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quinta-feira, 12 de setembro de 2024

cotidianas #841 - Natureza

 



Carolina sempre tivera uma ligação muito forte com a avó, muito próxima. Na verdade, todos no bairro adoravam Dona Tereza. Senhora alegre, falante, espontânea. Era a típica vozona, aquela cúmplice e protetora dos netos. Para Carolina, Dona Tereza era como uma mãe. Foi quem mais a incentivou quando decidira ingressar no curso de assistente social, mesmo diante da resistência do pai de Carolina, seu filho, que considerava uma profissão 'pra morrer de fome'.
Carolina cursou, se formou e, apoiada pela avó, foi para o Rio tentar a vida na cidade. Batalhou, fez concursos, entrevistas, até que conseguiu trabalho. Um bom trabalho! Conseguiu se estabelecer, montar apartamento e garantir uma vida estável e sabia que devia muito daquilo ao incentivo da avó.
Mantinha contato, voltava à cidade natal sempre que possível, mas a correria da vida, o dia a dia atropelado e cheio de obrigações, fizeram com que esse contato fosse rareando.
Ligava para o pai, recebia notícias da avó mas o fato é que o tempo passava e, inevitavelmente, Dona Tereza fica mais velha. A saúde já não era a mesma, as deficiências da idade já se manifestavam de maneira implacável, até que um dia recebera a notícia que nunca gostaria de ouvir: a avó havia falecido.
Pediu licença do trabalho, tirou uns dias e voltou à sua cidadezinha, no interior da Bahia para o adeus à tão amada vozinha.
Enterro, despedida, abraços, lágrimas, enfim... Fazer o quê? Todo mundo vai um dia. É da natureza.
Na casa do pai, já mais consolada e conformada, chegando da cerimônia fúnebre, Carolina, cansada do dia longo e desgastante, deixou-se desabar no sofá. Fechou os olhos, repassou, num flash, momentos com a avó. Sorriu. Ah, Dona Tereza! À sua frente, na mesa de centro, estava a pasta de elástico com a certidão de óbito. Como que numa certificação, agora sim, oficial do que acabara de ver no cemitério, resolvera ler o documento: Naturalina Maria Conceição dos Santos.
Como assim?
Erraram o nome da sua avó?
E nem tinha Tereza no nome.
Erguera-se num salto e saiu atrás do pai pela casa.
Mostrou-lhe o erro.
Erro nenhum.
Sua mãe, avó de Carolina, chamava-se, sim, Naturalina. Os vizinhos é que achavam muito complicado, difícil de lembrar, aí associavam com natureza: Naturalina, natureza, Naturaleza, natural, Tereza... Misturaram as coisas e simplificaram. Tereza pegou, e dona Naturalina ficou mesmo conhecida como Tereza.
Carolina agora ria. Nunca soubera o verdadeiro nome da avó. Era uma espécie de batismo após a morte. Mas seria muito estranho, agora, passar a se referir àquela mulher que estivera perto dela a vida toda como Naturalina. Seria quase como se tivesse sido outra pessoa. Dissesse a certidão de nascimento ou a de óbito o nome que fosse, para Carolina, aquela mulher de quem acabara de se despedir sempre seria a vó Tereza. Assim era natural para ela.

Cly Reis

para Ana Carolina
(inspirado em
fatos verídicos)

sábado, 31 de agosto de 2024

cotidianas #840 - Pílula Surrealista #58

Um esperou pelo outro, e o outro esperou pelo um. O um esperou pelo um, e o outro pelo outro, e os dois pelos dois, e os três pelos três, quatros, cincos, seis, setes outros, infinitamente. Quem se beneficiou foi o pedestre, que atravessou o cruzamento com seus fones isolantes e os olhos enfiados na tela do celular sem atenção alguma ao que se sucedia.

Não houve buzinas, nem xingamentos, nem irritação, nem discussão ou vias de fato. Sequer sentimentos de aflição, derrota ou sujeição: todos os motoristas, presos em seus carros apontados de frente uns para os outros, como vacas aplastadas num curral, aguardavam-se mutuamente com resignação e tranquilidade. Em silêncio.

Um silêncio incomum ao perturbador trânsito daquela hora, final de tarde. Tão incomum quanto a invisível nuvem de solidariedade que ali desceu inexplicavelmente, naquele que foi considerado o primeiro engarrafamento gentil da história daquela cidade.


Daniel Rodrigues

terça-feira, 13 de agosto de 2024

cotidianas #839 - Todo Errado

 




Caiu de mau jeito e bateu com a cabeça.

Levantou.

Um pé de cada vez. Primeiro o esquerdo depois o direito. Pronto.

Pra onde agora?

Direita ou esquerda? 

Tanto fazia. Já estava fodido mesmo. Havia metido os pés pelas mãos e agora não tinha mais como desfazer o que estava feito.

Um passo, dois... Tudo começou a girar.

Levou a mão à cabeça. Sangue...

Não importava. Tinha que seguir em frente. Estavam na sua cola. Não demoraria muito o alcançariam.

Onde estava com a cabeça quando foi inventar de meter a mão naquela grana?

Era tarde demais pra pensar nisso. Melhor apertar o passo.

Esquerda, direita... Em frente... Um muro.

Tava fodido! 

Estavam perto. Conseguia sentir o cheiro deles.

'Pensa, pensa... Pra que serve essa cabeça?'

Ali..., à direita.

Um galho, uma pedra. Um , dois e... Estava em cima do muro.

'Aqui pra vocês, filhas das puta', mostrando o dedo do meio.

Pulou pro outro lado. Caiu de pé.

'Acho que quebrei o tornozelo'. Não conseguiu levantar. 

Só precisa tentar apoiar o pé. Um, dois... (Viu estrelas).

Levou a mão ao pé. O osso estava pra fora.

'Agora que faltava tão pouco...'

Ouvia os passos cada vez mais perto.

Não os vejo mas sinto sua respiração.

'Então achou mesmo que era uma boa ideia dar no pé?'

Um tirou uma faca grande da cintura.

'Vou deixar a cabeça por último pra tu poder ver tudo'.

E começou:

Mão direita, mão esquerda, pé...

*********************

"Todo Errado"
Cly Reis


sábado, 10 de agosto de 2024

cotidianas #838 - Ela joga bola

 







Ela é menor que os outros
Mas joga muita bola
É uma grandeza o que joga essa moleca

Ela é melhor que muito homem
Joga a bola nela
É uma lindeza como joga essa menina


*************************
Ela joga bola
Cly Reis

quarta-feira, 10 de julho de 2024

cotidianas #837 - "Ou Isto Ou Aquilo"




Ou se tem chuva e não se tem sol
ou se tem sol e não se tem chuva!

Ou se calça a luva e não se põe o anel,
ou se põe o anel e não se calça a luva!

Quem sobe nos ares não fica no chão,
quem fica no chão não sobe nos ares.

É uma grande pena que não se possa
estar ao mesmo tempo em dois lugares!

Ou guardo o dinheiro e não compro o doce,
ou compro o doce e gasto o dinheiro.

Ou isto ou aquilo: ou isto ou aquilo ...
e vivo escolhendo o dia inteiro!

Não sei se brinco, não sei se estudo,
se saio correndo ou fico tranquilo.

Mas não consegui entender ainda
qual é melhor: se é isto ou aquilo.

**************************
"Ou Isto Ou Aquilo"
Cecília Meirelles

segunda-feira, 17 de junho de 2024

cotidianas #834 - "Deus te Conserve"

 



Mal sabiam que com seus cabelos
compridos imundos
Que com seus poderes poderiam
derrubar sanções
Tornar-se lendas, criar mundos.

Se tu soubesses o que podes
Mandarias pelos ares
Mandarins, Cézares e czares

Não obedeceria mandos, desmandos
Nem dez mandamentos
Manto Sagrado, sacrossanto, aqui ó!
Um saco!
Mando o sagrado para o quinto dos infernos

Fariam faraós
Curvarem-se diante de vós
Chamariam
Filhos de déspotas
de filhos das putas

Mas não...
Preferes criar mitos
Alimentar monstros
Falsos profetas
Ídolos idiotas

No fundo, no fundo
Sem profundidade
Na ponta do lápis
Desapontam
Se espreme, espreme
E nada exprimem

Deus te conserve assim
Deus te conserve

*************************
"Deus te Conserve"
Cly Reis  

segunda-feira, 10 de junho de 2024

cotidianas #833 - Pílula Surrealista #57

 

Já era quase hora de ir dormir. Aliás, algo que a esposa de Vicente já havia feito enquanto ele, desenxabido, sorvia lentamente um copo de whisky em frente à TV assistindo qualquer coisa com o volume quase no zero. O tempo lá fora, contudo, parecia selvagem, uma selvageria protegida apenas pelo indissolúvel concreto do prédio. Nada à sua volta, nem mesmo os preguiçosos dos gatos e do cachorro, todos dormindo com o sem a dona. Nem vizinhos pra atazanar, nem estampidos de WhatsApp pra infernizar os ouvidos. A noite quase morria.

Era possível ouvir seu peito asmático chiando, parecido com o ronronar dos gatos os quais trabalhava para alimentar. Até que outro som passou a dominar os ouvidos. O som do vento. A ventania irrompia subitamente na rua e batia nas janelas, nas persianas, balanceando-as cada vez mais violentamente. Os vidros, em fricção com o alumínio das esquadrias, rangiam, parecendo dizerem alguma coisa numa língua longínqua ou morta. Só que calhou de esta ser justamente a especialidade de Vicente: linguística de idiomas exóticos. E ele entendeu o que o vento queria lhe dizer.

Só pela manhã a esposa percebeu o espaço vazio no lado esquerdo da cama, um espaço não ocupado naquela noite e nem nunca mais por Vicente. Àquela hora, não havia mais tempo de resgatá-lo. Curiosamente, tempos depois Vicente foi visto pelas câmeras do Google Street View em dois pontos totalmente distintos do planeta: em Okarem, no Turcomenistão, na região de Balkan, e na Patagônia Argentina, mais precisamente em Ushuaia. No primeiro deles, caminhava por uma praia ensolarada e rústica às margens do Cáspio. Na outra imagem, aparecia com um gato a tiracolo na Avenida Maipú, próximo a Plaza Manuel Belgrano. Isso, num espaço de tempo de quatro anos. Disseram que enlouquecera, claro. Jamais iriam perdoá-lo ou tentar entender suas razões. O fato foi que Vicente entendera, isso sim, o chamado dos ventos. Dificilmente, um dia eles o fariam coincidir de retornar a seu agora antigo endereço.


Daniel Rodrigues


domingo, 19 de maio de 2024

cotidianas #831 - "Lama nas Ruas"





Deixa

Desaguar tempestade
Inundar a cidade
Porque arde um sol dentro de nós

Queixas
Sabes bem que não temos
E seremos serenos
Sentiremos prazer no tom da nossa voz

Veja
O olhar de quem ama
Não reflete um drama, não
É a expressão mais sincera, sim

Vim pra provar que o amor quando é puro
Desperta e alerta o mortal
Aí é que o bem vence o mal
Deixa a chuva cair, que o bom tempo há de vir

Quando o amor decidir mudar o visual
Trazendo a paz no sol
Que importa se o tempo lá fora vai mal
Que importa?

Se o clarão da luz
Do teu olhar vem me guiar
Conduz meus passos
Por onde quer que eu vá

Veja
O olhar de quem ama
Não reflete um drama, não
É a expressão mais sincera, sim

Vim pra provar que o amor quando é puro
Desperta e alerta o mortal
Aí é que o bem vence o mal
Deixa a chuva cair, que o bom tempo há de vir

Quando o amor decidir mudar o visual
Trazendo a paz no sol
Que importa se o tempo lá fora vai mal
Que importa

Se o clarão da luz
Do teu olhar vem me guiar
Conduz meus passos
Por onde quer que eu vá, se há

Se o clarão da luz
Do teu olhar vem me guiar
Conduz meus passos
Por onde quer que eu vá...

********************
"Lama nas Ruas"
Zeca Pagodinho
(Zeca Pagodinho / Almir Guineto)

terça-feira, 30 de abril de 2024

cotidianas #829 - Pílula Surrealista #56

 

Verônica levantou-se da cama tarde. Meio zonza, a cabeça ainda cheia da bebedeira da noite anterior. O atraso era fatal, só precisava se confirmar na prática quando, mais de uma hora além do horário do ponto, ela se depararia cara a cara com o chefe, sendo a dela de constrangimento e a dele de fúria. 

Mas o atraso não se confirmou. Melhor dizendo: jamais houve, pois nem atraso e nem compromisso se realizaram. Tudo isso porque, voltando ao momento da saída de Verônica da cama, os sapatos lhe embaralharam a rotina. Não somente de Verônica, aliás. De todos. Ao tentar calçá-los, ela percebeu que o pé direito calçava o sapato esquerdo e vice-versa. Não havia o que consertasse aquele descompasso. Com desconforto, calçou-os trocados. Era o que restava.

Mesmo assim, tentou ir ao trabalho. Saiu pela rua cambaleando e com os pés tortos num exercício de equilíbrio entre bolsa, filho, casaco, processos e autoconfiança. Foi difícil, ainda mais com a dor nos dedos dos pés que o aperto causava. Quase caiu num desnível da calçada, mas manteve a dignidade.

Menos mal que não era somente Verônica que sofria com aquele enviesamento imprevisível. Pessoas atrapalhavam-se com os próprios passos por todos os lados, como se tivessem desaprendido a caminhar em duas pernas, engatinhando igual espécies muito primitivas do homem. Tropeços, quedas, agonias. Uns, desacostumados como não poderia ser diferente, iam forçadamente na direção que o lado esquerdo apontava, mesmo que quisessem ir na direção exatamente oposta. Nas esquinas, Verônica e o filho precisavam desviar de amontoados de gentes, que despencavam umas sobre as outras e não conseguiam mais levantarem-se, numa cena tal qual condenados no fogo do purgatório: urrando, chorando, clamando, lamentando uma vida civilizada que nunca mais recuperarão.

"Trocar os pés pelas mãos", "andar pé ante pé", "usar o sapato do outro", "dois pés não cabem num só sapato", "cada um sabe onde lhe aperta o sapato". Vieram à cabeça de Verônica todos estes provérbios, os quais, contudo, não fizeram sentido, não lhe ajudaram em nada. Desistiu de levar o filho ao colégio a duas agora intermináveis quadras de distância. Parou no meio-fio, vencida. Pela primeira vez na vida, não sabia que direção tomar.


Daniel Rodrigues

quinta-feira, 18 de abril de 2024

"Gilberto Braga: O Balzac da Globo - Vida e obra do autor que revolucionou as novelas brasileiras", de Artur Xexéo e Maurício Stycer - Ed. Intrínseca (2024)

 




por Márcio Pinheiro

"Ele [Artur Xexéo] era um profissional que eu admirava e respeitava, dez anos mais velho do que eu. Aceitei a proposta do Gilberto [Braga] de continuar com o trabalho iniciado pelo Xexéo porque, entre outros motivos, entendi que seria também uma homenagem a este jornalista que respeito tanto".
Maurício Stycer


É possível gostar de um livro e ao mesmo ficar decepcionado? Meu amigo João Carlos Rodrigues me ensinou que sim ao comentar a desilusão que teve ao concluir a leitura da biografia de João Gilberto feita por Zuza Homem de Mello. Foi a mesma sensação que tive ao concluir a leitura de "Gilberto Braga: O Balzac da Globo - Vida e obra do autor que revolucionou as novelas brasileiras". 

Obra que teve uma trajetória atribulada, com a morte do personagem (Gilberto Braga) e do autor inicial (o jornalista Artur Xexéo), o livro acaba refletindo esses desencontros. Acabou sendo concluído por outro jornalista, Maurício Stycer, e aí surge o primeiro problema: Xexéo, então, em muitas partes, passa a ser tratado como fonte, não mais como autor. Stycer assume a conclusão das entrevistas e se responsabiliza pela redação final.

Outra desilusão foi com relação aos capítulos. São curtos demais e quase todos centrados na obra de Gilberto, com poucas referências ao making of. São ainda quase sempre apresentados num formato semelhante: Gilberto tem a ideia, desenvolve-a, discute com o diretor, começa a gravação, se desespera (com algum ator/atriz, com o Ibope, com a pressão interna da emissora...), promete que aquele será o último trabalho e... volta a escrever uma próxima novela - que servirá de base para o próximo capítulo do livro. 

Pouco se fala dos bastidores. Ficamos sabendo da óbvia admiração de Gilberto pela sua patota: José Lewgoy, Malu Mader, Dennis Carvalho, Antonio Fagundes... e até as pouco lembradas Henriette Morineau e Jacqueline Laurence, mas o livro pouco desenvolve quem Gilberto NÃO gostava. Fala en passant dos desentendimentos com Luiz Fernando Carvalho e com Vera Fischer. E só. Daniel Filho e Boni, tão fortes no início de Gilberto em 1972, contrastam com a ausência de Walter Clark, ainda mais poderoso na época e tão pouco citado. São escondidas também pequenas (quem era o cantor que Gilberto não tinha nenhum disco e se apressou em adquirir quando o convidou para um jantar na sua casa?) e grandes fofocas (a maior delas: o misterioso Diplomata, hoje com mais de 90 anos, que teria tido um papel afetivo importantissimo na vida do novelista?).

O livro tem méritos. Recupera bem a fase de Gilberto pré-Globo, a vida como professor de Francês e, mais ainda, como crítico teatral. Mostra também com detalhes o entorno familiar - mais complicado do que qualquer novela do autor. Apresenta ainda Gilberto como uma pessoa insegura, com obsessão por dinheiro (isso se fala quase no início, quando ele ainda está preocupado com um teste vocacional e confessa que "não enxergava futuro algum como professor, não gratifica ninguém, nem monetária nem intelectualmente"), preocupado com a ascensão social (tema tão presente em seus textos) e até da inveja que ele nutriu de Mário Prata durante um período, pelo fato de ele, Mário, ter livre acesso à sala de Boni e ele, Gilberto, não.

A vida de Gilberto Braga deu num livro bom. Poderia ter sido uma novela ótima.


domingo, 14 de abril de 2024

cotidianas #828 - XTRMSTa

 


- Vamos logo, Mari, o pessoal tá  esperando.

- Já vou, já vou.

Beto esperava impaciente, já  posicionado ao lado da porta.

- Vamos, Mari! - insistiu, diante da persistência da demora.

- Tô indo! Que pressa! - reclamou ela aparecendo no estreito corredor do apartamento, segurando algumas garrafas cheias de um líquido amarelado e com trapos enfiados nos bocais.

- O que que é isso? - interpelou Beto um tanto incrédulo do que estava vendo.

- Temos que estar prontos, Beto. - disse ainda com um pedaço de trapo na boca - O inimigo é implacável. Temos que estar prontos pra tudo.

- Mari, eu falei que é uma manifestação pacífica. PA-CÍ-FI-CA!

- Diz isso pra eles, diz. Vai lá e argumenta quando eles estiverem te descendo a borracha.

- Não vai ter borracha coisa nenhuma. Não vai ter essas tuas coisas também. A gente só vai lá, estica as faixas, os cartazes, marcha até  o local, grita aquelas palavras de ordem que a gente combinou e pronto.

Mari parou olhando fixamente para Beto com os braços caídos ao lado do corpo, em desânimo, com uma garrafa em cada mão.

- Agora larga isso aí e vamos.

Contrariada, deixou as garrafas no canto atrás da porta e saíram para a passeata.


**********

O povo bradava com os punhos cerrados e erguidos.

No meio da multidão, Beto parou com os gritos de guerra e olhou para o lado.

Mari não estava mais ali.

Vasculhou tudo apressadamente em volta, virando o pescoço para um lado e para o outro, quando finalmente a avistou lá na frente. Estava à frente da primeira fileira de manifestantes e a  apenas alguns passos da tropa de choque. Levava em uma das mãos um pequno bloco de paralelepípedo de granito.

Antes de avançar contra a barreira de escudos policiais, ela ainda olhou para trás e gritou, "Desculpa, Beto, mas a mudança não vai acontecer com palavras bonitas".

Arremessou a pedra...

- Viva la Revolución!


Cly Reis 

quinta-feira, 4 de abril de 2024

Sarau de leitura “Chapa Quente” – Macunaína Gastro Bar – Porto Alegere/RS (08/03/2024)

 

Faz já alguns dias, mas segue valendo a pena o registro do sarau literário com os autores gaúchos da editora Caravana, grupo do qual faço parte agora por conta do meu “Chapa Quente”. Foi no agradável Macunaíma Gastro Bar, na Cidade Baixa, que reuniu cerca de 15 escritores do “cast” gaúcho da editora. Teve poesia, ensaio, crônica e, claro, conto, garantida por outros e de minha parte com um trecho lido do meu “Abrindo-se”, história que abre o livro.

A coincidência do sarau com o Dia Internacional da Mulher fez com que, além de várias menções e homenagens, eu tivesse clareza de que trecho ler da minha obra, uma vez que cada um tinha em torno de 3 min com o microfone. O pedaço do conto que li falava exatamente da personagem Nina, uma sofrida jovem de classe alta que, em desavença com os pais, morava sozinha em um apartamento simples para seus padrões financeiros e sob o jugo dos homens da sua vida: o agressivo namorado e, principalmente, o pai opressor. Contudo, como ressaltei no preâmbulo que fiz em minha fala ao público presente, a história só se move por conta da ação interna transformadora a qual a personagem se dispõe.

Eis o trecho:

"Acontece que Nina, ao contrário do que alguns tentavam imputá-la, tinha muita capacidade e inteligência. A ponto de buscar no fundo de seu íntimo forças para sair daquele poço emocional. Tudo que não queria era transformar-se no que sua mãe se transformou. Porém, por outros caminhos, via que era justamente isso que estava acontecendo. E afinal, não era exatamente isso que seu pai queria, que as mulheres se anulassem diante dele? Reflexões que a música de Felipe lhe dava condições de fazer nas horas a fio de ensaio dele e de ostracismo dela. “Como esta melodia consegue ser tão delicada e intensa ao mesmo tempo?”, questionava. Impressionava-a que, ali, as repetições eram salutares, diferentemente do que costumavam lhe dizer ao demonizarem a repetição. Através daqueles acordes encadeados, quase hipnóticos, ficava-lhe claro ser possível evoluir e conjugar leveza e força, tudo em que sempre fizeram Nina desacreditar. 

Tanto que buscou ajuda: adotou um cachorro, parou com as drogas, desfez-se das garrafas de álcool, passou a escancarar todas as manhãs as janelas por muito tempo cerradas e começou a fazer terapia online. Quase sempre as sessões eram embaladas pelo toque daquele mesmo tema tocado repetidamente por Felipe, como uma trilha sonora martelada de um filme cujo roteiro chegava na parte em que a mocinha superava a crise em direção a um desfecho feliz. Nina buscou harmonizar-se com a mãe e, dentro do possível, entender a postura do pai. Ainda não o havia perdoado e nem sabia se um dia conseguiria, mas tentava viver um dia depois do outro. Só não via mais conserto no relacionamento com o namorado, que, desinteressado, pois muito provavelmente já em outra, cada vez menos aparecia, até que sumiu de vez."

Bom conhecer o pessoal da editora, que em parte veio de Belo Horizonte diretamente para o evento, bem como alguns dos colegas escritores. Casa cheia é sempre legal. Esta foi, embora tímida, a primeira aparição pública de “Chapa Quente”, cujo lançamento foi final de dezembro do ano passado. Prenúncio para, aí sim, um lançamento oficial, que pretende-se arranjar em breve. Por ora, no entanto, alguns registros, feitos pela lente atenta de Leocádia Costa, desse momento de letras e encontros. 

*********

A literária Macunaína Gastro Pub


Casa movimentada


Com o editor Leonardo Costaneto (em pé), Leocádia e outros autores


Lendo trecho de "Chapa Quente" no sarau da Caravana


Com os outros autores gaúchos e o pessoal da editora


Momento da leitura, apresentando-se e justificando 
o porquê do trecho escolhido



texto: Daniel Rodrigues
fotos e vídeo: Leocádia Costa, Daniel Rodrigues e Guy Leonard






domingo, 31 de março de 2024

cotidianas #826 - 'SPQR: O Super-Soldado Romano'

 




- Mandou me chamar, Senhor?

O governador se ajeitou no trono e encarou o homem à sua frente com um olhar sentencioso.

- Chegou a meus ouvidos que teria sido ideia tua aplicar a tal poção bizantina em um dos condenados.

O centurião, um tanto embaraçado, hesitou um instante mas confirmou:

- Sim, meu senhor..., a sugestão foi minha.

Novamente acomodando-se no trono, desconfortável, incomodado, o governador da Judéia, claramente impaciente, lançou ao centurião:

- E não te passou pela cabeça, em nenhum momento que DANDO AQUELES PODERES A UM INDIVÍDUO QUE JÁ ERA ADORADO, IDOLATRADO, ELE PODERIA  FICAR AINDA MAIOR COM TUDO ISSO? - aumentando gradativamente a voz até terminar a frase praticamente num berro.

- Eu... eu considerei que deveríamos testar antes de dar aos nossos soldados e... pensei que fosse melhor dar a um condenado pacífico do que àqueles outros, bandidos, assassinos... se tivesse algum outro efeito, se ficasse violento, seria mais fácil de controlar e...

- ... E então ele resiste a mais castigo e torturas do que qualquer outro homem resistiria, revive dias depois e ainda assim pareceu uma boa ideia? - completou interpondo-se na frase do subordinado. 

O legionário não soube o que responder.

- Bem, - tentando acalmar-se - ao menos agora temos a certeza que a tal poção para o super-soldado romano funciona. Nossos homens ficam mais resistentes, suportam qualquer dor e, principalmente, não podem ser mortos. 

- Sim, meu senhor... Embora não tenhamos certeza de quanto tempo podem viver depois de retornarem da morte, creio que a experiência foi positiva. - argumentou o centurião, um pouco aliviado.

- Tragam aqui o alquimista bizantino, ou seja lá como chamam aquilo que ele faz. - ordenou o governador Pilatos a um dos soldados que guardava a porta.

O governador da judéia bebeu um gole de vinho e, enquanto aguardava o retorno do soldado trazendo o místico, voltou a dirigir-se ao centurião:

- Quero, então que dê a solução para todos os soldados. Mandem esse hierofante ou seja o que for preparar a fórmula. Dêem-lhe o que for preciso para produzir para todos nossos homens.

- Sim, meu senhor. - assentiu o militar.

- Quanto ao judeu, - prosseguiu com as ordens - localizem-no, dêem um fim nele e certifiquem-se de que todos que o viram vivo não possam confirmar o fato.

Neste momento, quase correndo entrou pela porta o soldado, com uma aparência pálida e olhos arregalados.

- O que foi? - quis saber o governador - Onde está o homem?

- Sumiu, meu senhor.

- Como assim sumiu? Alguém deixou que ele fugisse? Abriram sua cela, foi isso?

- Não, meu senhor... Sumiu! Evaporou...

- Como 'evaporou'? - duvidou o nobre - Isso é alguma espécie de brincadeira? Vou mandar te crucificar e ao responsável por essa troça!

- Eu juro, meu senhor, eu juro. Se desfez como fumaça, passou entre as grades, voou pela janela, se espalhou pelo ar...

- Centurião Flávio Augusto, leva este homem. Crucifiquem-no e a todos envolvidos nessa galhofa!

- Sim, meu senhor. Ave, Tibérius! - E saiu segurando o soldado pelo braço sem resistência alguma.

Novamente sozinho no salão, em seu trono, Pôncio Pilatos recostou-se reflexivo. O estrago já estava feito: eles endeusariam o tal nazareno, o seguiriam incondicionalmente. Sabia que os tempos, a partir daquele momento seriam diferentes para Roma e seu Imperador. O mundo acabara de recomeçar.




Cly Reis

 

terça-feira, 26 de março de 2024

cotidianas #825 - Novas Versões para Antigos Clássicos da Literatura - "Alice na Toca do Coelho"




Alice já estava cansada de ficar sentada no banco sem nada para fazer. Foi quando, de repente, um Coelho Branco de olhos cor-de-rosa passou correndo perto dela. Não havia nada de tão incrível nisso fora o fato do Coelho Branco repetir continuamente para si mesmo: — Ai, rapaz! Ai, rapaz! Vou me atrasar. Alice se alvoroçou mesmo foi quando o Coelho Branco sacou um relógio do bolso de seu colete, checou as horas e saiu apressado. Ela se deu conta de que nunca tinha visto um coelho com um relógio no bolso do colete. Ardendo de curiosidade, correu atrás dele a tempo de vê-lo se emburacar toca adentro no pé de uma cerca. 

No instante seguinte, era Alice quem se entocava ali. Decidiu perseguir o Coelho Branco sem refletir sobre como sairia daquele buraco. 

A toca tinha um trecho reto semelhante a um túnel. Depois, inclinava-se bruscamente para baixo, tão bruscamente que Alice não foi sequer capaz de pensar em frear. Simplesmente despencou em um poço de grande profundidade. 

Alice caía, caía, caía... Será que aquela queda não acabaria nunca? — Então, de repente: plunct! Aterrissou em um amontoado de gravetos e folhas secas. A queda havia chegado ao fim. 

Sem nenhum arranhão, ela se levantou em um instante. Olhou para cima, mas sobre sua cabeça tudo estava escuro. Atrás de Alice havia outra passagem longa, onde ainda se podia ver o Coelho Branco descendo bem depressa. Não dava para perder nem um segundo: lá foi a menina, veloz como o vento ainda a tempo de vê-lo fazer a curva. Alice estava perto dele ao fazer, mas o Coelho Branco já não podia mais ser visto. Sumira na escuridão de um salão comprido, baixo e mal iluminado. 

De repente, de um ponto qualquer na escuridão do fundo do salão, viu surgir o Coelho que avançou lentamente para uma faixa um pouco mais iluminada onde ela podia distingui-lo melhor. Ele estancou a encará-la e Alice, por sua vez, o olhou com curiosidade. 

De trás do Coelho Branco, também daquela treva, surgiram à luz algumas figuras no mínimo excêntricas: um tipo alto com uma cartola extravagante, um homenzinho baixo tão gordo que se assemelhava a um ovo, um par de gêmeos rechonchudos vestidos de forma rigorosamente igual, e um gato que a encarava com um sorriso sinistro na cara. 

O Coelho, girando a corrente do relógio de bolso, e agora parecendo ignorar a presença da menina, depois de um angustiante período de silêncio, finalmente abriu a boca e falou: - Eu não disse que ela ia me seguir? Tá aí ela, gente. Podem descer a porrada.



Cly Reis
livremente inspirado em "Alice no País das Maravilhas",
de Lewis Carrol

domingo, 10 de março de 2024

cotidianas #823 - A Volta do Anjo Exterminador

 



"Tá gravando?
...
Hm, hm...
Estamos aqui na casa onde foi rodado o filme "O Anjo Exterminador", em 1962.
No clássico de Luis Buñuel, um grupo de pessoas, convidadas para uma festa de aristocracia, depois de ingressar na casa onde acontece a recepção, não consegue sair dela. Nada os impede, não há portas trancadas, nada fechando-lhes a passagem, mas, simplesmente, não conseguem deixar a casa. É como se uma força invisível, algo inexplicável os mantivesse dentro. E é exatamente aqui que estamos hoje para vocês, no nosso "O Fabuloso Mundo de Amélia Bolaños", o canal dos cinéfilos loucos por relíquias, raridades e curiosidades do mundo do cinema.
Olha só..., vem aqui, vem comigo... Aqui é a sala onde ficavam os convidados, aqui, um pouco adiante é aquele cantinho onde alguns se acomodaram pra dormir, aqui é... O que que foi?
Por que parou de gravar?
Polícia?
Guarda tudo, guarda tudo. Desliga a câmera, guarda isso, vai.
Guarda logo, Julito.
Vamos sair logo daqui.
Por ali, por ali...
Ali, a porta, vai.
Anda, Julito, vai.
Como assim, acha melhor a gente ficar? Vão nos prender! Vai logo.
...
Anda, sai.
Ah, sai da frente, Julito, deixa que eu vou na frente.
...
Sei lá. Talvez seja melhor a gente esperar um pouco mais. Quem sabe a polícia nem percebe que a gente tá aqui e vai embora.
Ah, agora você quer sair?
Então por que não sai?
Como assim não consegue?
Sai logo, Julito. Sai logo.
Será que...?
Não é possível!!!
Ai, meu Deus!
Julito, faz alguma coisa.

Ali, ali, a polícia chegou. Graças a Deus.
Policial, policial, nos ajuda! Nos tira daqui.
...
É, é o que nós queremos, sair. Não conseguimos.
...
Eu já disse, a gente sairia se pudesse mas não conseguimos.
Não, não entra aqui. Não entra."


*************


"Central, câmbio...
Pode repetir, 65?
...
Um bando de jovens invadiu um imóvel abandonado?... É isso? Câmbio.

...

A orientação é para que os retire do imóvel e retorne para a Central. Câmbio.

Não conseguem sair? Você também não consegue? Câmbio.

Eles estão lhe impedindo de alguma maneira, 65? Estão armados? Obstruíram os acessos, as aberturas? Câmbio.

...

Qual a sua localização, 65?

...

Rua da Providência..., sim, sei.
Ok. Aguarde reforços. Estamos enviando uma unidade para o local. Câmbio e desligo."


*************

Dez horas já haviam se passado desde que a unidade de reforço chegara. Agora já eram sete pessoas dentro da casa.
Os sinos da catedral da Cidade do México badalavam para a missa das seis.




conto de Cly Reis
inspirado no filme "O Anjo Extermandor"
de Luis Buñuel

sexta-feira, 16 de fevereiro de 2024

"Roberto Carlos em Detalhes", de Paulo César Araújo - ed. Planeta (2006)

 

por Márcio Pinheiro


"Eu tive duas motivações. Uma foi a afetiva: ele foi meu primeiro ídolo de infância. A outra, inte­lectual. Quando cheguei à faculdade e me interes­sei pelo estudo da música brasileira, constatei que não tinha nenhum livro que explicasse o fenóme­no Roberto Carlos."
Paulo César Araújo, sobre o que o motivou a escrever a obra


Se você pretende saber quem ele é, eu posso lhe dizer: está tudo em "Roberto Carlos em Detalhes", livro de Paulo César Araújo lançado pela Editora Planeta em 2006, logo depois retirado de circulação e até hoje o mais completo perfil biográfico feito sobre um artista tão gigantesco quanto misterioso. Na internet, o livro pode ser encontrado pelo preço médio de 400 reais.

Resultado de 16 anos de pesquisas e entrevistas, "Roberto Carlos em Detalhes" começou a ser desenvolvido em 1990, quando Araújo - autor de "Eu Não Sou Cachorro, Não" - começou a coletar dados para um trabalho específico sobre a Jovem Guarda. Entre as quase duas centenas de entrevistas - incluindo aí nomes como Tom Jobim, Chico Buarque e João Gilberto - percebeu que um nome se destacava.

Assim, o bem detalhado "Detalhes" acompanha a trajetória do cantor desde a infância, do nascimento em Cachoeiro do Itapemirim, em abril de 1941, filho caçula do relojoeiro Robertino e da costureira Laura, e revela aspectos pouco conhecidos e/ou comentados, como quando Roberto Carlos, aos seis anos, foi atropelado por uma locomotiva e sua perna direita teve de ser amputada até pouco abaixo do joelho.

O autor também acompanha a chegada de Roberto Carlos ao Rio, em 1956, relatando o encontro do jovem com Wilson Simonal, Tim Maia, Erasmo Carlos e, principalmente, com o produtor musical Carlos Imperial, a quem Roberto chamava de "papai" e que foi responsável pela gravação de seu primeiro disco. Antes disso, Roberto Carlos, suburbano com influências roqueiras, tentou se inspirar em João Gilberto, mas nunca foi bem aceito pela turma da Zona Sul. Resolveu abandonar o ídolo e criar um caminho à parte. "Ele foi rechaçado pela classe média. Era chamado de 'João Gilberto dos pobres'", lembra Araújo.

Das diversas fases do cantos - da Jovem Guarda ao romantismo dos motéis, dos rocks iniciais ao misticismo - tudo está contemplado. Araújo conta histórias sem descambar para a mera fofoca e esmiúça todos os fatos que já foram contados superficialmente em um ou outro lugar.


terça-feira, 13 de fevereiro de 2024

cotidianas #821 - "Quem cai na dança não se 'alembra' de mais nada"

 



Assim se costuma dizer, e é bem certo. Ora, eu lhe conto: uma vez um capitão soube que muitos praças de sua companhia estavam num cateretê ferrado, longe do quartel, bebendo, dançando, brigando, pintando os sete demônios.

Chamou a ordenança e mandou buscar a soldadesca. Mas, o camarada em lá chegando, vendo que o pagode estava mesmo bom, com cada cabocla xodó, de trazer água na boca, e com um violeiro que botar no verso e no ponteá não havia outro − esqueceu-se da ordem, e caiu também na dança.

O capitão cansado de esperar e vendo que nem os praças, nem o ordenança voltavam, chamou o cabo e o mandou atrás do pessoal. Mas, o cabo foi, e aconteceu a mesma coisa: caiu na dança, e também não voltou. O capitão já estava ardendo de raiva. E vai daí, mandou o furriel. Mas o furriel fez o mesmo: caiu na dança, e era um dia...

O capitão queimava. Estava mesmo para arrancar as barbas de bode. E mandou o sargento, com ordem de trazer todo aquele povo na chincha.

Mas, o sargento não era de ferro... e vendo tanta mulata de pega pra saí, entrou na roda: Eta! Rapaziada boa!

O capitão, brabo que nem cobra na hora da queimada, chispou o alferes em busca da negrada.

Mas o alferes − que havia de fazer? Era dos tais que não podem ver defunto sem chorar, e caiu na pândega, com os galões e tudo. E espera pra lá, capitão do inferno!

E o capitão apois mandou que o tenente trouxesse tudo de cambulhada, e, já sabia, trinta por sessenta na canalha.

E vai o tenente pegou da espada e foi bufando por ali afora, que parecia um raio.

Mas, então a coisa é que estava mesmo boa. Eta sapateado de remelexo! E o tenente deu a espada pru cabo e... entra, Juca! Aquilo ia correndo trinta por um mês, que era um regalo.

A corneta tocou, mas, nada! Ninguém apareceu na revista da companhia. Então é que o capitão quase tira as calças e pisa nelas. E resolveu ele mesmo ir buscar a rapaziada. Havia de pegá-la pra Judas! Riscou nos calcanhos, como caititu na trilha com cachorrada atrás...

Mas chegando ao pagode... Eh! Maria Chica danada pra dançar! Quando ela avistou o capitão, fez uma chamada com o lencinho bordado, estalou os dedinhos pra banda dele e o bicho entrou na dança, como sapa n′água.

Fechou a roda. A companhia inteira dançava que era uma gostosura. E o violeiro então pegou a cantar:

Venha ver, ó minha gente,

Como é boa esta função.

Viola, dança e mulata

Prende inté seu capitão.

No outro dia o tenente perguntou ao oficial:

− Pronto, meu capitão: quantas cadeias pra negrada?

− Deixa disso, tenente. Quem cai na dança, não se alembra de mais nada...

E pegaram a rir, e tudo acabou em santa paz.


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"Quem cai na dança não se 'alembra' de mais nada"
anônimo (folclore popular)

segunda-feira, 22 de janeiro de 2024

cotidianas #819 - Por Pouco

 



Por pouco - Cly Reis

Não foi nada, não.

Não é nada, não é nada
mas já é alguma coisa

É pouco
Eu sei
Mas é melhor que nada, não?

É muito pouco
É pouco demais
É quase nada

(Não fique assim)
Não foi nada, não foi nada...

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"Por pouco"
Cly Reis

sexta-feira, 19 de janeiro de 2024

Livro "Chapa Quente" - Pré-lançamento

 


“Chapa Quente” é uma reunião de cinco contos que têm em comum as tensões interpessoais e a complexidade das relações humanas, independente da época, do local ou da cultura em que ocorram.
Com imensa satisfação, anuncio o meu mais novo livro, "Chapa Quente", que está em fase de pré-lançamento. Quase saindo do forno! É o meu primeiro de contos individual, eu que já estive em seleções e antologias coletivas. A publicação sai pela mineira Caravana Editorial, de Minas Gerais.

A capa, de autoria do designer Caíque Cavalcante sobre uma fotografia do editor da Caravana, Leonardo Costaneto, é o detalhe da parede de um restaurante em Madrid. Curioso é que, vendo a imagem pela primeira vez, meu irmão e coeditor do blog, Cly Reis, achou que se tratava de algum desenho feito por mim, pois o traço parece com o meu. Revendo, percebi: "não é que parece mesmo?!". Coincidências da vida - ou não tão coincidências assim.

Mas para dar uma ideia do conteúdo em si, “Chapa Quente” é uma reunião de cinco contos de minha autoria, que têm em comum as tensões interpessoais e a complexidade das relações humanas, independente da época, do local ou da cultura em que ocorram. Seja nas favelas dos morros cariocas, na Europa iluminista ou nas pradarias inóspitas da América do Norte. E o fogo está ali, queimando sempre.

Ficaram instigados? Então, aqui um trecho do conto que dá título à obra, originalmente de 2014:

“O som insistia em não parar, o que os deixava ansiosos, porém, também apreensivos caso parasse, pois perderiam a pista. Até que Fabão, quieto e observador que era, levantou-se do sofá, chegou perto do sequestrado e encostou o ouvido na altura de seu ventre. Apenas apontou o dedo na direção da barriga dele. Era o celular pequeno e antigo que o tinham obrigado a engolir na hora do sequestro.” 

E aí, instigou? Para adquirir, está em tempo ainda: basta acessar este link


Daniel Rodrigues