonna, Prince e John Travolta.
“Live at the Apollo”, evidentemente, não é o seu único grande álbum, mas é
certamente um exemplo fiel da magnitude de sua obra. Ainda mais por superar o
fato de ser duplo e ao vivo, o que me contraria duplamente, que geralmente
prefiro os trabalhos de estúdio e em formato simples.
Contraria, entretanto, mais do que somente meu gosto pessoal. Lembro-me
da difundida tese do filósofo da comunicação Walter Benjamin de que a obra de
arte perde a sua “aura” quando reproduzida, ou seja, quando passada para outra
plataforma, submergem-lhe junto suas autenticidade e alma, mesmo quando
tecnicamente bem copiada. Parece que James Brown consegue, misteriosamente,
subverter essa lógica e preservar intacta toda a emoção do “aqui e agora” que
se presenciou naquelas fatídicas noites de junho de 1967. Quem esteve lá, viu;
mas quem não esteve, consegue captar o calor da emoção, a “aura” do momento
apenas ouvindo. Isso é possível perceber-se até hoje, quase 50 anos depois, através
das milhares de cópias que o mundo tecnológico oferece. E quem há de duvidar um
feito desses vindo de um cara cujo apelido é justamente “o padrinho da alma”?
*******************************
FAIXAS:
1. Introduction – 0:32
2. Think – com Marva Whitney (Pauling) – 2:54
3. I Wanna Be Around (Mercer/Vimmerstadt) – 3:09
4. James Brown Thanks – 1:11
5. That's Life (Duke/Harburg) – 4:05
6. Kansas City (Leiber/Stoller) – 4:49
7. Medley – 14:54:
- "Let Yourself Go"
(Brown/Hobgood) – 6:34
- "There Was a Time"
(Brown/Harris/Hobgood) – 2:45
- "I Feel All Right"
(Brown/Hobgood) – 5:35
10. Cold Sweat (Brown/Ellis/Ellis/Lindup) – 4:43
11. It May Be the Last Time (Brown/Wright) – 3:06
12. I Got You (I Feel Good)
(Brown) – 0:38
13. Prisoner of Love (Columbo/Gaskill/Robin) – 7:25
14. Out of Sight (Brown/Wright)
– 0:26
15. Try Me (Brown/Marley) – 2:54
16. Bring It Up (Hipster's
Avenue) (Brown/Jones) – 4:38
17. Medley – 17:27
- “It's a Man's Man's Man's
World” (Brown/Jones/Newsome) – 11:16
- “Lost Someone (Brown/Byrd/Stallworth/Stallworth) – 6:21
18. Please, Please, Please (Brown/Terry)
– 2:44
***********************
OUÇA O DISCO:
por Daniel Rodrigues