A música pop do século XXI, cá entre nós, não é nada, assim, de entusiasmar, não é mesmo? Tirando quem pintou da metade para o final dos anos 90 e entrou no novo século ainda com qualidade, como Björk, Beck, Daft Punk, por exemplo; o pessoal dos anos 80 que tinha uma fórmula eficiente edificada a partir do punk e da ascensão dos sintetizadores, como Depeche Mode, Pet Shop Boys e New Order, que sobreviveram, persistiram e continuaram sendo relevantes; os consagrados, os símbolos, ícones do pop, Prince, Michael Jackson e Madonna, que, influentes e insubstituíveis, continuaram dando as cartas mesmo tempo depois de seus respectivos auges; e gênios, como David Bowie, que conseguiam se reinventar e ainda dar grande contribuição para uma cena pouco inspirada; os anos 2000, de um modo geral, não nos apresentavam nada de especial. De vez em quando até aparecia uma coisa boa, uma Amy Winehouse, por exemplo, mas foi só. E para piorar, mal nos deu o gostinho do seu talento e nos deixou cedo. De resto, muita bunda, muita repetição de fórmula, batidas eletrônicas sempre muito parecidas, muito autotune, rappers mal-encarados, mas nada de novo ou de original.
Mas de vez em quando, mesmo em meio a toda essa pobreza, o universo pop nos presenteia com alguma coisa que vale a pena. Às vezes alguém com talento, criatividade e boas influências nos surpreende e traz alguma coisa que, se não é nova, original, é, no mínimo, interessante. Santigold, multiartista norte-americana, nos apresentava ali, quase no final da primeira década do século XXI, algo um pouco mais que interessante. Seu álbum de estreia "Santogold" (2008) é uma preciosidade repleta de muito do melhor que a música negra pode oferecer. "Santogold" é rhythm'n blues, é soul, é rap, é funk, é raggae, é dub, é blues, é afro. É animado, é melancólico, é seco, é irreverente, é contagiante. Tem glamour, tem força, tem ousadia. Hip-hop, pós-punk, eletrônico, disco, rock, new-wave... Aquele tipo de disco que possui todos os atributos de uma grande obra pop!
"L.E.S. Artistes", a abertura e um dos singles do álbum, já é o cartão de visita mostrando que Santigold está disposta a frequentar todos os terrenos possíveis: inicialmente um pop minimalista bem compassado, marcado na batida, a primeira faixa, ganha força em guitarras no refrão para culminar num pop-rock poderoso. "You'll Find Away", a segunda, é uma típica new-wave elétrica e empolgante; o reggae eletrônico, repleto de elementos e nuances, "Shove It" baixa a rotação das duas anteriores com muito estilo, mas a eletrizante "Say Aha", com sua base agressiva de baixo. logo põe tudo pra cima de novo.
"Creator", o primeiro single do álbum é uma "loucura" maravilhosa! Uma percussão tribal, literalmente selvagem, grunhidos, efeitos eletrônicos alucinados, ecos, um vocal enlouquecido e, dentro de tudo isso, um refrão incrivelmente eficaz.
"My Superman", outra das joias do disco, é construída sobre, nada mais nada menos, que um sampler de "Red Light", de Siuoxsie and The Banshees, adicionado à sensualidade da nova canção, toda a atmosfera sombria do gótico oitentista.
A propósito de darkismo, "Starstruck", embora mais encaixada na linguagem sonora atual, do hip-hop e afins, também remete ao som do pós-punk dos anos 80. Mas aí, mudando radicalmente, temos "Lights Out", um pop radiofônico saborosíssimo, e a irresistível "Unstoppable, um ragga eletrônico dançante, ao ritmo do qual é impossível ficar parado. Imparável!
A elegante "I'm a Lady" encaminha o final do disco que, por fim, encerra-se com "Anne", um synth-popp sofisticado que só confirma a riqueza da experiência vivida nos últimos 40 minutos. Um baita disco!
Detalhe para a capa. Mais um destaque: uma colagem "tosca" quase ao estilo punk, com a artista expelindo purpurina dourada pela boca.
e juntamente o esforço de compor alguma coisa ao sabor clássico,
uma página que fosse, uma só, mas tal que pudesse ser encadernada entre Bach e Schumann."
trecho do conto "Um Homem Célebre"
de Machado de Assis
De um modo geral, procuro nunca nutrir expectativas quanto a artistas. O
que ele já fez e eu goste me basta, e o que vier de bom pela frente é lucro. Porém,
a uma exceção me permito: Beck Hansen, autor do espetacular “Odelay”, de 1996.
Sem exagero, Beck ficou ali-ali para parear com gênios da música norte-americana
como Stevie Wonder, Gil Scott-Heron, Bob Dylan ou Tom Waits mas, parecido com o
personagem Pestana do conto “Um Homem Célebre”, de Machado de Assis, nunca superou a si mesmo – e provavelmente não o fará mais talvez por
autobloqueio. Beck despontou na cena alternativa no início dos anos 90 já
prometendo. Veio numa crescente e trouxe ao showbizz o excelente “Mellow Gold”,
de 1994, difícil de superar. Mas ele superou. Para mim o maior disco da música
pop da sua década, “Odelay” é uma obra radicalmente criativa, transgressora e
crítica, um disco caleidoscópico que traz em si todas as referências musicais
possíveis e imagináveis, num caldeirão sonoro de composição, execução e
produção na mais absoluta sintonia.
A coisa toda já começa tirando o fôlego com “Devils Haircuit”, pós-punk
com um riff repetitivo carregado de distorção, um sequenciador eletrônico propositadamente
simplório e muitos, mas muitos samples, colagens, efeitos de mesa, tudo que se
possa imaginar. Impressionante. “Hotwax”, na sequência, começa com uma viola
caipira e muda direto para um inusitado rap-folk. E assim o álbum segue, pois tudo
cabe nesta “desordem organizada” criada por Beck: folk, funk, blues, hardcore,
rap, indie, soul. As faixas são como uma
montanha russa, pois tudo pode mudar a qualquer momento. E muda. Alta riqueza
de texturas, sonoridades, ritmos, notações. Um barroquismo moderno esculpido
por psicodelia e experimentalismo. Assim é “Lord Only Knows”, que inicia com um
grito ensandecido e passa, como se nada tivesse acontecido, a uma balada folk desenhada
pelos lindos canto e voz de Beck.
“Derelict”, densa e percussiva, tem um tom dark com seus elementos
indianos e árabes, lembrando as peças étnico-pop de David Byrne e Brian Eno de "Remain in Light" e "My Life in the Bush of Ghosts".
Já “Novacane”, outra magnífica, é um rock carregado cantado como hip-hop, com
um baixo pesado e bateria marcada, ao estilo do new-rock inglês de Stone Roses e Primal Scream e um riff feito apenas na modulação da distorção da guitarra no
amplificador, uma ideia estupenda. Porém, o que parece num primeiro momento uma
execução de músicos cai por terra quando entra sem aviso um sample que
substitui tudo, voltando, logo em seguida, ao andamento anterior. Ou seja: uma
quebra que serve para mostrar que tudo era apenas um produto artificial. Para causar
ainda mais espanto, a música, em sua parte final avança para uma tensão de ruídos
que se transformam num ritmo de break, como que saído de um Nintendo,
terminando deste jeito: noutra textura e absolutamente diferente de como
começou. É como se Beck pusesse à prova o que é tocado e o que não é, pois em
todo o disco é quase impossível definir isso com exatidão, como se fosse uma
música feita de plástico.
Esse conceito de reciclagem está também em “Jack-Ass”, mas em forma de
tributo, visto que, num lance, Beck homenageia dois mestres da música pop
universal: Van Morrison e Bob Dylan. Do primeiro, ele sampleia a linda base de"It's All Over Now, Baby Blue",
um clássico de Dylan que Morrison versara para o Them em 1966. E o mais
importante: o faz sem parecer preguiça ou falta de criatividade, pois recria
uma nova música – ao estilo Dylan, propositadamente – em cima da melodia de uma
outra recriação, a do Them, num processo semiótico. “Where it’s At”, hit do
disco, é mais uma brilhante. Inicia com o chiado de uma agulha sendo posta
sobre um vinil, que dá lugar a um soul retrô originalíssimo com direito a
scratchs, samples diversos, ruídos, microfonias e um refrão pegajoso.
Pra não deixar que a coisa desvirtue para uma palhaçada pretensamente
“cabeça”, “Minus” vem mostrar que rock bom é rock básico e sem firula. Sonic Youth na veia: seca, às guitarradas, voz furiosa e ritmo punk mantido na linha
do baixo, que rosna. Depois, “Sissyneck”, uma mistura de folk e eletrofunk, assonante
e harmonicamente complexa, mas com um refrão saboroso e totalmente agradável ao
ouvido. Já “Readmade” segue a linha de massa sonora, com muitos efeitos,
texturas e trabalho de estúdio, descendo o tom do disco novamente como foi em
“Derelict”. Sóbria, traz curiosamente em seu sample de destaque uma frase
sonora de “Desafinado”, clássico de Tom e Vinicius na versão de Sérgio Mendes.
Quase terminando o álbum, Beck sai com outra joia: “High 5”. Um break
dance ao estilo Afrika Bambaata em que não faltam scratches, efeitos de voz e,
claro, guitarras pesadas. Referências aparentemente díspares convivem e se
entrosam perfeitamente nesta faixa. Inicia com um violão na batida de
bossa-nova, que, em seguida, dá lugar às vozes de Beck e outros rappers com vozeirão
de negrão do Harlem. Lá pelas tantas, o andamento é interrompido para entrar um
trecho de... “O Lago dos Cisnes”! Como se não bastasse, depois de voltar no que
era e de uma breve incursão daquela mesma melodia com som de videogame barato que
desfecha “Novacane”, Beck adiciona a “High 5” cuícas de samba, encontrando a
tal “batida perfeita” que Marcelo D2 tanto procura mas sem precisar fazer
marketing disso.
Toda essa variedade torna “Odelay” quase uma obra aleatória, uma “obra
aberta”, como definiria Umberto Eco. Aí entra uma das grandes questões que o
disco levanta: ele questiona o papel do músico moderno diante da tecnologia e
das novas formas de interação social através das mídias. É impossível o músico
hoje ter total autenticidade de sua obra, pois esta, mesmo que ele não queira,
será afetada pelos efeitos externos da vida contemporânea. Trata-se de uma nova
autenticidade, a das TVs cuspindo publicidades e Big Brothers, do lixo
eletrônico, do lixo pornográfico, do lixo midiático, do lixo sonoro. É “a nova
poluição”, termo que dá título a uma das mais geniais faixas do disco: um drum
n’ bass, espécie de “Tomorrow Never Knows” pós-moderno, mantido numa base
inteligente de guitarra e colagens sem receio de esconder as “sujeiras”. Ou
seja, é possível escutar os remendos entre um sample e outro de propósito.
Sinal dos novos tempos, em que o músico não pode mais esconder que sua música
se vale de elementos que estão além dele próprio. É a “estética do arrastão”,
como diria Tom Zé.
Fechando o disco, depois de todo esse arsenal de sons e ideias, Beck dá
um novo recado aparentemente contraditório: o de que, se o papel do músico-autor
ficou mais subjetivo hoje, não quer dizer que ele não tenha ainda espaço para
compor “à moda antiga”. É isto que está incutido em “Ramshackle”: acústica, só
nos violões, voz e percussão. Sem sequem qualquer efeito de computador. O que
seria um final “tradicional”, num disco como “Odelay” se torna ainda mais
transgressor.
Isso que Beck trouxe em “Odelay” não é necessariamente uma novidade. Miles Davis já anunciava tal fusão conceitual no final dos anos 60 com "Bitches Brew"
na mesma época, Milton Nascimento e a galera do Clube da Esquina, assim como os
tropicalistas, já experimentavam toda essa musicalidade, só que com aparato
técnico mais deficiente; Prince e David Bowie também já formularam com precisão
essa química. Beck mesmo já mostrara muito disso no seu trabalho anterior, e os Beastie Boys já faziam tal mescla de estilos e referências numa roupagem
moderna desde Paul’s Boutique, de 1989. Mas Beck apresenta tudo isso com uma
maestria diferente, denso, original, além de manter um senso de ironia
constante uma vez que interroga a fundo a sociedade de massas, seu massacre de
informações e imagens, suas ideologias distorcidas, suas ideias que se tornam
abstratas de tão sem sentido. E ele faz isso reciclando tudo que já fora
produzido em música pop até então, gerando um produto pós-moderno incrivelmente
bem acabado.
Depois de “Odelay”, Beck caiu na pior armadilha que um artista pode
cair: a de supervalorizar a sua arte. Passou a fazer trabalhos sempre apontando
para um nível técnico altíssimo, sem, contudo, concentra-se no que interessa: a
alma da obra. Neste sentido, lembra o dilema de Pestana, do conto machadiano, que,
descontente por compor apenas polcas, tentava, mesmo com o sucesso popular
destas, produzir em vão uma obra “respeitável”, a qual, no entanto, não
conferia com seu espírito. É parecido com o que aconteceu com Beck: por causa
de uma ideia genuína bem executada, “Odelay”, ele passou a inverter a lógica, ou
seja, a tornar forçadamente uma boa execução numa ideia genuína. Já deu várias
provas disso, sendo a última em 2012, quando lançou seu novo disco. Só de
partituras (!). Nada consumível ou próximo do público como foram seus triunfos
com “Mellow Gold” e, obviamente, “Odelay”, que, se não tem substituto até hoje,
é porque talvez ele mesmo, Beck Hensen, não se disponha a superá-lo. Pelo menos, é o que se percebe: enquanto Pestana tinha neura em se superar, Beck tem medo do autoenfrentamento.