Mais um privilégio que tenho como morador de Porto Alegre e admirador
da black music do Brasil. Depois de
assistir ao memorável primeiro show do pernambucano Di Melo, em julho, agora, a
festa Voodoo, responsável por trazer essa turma malemolente à minha cidade,
presenteou os porto-alegrenses como eu com a vinda de outra lenda da soul brasileira: Gerson King Combo. Mais um dos artistas que caiu no ostracismo com
o declínio do estilo nos anos 80, King Combo foi redescoberto no estrangeiro
(Inglaterra e Japão) e, atualmente com 70 anos, voltou a ser cult de alguns anos para cá ao universo do
entretenimento.
O dançarino SoulBalaMachine
ditando o ritmo da galera.
Dono de uma voz possante, que salta daqueles senhores pulmões, o
carioca Gerson Côrtes (irmão de outro precursor da soul no País, Getúlio Côrtes) entra no palco muito bem iluminado da
Quadra dos Bambas da Orgia vestindo sua tradicional capa, esta azul-claro misto
de boxeur e super-herói, mais calças do
mesmo tecido lânguido e da mesma cor, casaco, colete, camisa de golas largas, colares
no pescoço, sapatos bicolor e chapéu. Uma figura exótica e impressionante. A
imponência do porte e do vozeirão, no entanto, se amenizam com o tratamento
educado e a simpatia, que dão o clima alegre da festa. A animação foi bastante
ampliada ainda pela presença do
dançarino Rafael SoulBalaMachine, que, vindo especialmente do Rio, ajudou a
ditar o ritmo com seus passos mágicos e incentivando o público a fazer o mesmo.
Nós curtindo o balanço de Gerson King Combo.
Sem voltar a Porto Alegre desde 2001, o Rei da Soul Brasileira (que
leva o reinado já no nome), não poderia começar a apresentação com outra
música: “Estou voltando”. Os versos dizem tudo: “Está voltando com mais força (força)/ Pois nunca teve ausente/ Presente
nessa guerra/ Esperou o tempo certo pra voltar”. “Uma chance”, do seu
grande álbum de 1977, fez o clima ficar ainda mais quente, mesmo com a
torrencial chuva que caía lá fora. “Deixe Sair o Suor” e, mais ainda, “Eu vou
Pisar no Soul”, traduzem o sentimento do seleto público que, corajoso, não se
intimidou com o temporal e compareceu: “Já
separei a minha beca, engraxei os meus sapatos/ Espichei os meus cabelos,
detonei os caras chatos/ Por que.../ Eu vou pisar no soul/ Eu vou dançar um Black”.
O mestre da soul com a cozinha afiada da Ultramen.
O irresistível groove de “Funk
Brother Soul”, outro de seus clássicos – este, do LP “Gerson King Combo Volume
II”, de 1978 –, antecipa “Soul da paz” e a pacífica “Força e poder”. Das
surpresas do show, King Combo, com toda autoridade que tem, encarna o
conterrâneo e contemporâneo Tim Maia e manda uma brilhante versão de “Rational
Culture”, a faixa em inglês da viagem esotérica de Tim presente no disco “Racional
Vol.1”. A banda, os rapazes da Ultramen (Júlio Porto, guitarra; Pedro Porto,
baixo; Zé Darcy; bateria; e Leonardo Boff, teclados) mais dois sopros (sax e
trompete excelentes, diga-se de passagem), funcionaram perfeitamente bem assim
como ocorrera no show de Di Melo, no mesmo formato. Apreciadores e fãs, eles sabem
de cor as canções dos mestres – segundo King Combo, ensaiaram com ele apenas
uma vez na tarde daquele mesmo dia. O “síndico” foi novamente revisitado com a cover de um de seus maiores hits, “Sossego”, num dos melhores
momentos do show. King Combo convidou da plateia duas pessoas para cantarem com
ele, uma delas a cantora gaúcha Nani Medeiros, que o incentivou a tocar a
balada “Foi um sonho só”, que contém na original um coro feminino e que havia
sido tirada do set-list por não ter quem
o acompanhasse. Achou-a.
Chamando Nani Medeiros ao palco
para dividir o microfone.
Herdeiro de James Brown no Brasil, King Combo, que integrou as bandas
de Erlon Chaves e de Wilson Simonal e grupos seminais da soul brasileira, como a Black Rio e a Fórmula 7, é dos poucos que tem procuração para cantar o Godfather of Soul. E foi o que fez em dois momentos.
Primeiro, numa quente “I Feel Good”, dos maiores clássicos da música negra
mundial. Claro que todo mundo cantou e dançou junto. A outra foi dentro do
maior sucesso do próprio King Combo: “Mandamentos black” (“Dançar, como dança um black/ Amar,como ama um black/ Andar, como anda
um black/ Usar, sempre o cumprimento black/ Falar, como fala um black...”),
um dos hinos da cena dos anos 70. Nesta, inseriram “Sex Machine”, outro hit de
Brown, incendiando de vez a quadra dos Bambas.
Na despedida do público.
Se “Estou voltando” iniciou o show, o recado final foi dado com “Good
Bye”, outra bem conhecida do King of Brazilian Soul, que, particularmente,
considero sua melhor música. Funk da melhor qualidade: ritmo contagiante,
sopros inteligentes, letra romântica e cantarolável e aquilo que só quem faz funk no Brasil sabe: um toque de samba.
Ah! Aí é insuperável, e Gerson King Combo é um dos principais representantes! Quando
eu pensei que, por não ser a banda original de Kink Combo, a Ultramen não
incluiria a pitada brasileira, o baterista Zé Darcy, na segunda parte, engendra
um ritmo de samba. Um final perfeito.
Se continuarem assim as promoções da Voodoo, trazendo lendas da soul brasileira, vou querer ver também
Hyldon, Carlos Dafé, Toni Tornado, Cassiano, Bebeto, Tony Bizarro, Arthur
Verocai... Estão me acostumando mal.
O black loucão George Clinton dando uma de Papai Noel
Se tem coisa que a gente gosta é pegar como gancho o Natal para fazer paralelos com temas como cinema, literatura e música. Aí quando se junta a isso uma outra paixão, que é fazer listas, então: é só servir a ceia! Nessa vibe natalina, pensamos em trazer aqui uma lista bem musical para esta época de Festas, mas com um, digamos, groove diferente. Sim: artistas da soul music que produziram obras com a temática natalina. E são vários! Comum no mercado fonográfico norte-americano desde os anos 50, tanto para músicos desta vertente quanto de outros gêneros, como a música popular, o country, o rock e até o jazz, claro que o clima festivo e de confraternização da data se encaixaria muito bem com os sons suingados e animados da música black. Não deu outra: a química perfeita.
E se os gringos foram os que lançaram a moda, aqui no Brasil o pessoal da soul não fica para trás, não! Tem brazucas de respeito nesta listagem também, todos hábeis em colocar Papai Noel pra remexer os quadris. Afinal, se é cabível a discussão de que Jesus Cristo era preto, porque não sondar que o Bom Velhinho também não possa ser “da cor”? Pelo menos na música, em vários momentos ele foi, e aqui vão alguns bons exemplos.
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The Supremes– “Merry Christmas” (1965)
Diana Ross e suas parceiras foram a tradução do melhor que a gravadora especializada em black music Motown podia ter. Supremas na interpretação, elas cabiam perfeitamente ao estilo de arranjo e produção musical do selo, bem como no esquema de marketing da indústria fonográfica da época, a qual tinham uma boa fatia de mercado. Claro que, com todos esses atributos, não demoraria para que gravassem o seu disco especial de Natal, o que ocorreu três anos depois da estreia do grupo vocal. Clássicos do cancioneiro natalino como “Silver Bells”, “Santa Claus is Coming To Town” e “My Favorite Things” são um arraso na voz delas. OUÇA AQUI
James Brown & The Flamous Flames – ”James Brown Sings Christmas” (1966)
Um velho barbudo e branco tentando bancar de rei só porque é Natal? Isso é inadmissível para quem é o Rei do Soul. James Brown não deixou por menos e gravou não um, mas três álbuns natalinos ao longo da carreira, os quais foram compilados em 2010. O melhor deles, no entanto, é o primeiro: ”James Brown Sings Christmas”, de 1966. Acompanhado da sua competente banda à época, a Flamous Flames, e com arranjos caprichados que bebem no gospel e no R&B, tem como grande detalhe ser um disco totalmente autoral, ou seja, dispensa as tradicionais regravações de standarts. É James Brown impondo a sua autoridade - Papai Noel que vá ciscar noutro lugar. OUÇA AQUI
The Jackson 5– “Christmas Album” (1970)
Curiosamente, foi uma família de Testemunhas de Jeová que gravou um dos melhores álbuns de Natal todos os tempos. Outros que, assim como as Supremes, traduziam muito bem o espírito e o estilo da Motown, os Jackson 5 também modernizaram os clássicos natalinos em versões recheadas de funk e groove. Michael Jackson, então com 12 anos, já dava sinais de que, de fato, era diferenciado, mas os irmãos não ficam mal na foto, não. Além disso, a produção de Hal Davis e, principalmente, os arranjos do craque Gene Page – autor da memorável trilha do filme blackexplotation “Blackula” –, abrilhantam ainda mais o trabalho. Foi o álbum de Natal mais vendido de 1970 a 1972, com mais de 3,5 milhões de cópias em todo o mundo. OUÇA AQUI
Cassiano– música“Hoje é Natal” de "Cuban Soul" (1976)
Quem acha que só gringo dos States manja de soul, está muito enganado. No Brasil, pelo menos um gênio do gênero existiu e se chamava Genival Cassiano. Em seu segundo disco solo, “Cuban Soul” ou “18 Kilates”, este paraibano brilha como uma verdadeira joia. Dono de um estilo de cantar e compor inigualáveis, Cassiano tem no disco a parceria de Paulo Zdanowski em todo o repertório (que traz maravilhas como “Coleção”, “Onda” e o hit “A Lua e Eu”). Mas especialmente a faixa de abertura traz o tema natalino, na tristonha “Hoje é Natal”. Com sua melodia cheia de nuances e encadeamentos que somente um músico de mão cheia e muito inspirado sabe fazer, a música é brilhante como o título do álbum sugere. OUÇA AQUI
Gerson King Combo– “Jingle Black" (1977)
Como um verdadeiro Black Moses, o cara tinha escrito a tábua da música soul brasileira em “Mandamentos Black” naquele mesmo ano. Ou seja: tava com toda a licença para tornar preto também o Papai Noel. É isso que Gerson King Combo faz com seu vozeirão e ritmo contagiante em “Jingle Black”, o sugestivo título do compacto lançado em 1977, em pleno auge de sua popularidade nos bailes funk da Zona Sul. Curiosamente, a música, escrita por ele com Pedrinho da Luz e Ronaldo Correa, traz no seu lado oposto a maravilhosa “Good Bye”, provavelmente a melhor canção do repertório do James Brown Brasileiro. No mercado negro, o raro minidisco com apenas duas faixas custa aproximadamente 200 Reais. E vale. OUÇA AQUI
Bootsy Collins– “Christmas Is 4 Ever“ (2006)
Numa lista de soul natalina em que há a sonoridade tradicional, passando pelo modelo Motown, pelo funk e pelas baladas, não podia faltar a turma P-Funk, que mais do que ninguém soube subverter ao máximo o gênero adicionando-lhe psicodelia, peso e muita irreverência. E Bootsy Collins foi quem puxou o trenó no disco “Christmas Is 4 Ever”, em que reúne uma galera como George Clinton, Bernie Worrell e Bobby Womack e os rappers MC Danny Ray, Snoop Dogg e DJizzle em leituras muito inspiradas de temas típicos, mas também outras originais. O resultado é um som moderno e contagiante, em que canções tradicionais como “Jingle Bells” viram “Jingle Belz”, “Winter Wonderland”, “WinterFunkyLand” e “This Christmas”, “Dis-Christmiss”. Bem a cara malucona de Bootzilla e seus amigos. OUÇA AQUI
Aretha Franklin– “This Christmas, Aretha” (2008)
A Rainha do Soul, diferentemente dos Jackson 5, foi bastante fiel às raízes protestantes de sua formação religiosa e filosófica a ponto de demorar décadas para gravar, de fato, um disco de Natal. Somente mais de meio século depois de estrear para a música que Aretha Franklin topou a empreitada no bonito “This Christmas, Aretha”. Tem standarts? Claro, mas também temas autorais como "'Twas the Night Before Christmas", dela e de Clement C. Moore, e um dueto com o filho e também cantor Edward Franklin na faixa-título. Valeu a pena a flexibilizada de Aretha: o disco alcançou a posição de nº 102 na parada de álbuns da Billboard. OUÇA AQUI
Ícone do gangsta rap, Snoop Dog ficou bem conhecido com canções natalinas ao emplacar, em 2014, o tema do filme “A Escolha Perfeita 2”, cantando em dueto com Anna Kendrick "Winter Wonderland/Here Comes Santa Claus”. Mas anos antes o próprio já havia compilado várias de suas gravações com esta temática em “Snoop Dogg Presents Christmas In Tha Dogg House”. No clima “preto ostentação”, o rapper tem a companhia de diversos artistas como Chris Starr, Lil Gee, Hustle Boyz, Uncle Chucc e Soopafly. Pioneiro, o álbum foi disponibilizado apenas em formato digital, isso antes do mercado de música ser dominado pelo streaming. Títulos característicos da linguagem do gueto: "My Little Mama Trippin on Xmas", "Christmas in the Hood”, "Xmas on Soul" e "Christmas Outro". OUÇA AQUI
“Em 77, eu fui a Lagos, na Nigéria, onde reencontrei uma paisagem sub-urbana do tipo dos conjuntos habitacionais surgidos no Brasil a partir dos anos 50, quando Carlos Lacerda fez em Salvador a Vila Kennedy, tirando muitas pessoas das favelas e colocando-as em locais que, em tese, deveriam recuperar uma dignidade de habitação, mas que, por várias razões, acabaram se transformando em novas favelas [...] ‘Refavela’ foi estimulada por este reencontro, de cujas visões nasceu também a própria palavra, embora já houvesse o compromisso conceitual com o ‘re’ para prefixar o título do novo trabalho, de motivação urbana, em contraposição a ‘Refazenda’, o anterior, de inspiração rural.” Gilberto Gil
Não bastasse o movimento cíclico dos acontecimentos da
história, que de tempos em tempos retornam à pauta pelo simples fato de não
terem sido totalmente resolvidas no passado, parece que outros motivos retrazem
espontaneamente questões importantes de serem revisitadas. Caso dos negros no
Brasil, cuja história, escrita com a sangue e dor mas também com bravura e
beleza, faz-se sempre necessário de ser discutida. Se o 20 de Novembro carrega o
tema com pertinência, por outro lado, fatos recentes, como a ascensão
neo-fascista na Alemanha e Estados Unidos ou ocorridos racistas como o do “flagra”
do jornalista William Waack, mostram o quanto ainda há de se avançar nos
aspectos do preconceito racial, desigualdade social e intolerância. Por detrás
desses fatos, há, sim, muito a se desvelar justiça.
Dentro deste cenário, entretanto, outro fato, este extremamente
positivo, também vem à cena para, ao menos, equilibrar a discussão e trazer-lhe
um pouco de luz. Estamos falando dos 40 anos de lançamento de “Refavela”, disco
que Gilberto Gil lançara no renovador ano de 1977 e que, agora, em 2017, é
revisto e celebrado com uma turnê comemorativa – a qual conta com as
participações de Moreno Veloso, Bem Gil, Céu, Maíra Freitas e Nara Gil.
Não à toa “Refavela” mantém-se atual e referencial. O disco tem
a força de um manifesto da nova negritude. Elaborado num Brasil ainda sob o
Regime Militar de pré-anistia, O disco capta o momento político-social
brasileiro, especialmente, dos negros, sobreviventes de uma recente abolição
(menos de 90 anos àquele então) e, bravios e corajosos, tentando avançar num
país subdesenvolvido e repleto de desafios sociais. Desafios estes, claro, superdimensionados
a um negro, cujos índices de estrutura social eram – e ainda são – injustamente
inferiores. Em conceito, Gil reelabora as diferentes vertentes de manifestação
cultural negras, do axé baiano ao funk, do afoxé ao reggae jamaicano, do samba
aos símbolos do candomblé. Assim, atinge não apenas uma diversidade
rítmico-sonora invejável quanto, representando o status quo do povo
afro-brasileiro (urbano, porém fincado em suas raízes), mas uma diversidade
ideológico-étnica, o motivo de ser de toda uma raça a qual ele, Gil, faz parte.
Do encarte do disco: Refavela: revela, fala, vê
A melhor tradução disso é a própria faixa-título, um hino do
que se pode chamar de “neo-africanidade”. De tocante clareza, a qual busca
bases na filosofia do geógrafo e amigo Milton Santos, a música demarca um novo
ponto de partida dos negros, cujas condições sociais, econômicas, habitacionais
e culturais enxergam, diante de muita dificuldade, um horizonte. “A refavela/
Revela aquela/ Que desce o morro e vem transar/ O ambiente/ Efervescente/ De
uma cidade a cintilar/ A refavela/ Revela o salto/ Que o preto pobre tenta dar/
Quando se arranca/ Do seu barraco/ Prum bloco do BNH”. A “refavela”, assim, não
é somente o lugar de morar, mas um novo espaço ideológico até então não ocupado
pelos negros e que lhes passa ser devido. Isso, encapsulado por uma sonoridade
igualmente contemplativa, como num sereno jogo de capoeira, de notas que se
equilibram entre a suavidade da raça negra e a seriedade da situação a se
enfrentar.
Enfrentamento. Isso é o que a faixa seguinte traduz muito
bem. Referenciando a visão revanchista da situação negra (a qual,
posteriormente, muito se verá discurso do rap nacional), “Ilê Ayê” traz as
palavras de ordem de inspiração no movimento Black Power entoadas pelo primeiro
bloco de carnaval baiano a se debruçar sobre essas ideias de maneira forte e
posicionada. A música, que impactara as ruas de Salvador em 1975, vem com uma
mensagem rascante: “Branco, se você soubesse o valor que o preto tem/ Tu tomava
um banho de piche, branco/ E ficava preto também/ E não te ensino a minha
malandragem/ Nem tampouco minha filosofia, porque/ Quem dá luz a cego é bengala
branca em Santa Luzia.” Algo diferente estava acontecendo no “mundo negro”.
Gil, que havia retornado do exílio há quatro anos e viajara
recentemente à Nigéria, onde viu de perto situações análogas ao presente e o
passado do Brasil, começara o projeto “Re” há dois com o rural e introspectivo “Refazenda”.
Agora, voltava seu olhar também para dentro de si, mas por outro prisma: o do
pertencimento. “O que é ser um negro no Brasil?”, perguntou-se. A interposição
entre estes dois polos – roça e cidade, sertanejo e negro, interno e externo – está
na mais holística canção do álbum: "Aqui e Agora". Das mais
brilhantes composições de todo o cancioneiro gilbertiano, é emocionante do
início ao fim, desde a abertura (que repete os acordes de “Ê, Povo, Ê”, de
“Refazenda”, mostrando a sintonia entre os dois álbuns) até a melodia suave e
elevada, intensificada pelo arranjo de cordas. A letra, tanto quanto, é de pura
poesia. O refrão, tal um mantra (“O melhor lugar do mundo é aqui/ E agora”), desconstrói
a lógica materialista de que “lugar” é necessariamente relacionado ao físico,
uma vez que este também é “tempo”, é imaterial. Gil mesmo comenta sobre o
misticismo da letra: "’Aqui e Agora’ é de uma sensorialidade tanto física
quanto álmica, quer dizer, fala de como ver, ouvir, tocar as superfícies do que
é sólido e do que é etéreo, denso e sutil; de uma visão voltada para dentro, o
farol dos olhos iluminando a visão interior.”
“Refavela” é realmente cheio de historicidades. Uma delas é a primeira aparição do reggae na música brasileira. Caetano Veloso já havia estilizado o ritmo em “Transa” com “Nine Out of Ten”, de 1972, quando ainda no exílio londrino. Porém, assim, tão a la Bob Marley, começou, sim, com "No Norte da Saudade". Igual importância tem outro reggae: “Sandra”, escrita quando Gil tivera que cumprir pena em um centro psiquiátrico em Florianópolis após ser preso portando droga numa turnê. Ele relata o rico encontro que tivera com várias mulheres (Maria Aparecida, Maria Sebastiana, Lair, Maria de Lourdes, Andréia, Salete), entre enfermeiras, tietes e pacientes. Em contrapartida, o músico também reflete sobre o quanto aquela loucura, simbolizada no porto-seguro sadio de sua então esposa, Sandra, praticamente não se distinguia da vida tresloucada do lado de fora do hospício.
A África-Brasil também se manifesta através dos ritos. Caso
do afoxé moderno "Babá Alapalá", cuja letra
celebra as divindades do candomblé: “Alapalá, egum, espírito elevado ao céu/
Machado alado, asas do anjo Aganju/ Alapalá, egum, espírito elevado ao céu/
Machado astral, ancestral do metal/ Do ferro natural/ Do corpo preservado/
Embalsamado em bálsamo sagrado/ Corpo eterno e nobre de um rei nagô/ Xangô.” A música, escrita por Gil originalmente para a cantora e atriz Zezé Mota - sucesso com ela naquele mesmo ano - também integrou a trilha sonora do filme "Tenda dos Milagres", de Nelson Pereira dos Santos, o qual também trazia como tema a ancestralidade. Detalhe: uma das vozes do coro é a do mestre da soul brasileira Gerson King Combo.
Gil à época de "Refavela"
A presença de King Combo faz total sentido. Aquele 1977, de
fato, foi de um “re-nascimento” da cultura negra no Brasil. Se o samba via o
gênio Cartola chegar, aos 69 anos, a seu celebrado terceiro disco solo, e uma
inspirada Clara Nunes reafirmar a brasilidade de raiz, paralelamente, a soul
music e o funk extrapolavam os limites do subúrbio e chegavam ao grande
público. Estamos falando da geração “do black jovem, do Black Rio, da nova
dança no salão”, como diz um trecho da canção “Refavela”. Sintonizado com isso,
Gil olha novamente para dentro de si, neste caso, a influência latente da bossa
nova, e redesenha o clássico "Samba do Avião" sob novas cores. As
harmonias jobinianas originais ganham, aqui, um suingue funkeado ao melhor
estilo do soul brasileiro, na linha do que faziam Banda Black Rio, Carlos Dafé, Tim Maia, King Combo e outros.
Moderna em harmonia e arranjo – que poderia tranquilamente
ter sido gravada na atualidade por algum artista “gringo” fã de MPB, como Beck
ou Sean Lennon –, “Era Nova” é outra joia de “Refavela”. Nela, o baiano
sublinha uma crítica à ideia de o homem ter a necessidade de sempre querer
decretar a disfunção de certos tempos e prescrever a vigência de outros,
buscando instalar um novo ciclo histórico, seja do ponto de vista religioso ou
do político. Os versos iniciais são taxativos – e sábios: “Falam tanto numa
nova era/ Quase esquecem do eterno é”...
Visivelmente influenciada pela então recente vivência de Gil
na Nigéria, "Balafon" – nome de um tradicional instrumento da África
Ocidental –, pinta-se de tons do afrobeat de Fela Kuti e, por outro lado, da
poliritmia percussiva que desembarcara na Bahia negra vinda do Continente
Africano há séculos. Já o encerramento do disco não poderia ser mais simbólico
com “Patuscada de Gandhi”. Trata-se de um afoxé entoado pelo bloco Filhos de
Gandhi, ao qual Gil não apenas integra como, mais que isso, foi fundamental
para sua manutenção no carnaval baiano quando, dois anos antes, compusera a
música “Filhos de Gandhi” como forma de convocar todos os orixás para que o
grupo não se extinguisse. Deu certo. Tanto que, três anos depois, renovado o
bloco e sua importância antropológico-social para a cultura afro-brasileira,
Gil pode, feliz com a meta cumprida, aproveitar e fazer a folia.
Provavelmente estarei presente no show em celebração ao
aniversário de “Refavela”, que vem em dezembro a Porto Alegre, e devo voltar a
falar sobre este trabalho por conta dos novos arranjos e da ocasião
comemorativa em si. Entretanto, intacta já é a importância deste disco para a
música brasileira em todos os tempos. Vendo-se tantos artistas da atualidade em dia que,
cada um a seu modo, representam a negritude em sua diversidade (Criolo, Chico Science, Teresa
Cristina, Emicida, Seu Jorge, Fabiana Cozza, Mano Brown, Paula Lima, MV Bill), é
impossível não associá-los a “Refavela”. Todos filhos daquela geração que se
emancipava, e que, agora, crescida, segue para enfrentar novos desafios. Para
conquistar novos espaços. Em um Brasil que ainda tem muito em se que avançar,
isso é o que se extrai de “Refavela” a cada audição: a “re-significação”.
Gilberto Gilcomenta e canta"Babá Alapalá"
*******************
FAIXAS:
1. "Refavela" - 3:40
2. "Ilê Ayê" (Paulinho Canafeu) - 3:10
3. "Aqui e Agora" - 4:13
4. "No Norte da Saudade" (Gilberto Gil, Moacyr Albuquerque, Perinho Santana) - 4:19
5. "Babá Alapalá" - 3:35
6. "Sandra" - 3:03
7. "Samba do Avião" (Tom Jobim) - 4:11
8. "Era Nova" - 4:51
9. "Balafon" - 2:39
10. "Patuscada de Gandhi” (Afoxé Filhos de Gandhi) - 4:20
Todas as músicas compostas por Gilberto Gil, exceto indicadas
Ir ao Museu de Arte do Rio, o MAR, é sempre uma experiência
rica e penosa. Rica pelo óbvio: a qualidade das exposições que lá circulam, não
raro as mais bem curadas e capitalizadas que passam pelo Rio de Janeiro (esta,
por sinal, a cidade de maior concentração de grandes exposições do Brasil junto
ou até mais do que São Paulo). Mas também penosa porque, além de extensas (o
que, por mais gratificante que seja, é também cansativo), dificilmente se consegue
aproveitar tudo que o MAR oferece simultaneamente. No caso, foram seis mostras,
das quais pude, na companhia de Leocádia e do amigo Eduardo Almeida, ver com um
pouco mais de atenção três delas.
Uma destas, contudo, posso dizer que foi a melhor que
presenciei no Rio desta feita: “FUNK: Um grito de ousadia e liberdade”. Um
espetáculo. Com curadoria da Equipe MAR junto a Taísa Machado e ninguém menos
que o lendário Dom Filó – um dos principais ativistas da causa negra e
agitadores culturais do funk dos anos 70, responsável pela descoberta de que
ninguém menos que gente como a Banda Black Rio e Carlos Dafé –, a principal
mostra do ano do MAR perpassa os contextos do funk carioca através da história.
A temática da exposição apresenta e articula a história do funk, para além da
sua sonoridade, também evidenciando a matriz cultural urbana, periférica, a sua
dimensão coreográfica, as suas comunidades.
Para chegar aos morros e favelas onde o funk carioca se
tornou obra e sinônimo e estilo, a mostra traz com muita propriedade toda a construção
desdobramentos estéticos, políticos e econômicos ao imaginário que em torno
dele foi constituído, recuperando as audições públicas do início do século XX, os clubes para negros dos anos 40/50, os bailes hi-fi dos anos 60, até chegar, aí sim, no fenômeno das
festas black dos anos 70. Influenciados pelo movimento Black Power, Panteras Negras,
a Blackexplotation e, claro, a música soul norte-americana e outros, a galera tomou conta de ginásios e galpões da Zona Norte e
mandou ver no movimento mais libertário e dançante que o Brasil moderno já viu.
E tudo isso estava representado na exposição através de fotos, posters, pinturas,
capas de disco, e também em som, seja dos hinos funk até o poderoso off do
próprio Dom Filó. Ninguém melhor que ele para a tarefa de contar a história
daquele momento crucial para a cultura pop no Brasil, o que viria a dar no funk
carioca tal qual conhecemos.
Toda a parte que mostra a evolução do funk em terras
cariocas é bem interessante, evidenciando as etapas vividas nos anos 90, a
entrada no século XXI e o advento/chegada das novas tecnologias no morro. O
contraste – inevitável, proposital, ressignificado – entre pobreza e riqueza,
periferia e centralidade, comunidade e cosmopolitismo, é de uma riqueza
incalculável, muito a se assimilar. Porém, mesmo com bastante material, esta
segunda metade da exposição, mesmo sendo o crucial do projeto, não é tão
interessante quanto a sua primeira, a que traz a pré-história do funk do Rio.
Talvez pelo fascínio que a mim tem a era Black Rio, suas inspirações políticas,
comportamentais e culturais que bebem nos Estados Unidos, isso tenha me
prendido mais a atenção – embora tenha a sensação de que, documentalmente
falando, seja pelos áudios, obras, objetos, músicas, etc., esta parte
introdutória pareça mais completa.
Contudo, a principal sensação que se sai é a de que, enfim, chegamos aos espaços de arte. Embora eu não tenha relação e nem pertença ao universo do funk carioca (embora o seja contemporâneo, mesmo que de longe), a exposição fez-me aludir aos versos de Cartola em sua música "Tempos Idos", quando ele via seu samba assumindo a nobreza que lhe é merecida: "O nosso samba, humilde samba/ Foi de conquistas em conquistas/ Conseguiu penetrar no Municipal". Aqui, é a cultura pop na melhor acepção da palavra que adentrou os salões nobres das Belas Artes, o que suscita um sentimento de pertencimento. Ver meus ídolos da música pop negra brasileira - Black Rio, Dafé, Gerson King Combo, Tim Maia, Cassiano, Toni Tornado, Sandra Sá, Dom Salvador - e internacional - James Brown, Isaac Hayes, Parliament/Funladelic, Chic, Curtis Mayfield, Marvin Gaye - estampados, um mais bonito que outro, redimensionando suas belezas estéticas e simbólicas, é algo que realmente preenche o coração.
Todos os desdobramentos artísticos explícitos e implícitos são, no mínimo, admiráveis, se não objeto de muita apreciação e análise, como a hipnotizante dança do passinho, as pichações, a estética das armas, a sensualidade, a pele preta à mostra, a luz tropical, os cortes de cabelo. Na música, a constatação de que o funk carioca, original, é muito mais advindo dos ritmos africanos (inclusive do Nordeste da África, na Península Arábica) do que somente do funk importado dos states. Tem mais macumba do que enlatado.
Independentemente, vale a pena demais a visita ao MAR, nem que seja para ver apenas esta exposição. Mas se for, aviso: vá com tempo.
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Já na entrada, o maravilhoso corredor com as pichações iluminadas
Recepção ao som de pukadão
King Combo: mandamentos black, brother
Edu "tatuado" pela projeção de uma das obras de Gê Viana da série "Atualizações Traumáticas de Debret"
A pré-história do funk: Pixinguinha puxa Ângela Maria (esq.) pra dança e Jackson do Pandeiro punha be-bop no samba, tropicalizando a globalização - e não o contrário
As desbotadas cores dos antigos bailes hi-fi revistas por Gê Viana
O artista Blecaute também reconta os apagados eventos sociais negros do passado em novas cores
Mais de Gê Viana em sua série em que recria Debret: genial quebra do tempo simbólico e cronológico
Outra arte imponente, esta de Maria de Lurdes Santiago
Anos 60/70: as referências de fora chegaram. Nunca mais o mundo foi o mesmo
Reprodução de cartazes dos Black Panthers: a coisa ficou séria agora
Eis que chega a Black Rio, potente como uma Maria Fumaça
Dom Filó e sua turma da Soul Grand Prix, promotores das festas black da Zona Norte
Os pisantes, indispensáveis nos clubes soul em arte de André Vargas
Tão indispensáveis quanto, as potentes
aparelhagens de som
James Brown, uma das referências máximas da galera, em fotos no Brasil
Os "times" liderados pelos grandes nomes da soul brasileira
Lindas fotos, maioria P&B, dos tempos dos bailes funk nas noites da Zona Norte carioca e seus sagrados palcos
Encerrando a primeira parte da exposição, obras da genial gaúcha (e preta) Maria Lídia Magliani
Mais Magliani
Os corpos femininos sempre tão explorados... prenúncios de dança da bundinha
Já nos anos 90, a beleza dos passinhos se mistura à fúria violenta dos excluídos
Esta cocota que vos escreve rebolando até o chão
Corpos negros femininos quebrando padrões de beleza e gênero
Presença LGBTQIAP+ nas comunidades, outra força simbólica na cosmologia do funk
Pop art gay no morro: "Só tem no Brasil"
Sem concessões, a exposição mostra também mazelas como as drogas
E esta incrível pintura, que mais parece serigrafia?
Funk também é afrofuturismo
Pra finalizar a exposição, uma frase cheia de sarcasmo que contraria os detratores
texto: Daniel Rodrigues
fotos e vídeos: Daniel Rodrigues, Leocádia Costa e Eduardo Almeida
A época de shows está ótima! Além das recentes apresentações de Jorge Benjor, no Rio de Janeiro, Toquinho & Maria Creuza, no Teatro Bourbon
Country, eGerson King Combo, na Quadra
dos Bambas da Orgia, estes dois últimos, em Porto Alegre, outras três
programações musicais interessantíssimas – e totalmente diferentes umas das
outras – estão por vir nos próximos dias e meses. E à medida do possível,
claro, vou relatando-as aqui no ClyBlog. Papel e caneta para me agendar:
28/8 – Caetano Veloso & Gilberto Gil, Auditório Araújo Vianna: Já falei num post exclusivo sobre
esse verdadeiro espetáculo histórico que Porto Alegre presenciará. Dois dos
maiores artistas da modernidade. Muita expectativa.
04/09 – Meredith Monk &
Vocal Emsemble, Theatro São Pedro: Uma das cabeças mais geniais da música
erudita contemporânea, a multiartista norte-americana abre o Porto Alegre em
Cena. Indizível o privilégio de assistir a essa que é, junto com Philip Glass,
Steve Reich e sir. Maxwell Davies, a maior compositora viva da música de
vanguarda.
19/10 – Ratos de Porão, Bar
Opinião: Pra arrematar (por enquanto), que tal o hardcore furioso do Ratos tocando na íntegra seu seminal
“Crucificados pelo Sistema”, que completa 30 anos de lançamento? A regalia não
termina aí: a abertura será d’Replicantes. Tá bom pra ti?