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sexta-feira, 20 de setembro de 2024

"Verissimo", de Angelo Defanti (2023)


por Leocádia Costa

“Tudo em Verissimo – a emoção, o lirismo, o drama e até a erudição de quem leu, viveu, ouviu e assistiu do bom e do melhor – é contido e temperado pela autoironia e por um humor generoso e irresistível”. 
Zuenir Ventura – "Conversa sobre o tempo"

“A vida privada do brasileiro, contudo, é o seu forte – ou as comédias da vida privada, para dizer melhor. Os rituais do namoro e do casamento, o sexo, as infidelidades, o choque de gerações, tudo isso é um prato cheio para o escritor. Quanto ao humor de Verissimo, ele é de um tipo muito especial. Por mais incisivas que sejam, suas piadas nunca destilam raiva. Ele não procura o fígado do leitor nem professa um humor amargo, desiludido com a humanidade. Verissimo afirma que, à medida que envelhece, talvez esteja caminhando para um ceticismo terminal, daqueles que não dão desconto. Mas ainda não chegou lá.”
Revista Veja, em reportagem de capa sobre Luis Fernando Verissimo

“Superlativo já no nome, Verissimo possui dois instrumentos de audição, dois de visão, um, bifurcado, de olfato, um gustativo (exemplarmente cultivado) mas, homem cheio de dedos, é bom mesmo no tato. Humorismo nunca ninguém lhe ensinou. Ele se riu por si mesmo.” 
Millôr Fernandes - "Millôr Definitivo - A Bíblia do Caos"


Assistir ao filme do multiartista Luis Fernando Verissimo é vivenciar a passagem do tempo e a chegada da maturidade de um homem perto de completar os seus 80 anos de vida. 

O filme começa de uma forma muito bonita, revelando o dia a dia, a rotina desse escritor, a sua escuta permanente de todos os sons ao redor, a sua relação íntima com a família (com a esposa Lúcia, com os filhos Pedro, Mariana e Fernanda, com os netos Lucinda e Davi), a sua predileção apaixonada pelo time do coração, Internacional. Aliás, essa é uma das paixões, além da literatura, que temos em comum, pois também me tornei igualmente torcedora, de forma irreversível, após sucessivas experiências traumáticas: vestir uma camiseta pinicante do Grêmio quando criança, uma apreensiva ida ao estádio clássico da Medianeira e passar 90 minutos na iminência de receber um saco de urina na cabeça, e por fim, namorar um gremista... disso tudo  se salva somente a entrada do almoço do restaurante Mosqueteiro, que era “mara” e onde fui com meus pais algumas vezes ainda na primeira infância. 

Voltando ao filme: o documentário mostra uma série de relações que foram se estabelecendo no decorrer do tempo entre a sua produção literária, a sua produção jornalística e a sua forma de estar no mundo. É um filme que encanta a gente! Deixa-nos ver de forma tão íntima a rotina dele e nos permite encontrar um escritor com o corpo idoso, mas com uma mente superligada em tudo que está acontecendo. Verissimo tem uma incrível curiosidade, um senso de humor permanente, né? E de uma forma muito imediata, embarcarmos naquilo que a gente poderia dizer que é o imaginário dele, sabe? 

Momento de intimidade com os netos
No filme me chamou atenção a relação dele com a neta Lucinda, a mais velha entre os netos e muito parecida com ele. Os dois se entendem no olhar, se entendem nas pausas e se entendem nessa “maluquice do bem” que é vivenciar mundos paralelos diversos, enquanto inventam personagens, estórias e situações, só para se divertir, só por ser prazeroso, só por haver essa troca entre os dois. Avô e neta, escrevendo os dias – é tocante. 

O filme me fez lembrar também da primeira vez que eu entrei na casa dos Verissimo. Porque essa casa tem uma identidade muito forte: é uma casa que estrutura parte da história de uma família, desde a existência dos pais do cronista, o renomado Érico Verissimo e a Dona Mafalda. Interessante perceber que pai e filho souberam costurar o tempo em suas existências. Foi ali que o valioso núcleo familiar vivenciou e construiu suas vidas em Porto Alegre. Ver Luis Fernando ali, nesse ambiente tão fértil, e ao mesmo tempo, tão sólido, onde tudo continua existindo é, sim, parte dessa história. 

Lembrei-me da primeira e única vez que eu entrei, lá em 1997, quando eu fui entrevistá-lo para o meu Trabalho de Conclusão de Curso da PUCRS, em Comunicação Social – Publicidade intitulado: “Comédias da Vida Privada – uma produção ficcional na televisão brasileira”. Quem conseguiu o contato foi a minha queridona Gagá (Maria da Graça Dhuá Celente), que era amiga da família, coordenava o Departamento de Publicidade da FAMECOS/PUCRS, onde eu, estudante quase me formando, era sua monitora e na mesma instituição que eu havia sido sua aluna. Ela, com toda a gentileza, colocou-me em contato com a agente literária e com a esposa do Verissimo. Eles se conheciam acredito que dos tempos da publicidade em que Verissimo foi redator no Rio de Janeiro, mesma cidade em que conheceu sua esposa, Lúcia. Uma ponte muito amorosa se ergueu naquele momento, reverberando posteriormente na minha entrada em outros mundos literários. Gagá me ingressou na Publicidade e, de certa forma, me fixou na Literatura.

Em 09 de junho de 1997, foi apresentado o TCC para uma banca potente, com a cineasta Flávia Seligman, a Gagá e o professor Bob Ramos, além da minha orientadora, Ana Carolina Escosteguy. Falar nessa produção do “Comédias da Vida Privada”, que era muito contemporânea, ainda fresca e presente na televisão e que me deixava totalmente arrebatada, foi algo ousado, mas somente hoje, depois de 27 anos, é que percebo isso. Naquela ocasião, tinha o dever de concluir, em meio a tantos compromissos, uma faculdade. Percebi, muito jovem, esse trâmite entre a Literatura e o Audiovisual, e as entrevistas que se sucederam com Jorge Furtado e Carlos Gerbase me deram essa certeza de que estava com uma percepção fina da realidade.

Como leitora do Verissimo, eu vi verter das páginas que ele tinha escrito, diálogos para televisão com atores e atrizes de uma geração supertalentosa e muito bem dirigidos. Ao entrar naquela casa fui bem recebida pela Dona Lúcia e por ele, que chegou silenciosamente e timidamente sentou-se numa cadeira thonart em frente à minha. Ficamos os dois em cadeiras por alguns minutos ali. Um pouco tímida, fui fazendo perguntas para ele e ele me respondendo, algumas de forma mais breve e outras com o maior profundidade, com a maior atenção.

 O som da rua e o som do relógio estavam presentes naquele meu encontro com Verissimo, como se um estivesse conectado ao mundo externo e o outro marcasse o tempo interno. E no filme esse quase personagem constante se mostra pelo som, o que me trouxe a mesma sensação de quando entrei na casa.

O reservado Verissimo em seus momentos de retiro

Eu estava na frente de uma pessoa que eu admirava muito e simpática a mim, mas totalmente reservada. Ele escutava muito, e isso para mim, que sou super tagarela, foi me dando um senso maior de responsabilidade do que dizer sem ser óbvia ou burra. Mas o fato é que a entrevista foi muito boa, me rendeu algumas informações direto do autor daquela produção toda, que eu rapidamente adicionei no meu trabalho. Um tempo depois enviei uma cópia do TCC para ele ter/ler e fiquei muito surpresa quando soube que ele havia adicionado ao site que ele mantinha com indicações de obras, entre outros itens e indicações de trabalhos sobre a sua produção. Então, acabei concluindo que ele leu e gostou! 

No filme aparece uma cena poética desse respeito que ele tem com as pessoas que se dirigem a ele, como leitoras ou como referência, na espera de uma leitura daquilo que escrevem. O retorno que ele proporciona para quem abre esse diálogo sincero com ele é muito bonito! Um misto de gentileza com escuta, algo cada vez mais raro na sociedade em que se vive. Enquanto eu assistia ao filme tudo isso emergiu, revelando, inclusive, algumas pessoas importantes da minha biografia, além do próprio Verissimo e da Gagá. Relembrei que havia conhecido a Lúcia Riff (agente literária dele e de boa parte dos escritores brasileiros) não num trabalho da Casa de Cultura Mario Quintana, através do Sergio Napp e, sim, nesse momento aí, do TCC, sendo que a Lúcia até hoje é uma pessoa importantíssima em minha vida. Ela foi quem sempre me apoiou e me deu aval para que eu pudesse desenvolver vários trabalhos com a obra do Mario Quintana e foi muito bonito rever a nossa história a partir deste filme. Além dela, outras personagens importantes aqui da nossa cidade aparecem e se relacionam com a momentos da vida de Verissimo e da minha: o inventivo Cláudio Levitan, o poeta Mario Pirata e a pesquisadora Maria da Glória Bordini, pessoas que fazem parte da história de Porto Alegre. 

Foi muito emocionante para mim assistir Verissimo completar 80 anos através deste filme, pela TV após ter sido impedida de ver no cinema, em maio deste ano, em função das enchentes que atingiram não somente a programação da estreia mas a sala de cinema onde aconteceria a exibição. Verissimo sempre esteve muito presente na minha casa, era lido por meus pais, muito antes de eu ser sua leitora. Nestes mais de 40 anos que eu convivo com seus pensamentos e senso de humor muito lúcidos e geniais, volto a dizer que os artistas não deveriam se afastar dos seus ofícios. Sendo eternos mesmo quando se tornam um dia invisíveis à nossa percepção, a obra, o olhar e o recorte do tempo permanecerão imortais para quem os leu profundamente. O tempo é uma realidade com a qual precisamos saber lidar. Afinal, somos nós quem passamos por ele e, Verissimo faz isso de maneira suave, constante e inspiradora. 

Obrigada, Verissimo, por tanto! E agradeço também por esse encontro às sensíveis e generosas mulheres Gagá e as “Lúcias” Verissimo e Riff.

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tralier oficial de "Verissimo"


"Verissimo"
Direção: Angelo Defanti
Gênero: Documentário
Duração: 90 min.
Ano: 2023
País: Brasil
Onde encontrar: NET/Claro - Now


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sábado, 31 de agosto de 2024

cotidianas #840 - Pílula Surrealista #58

Um esperou pelo outro, e o outro esperou pelo um. O um esperou pelo um, e o outro pelo outro, e os dois pelos dois, e os três pelos três, quatros, cincos, seis, setes outros, infinitamente. Quem se beneficiou foi o pedestre, que atravessou o cruzamento com seus fones isolantes e os olhos enfiados na tela do celular sem atenção alguma ao que se sucedia.

Não houve buzinas, nem xingamentos, nem irritação, nem discussão ou vias de fato. Sequer sentimentos de aflição, derrota ou sujeição: todos os motoristas, presos em seus carros apontados de frente uns para os outros, como vacas aplastadas num curral, aguardavam-se mutuamente com resignação e tranquilidade. Em silêncio.

Um silêncio incomum ao perturbador trânsito daquela hora, final de tarde. Tão incomum quanto a invisível nuvem de solidariedade que ali desceu inexplicavelmente, naquele que foi considerado o primeiro engarrafamento gentil da história daquela cidade.


Daniel Rodrigues

segunda-feira, 10 de junho de 2024

cotidianas #833 - Pílula Surrealista #57

 

Já era quase hora de ir dormir. Aliás, algo que a esposa de Vicente já havia feito enquanto ele, desenxabido, sorvia lentamente um copo de whisky em frente à TV assistindo qualquer coisa com o volume quase no zero. O tempo lá fora, contudo, parecia selvagem, uma selvageria protegida apenas pelo indissolúvel concreto do prédio. Nada à sua volta, nem mesmo os preguiçosos dos gatos e do cachorro, todos dormindo com o sem a dona. Nem vizinhos pra atazanar, nem estampidos de WhatsApp pra infernizar os ouvidos. A noite quase morria.

Era possível ouvir seu peito asmático chiando, parecido com o ronronar dos gatos os quais trabalhava para alimentar. Até que outro som passou a dominar os ouvidos. O som do vento. A ventania irrompia subitamente na rua e batia nas janelas, nas persianas, balanceando-as cada vez mais violentamente. Os vidros, em fricção com o alumínio das esquadrias, rangiam, parecendo dizerem alguma coisa numa língua longínqua ou morta. Só que calhou de esta ser justamente a especialidade de Vicente: linguística de idiomas exóticos. E ele entendeu o que o vento queria lhe dizer.

Só pela manhã a esposa percebeu o espaço vazio no lado esquerdo da cama, um espaço não ocupado naquela noite e nem nunca mais por Vicente. Àquela hora, não havia mais tempo de resgatá-lo. Curiosamente, tempos depois Vicente foi visto pelas câmeras do Google Street View em dois pontos totalmente distintos do planeta: em Okarem, no Turcomenistão, na região de Balkan, e na Patagônia Argentina, mais precisamente em Ushuaia. No primeiro deles, caminhava por uma praia ensolarada e rústica às margens do Cáspio. Na outra imagem, aparecia com um gato a tiracolo na Avenida Maipú, próximo a Plaza Manuel Belgrano. Isso, num espaço de tempo de quatro anos. Disseram que enlouquecera, claro. Jamais iriam perdoá-lo ou tentar entender suas razões. O fato foi que Vicente entendera, isso sim, o chamado dos ventos. Dificilmente, um dia eles o fariam coincidir de retornar a seu agora antigo endereço.


Daniel Rodrigues


terça-feira, 30 de abril de 2024

cotidianas #829 - Pílula Surrealista #56

 

Verônica levantou-se da cama tarde. Meio zonza, a cabeça ainda cheia da bebedeira da noite anterior. O atraso era fatal, só precisava se confirmar na prática quando, mais de uma hora além do horário do ponto, ela se depararia cara a cara com o chefe, sendo a dela de constrangimento e a dele de fúria. 

Mas o atraso não se confirmou. Melhor dizendo: jamais houve, pois nem atraso e nem compromisso se realizaram. Tudo isso porque, voltando ao momento da saída de Verônica da cama, os sapatos lhe embaralharam a rotina. Não somente de Verônica, aliás. De todos. Ao tentar calçá-los, ela percebeu que o pé direito calçava o sapato esquerdo e vice-versa. Não havia o que consertasse aquele descompasso. Com desconforto, calçou-os trocados. Era o que restava.

Mesmo assim, tentou ir ao trabalho. Saiu pela rua cambaleando e com os pés tortos num exercício de equilíbrio entre bolsa, filho, casaco, processos e autoconfiança. Foi difícil, ainda mais com a dor nos dedos dos pés que o aperto causava. Quase caiu num desnível da calçada, mas manteve a dignidade.

Menos mal que não era somente Verônica que sofria com aquele enviesamento imprevisível. Pessoas atrapalhavam-se com os próprios passos por todos os lados, como se tivessem desaprendido a caminhar em duas pernas, engatinhando igual espécies muito primitivas do homem. Tropeços, quedas, agonias. Uns, desacostumados como não poderia ser diferente, iam forçadamente na direção que o lado esquerdo apontava, mesmo que quisessem ir na direção exatamente oposta. Nas esquinas, Verônica e o filho precisavam desviar de amontoados de gentes, que despencavam umas sobre as outras e não conseguiam mais levantarem-se, numa cena tal qual condenados no fogo do purgatório: urrando, chorando, clamando, lamentando uma vida civilizada que nunca mais recuperarão.

"Trocar os pés pelas mãos", "andar pé ante pé", "usar o sapato do outro", "dois pés não cabem num só sapato", "cada um sabe onde lhe aperta o sapato". Vieram à cabeça de Verônica todos estes provérbios, os quais, contudo, não fizeram sentido, não lhe ajudaram em nada. Desistiu de levar o filho ao colégio a duas agora intermináveis quadras de distância. Parou no meio-fio, vencida. Pela primeira vez na vida, não sabia que direção tomar.


Daniel Rodrigues

quinta-feira, 18 de abril de 2024

"Gilberto Braga: O Balzac da Globo - Vida e obra do autor que revolucionou as novelas brasileiras", de Artur Xexéo e Maurício Stycer - Ed. Intrínseca (2024)

 




por Márcio Pinheiro

"Ele [Artur Xexéo] era um profissional que eu admirava e respeitava, dez anos mais velho do que eu. Aceitei a proposta do Gilberto [Braga] de continuar com o trabalho iniciado pelo Xexéo porque, entre outros motivos, entendi que seria também uma homenagem a este jornalista que respeito tanto".
Maurício Stycer


É possível gostar de um livro e ao mesmo ficar decepcionado? Meu amigo João Carlos Rodrigues me ensinou que sim ao comentar a desilusão que teve ao concluir a leitura da biografia de João Gilberto feita por Zuza Homem de Mello. Foi a mesma sensação que tive ao concluir a leitura de "Gilberto Braga: O Balzac da Globo - Vida e obra do autor que revolucionou as novelas brasileiras". 

Obra que teve uma trajetória atribulada, com a morte do personagem (Gilberto Braga) e do autor inicial (o jornalista Artur Xexéo), o livro acaba refletindo esses desencontros. Acabou sendo concluído por outro jornalista, Maurício Stycer, e aí surge o primeiro problema: Xexéo, então, em muitas partes, passa a ser tratado como fonte, não mais como autor. Stycer assume a conclusão das entrevistas e se responsabiliza pela redação final.

Outra desilusão foi com relação aos capítulos. São curtos demais e quase todos centrados na obra de Gilberto, com poucas referências ao making of. São ainda quase sempre apresentados num formato semelhante: Gilberto tem a ideia, desenvolve-a, discute com o diretor, começa a gravação, se desespera (com algum ator/atriz, com o Ibope, com a pressão interna da emissora...), promete que aquele será o último trabalho e... volta a escrever uma próxima novela - que servirá de base para o próximo capítulo do livro. 

Pouco se fala dos bastidores. Ficamos sabendo da óbvia admiração de Gilberto pela sua patota: José Lewgoy, Malu Mader, Dennis Carvalho, Antonio Fagundes... e até as pouco lembradas Henriette Morineau e Jacqueline Laurence, mas o livro pouco desenvolve quem Gilberto NÃO gostava. Fala en passant dos desentendimentos com Luiz Fernando Carvalho e com Vera Fischer. E só. Daniel Filho e Boni, tão fortes no início de Gilberto em 1972, contrastam com a ausência de Walter Clark, ainda mais poderoso na época e tão pouco citado. São escondidas também pequenas (quem era o cantor que Gilberto não tinha nenhum disco e se apressou em adquirir quando o convidou para um jantar na sua casa?) e grandes fofocas (a maior delas: o misterioso Diplomata, hoje com mais de 90 anos, que teria tido um papel afetivo importantissimo na vida do novelista?).

O livro tem méritos. Recupera bem a fase de Gilberto pré-Globo, a vida como professor de Francês e, mais ainda, como crítico teatral. Mostra também com detalhes o entorno familiar - mais complicado do que qualquer novela do autor. Apresenta ainda Gilberto como uma pessoa insegura, com obsessão por dinheiro (isso se fala quase no início, quando ele ainda está preocupado com um teste vocacional e confessa que "não enxergava futuro algum como professor, não gratifica ninguém, nem monetária nem intelectualmente"), preocupado com a ascensão social (tema tão presente em seus textos) e até da inveja que ele nutriu de Mário Prata durante um período, pelo fato de ele, Mário, ter livre acesso à sala de Boni e ele, Gilberto, não.

A vida de Gilberto Braga deu num livro bom. Poderia ter sido uma novela ótima.


quinta-feira, 4 de abril de 2024

Sarau de leitura “Chapa Quente” – Macunaína Gastro Bar – Porto Alegere/RS (08/03/2024)

 

Faz já alguns dias, mas segue valendo a pena o registro do sarau literário com os autores gaúchos da editora Caravana, grupo do qual faço parte agora por conta do meu “Chapa Quente”. Foi no agradável Macunaíma Gastro Bar, na Cidade Baixa, que reuniu cerca de 15 escritores do “cast” gaúcho da editora. Teve poesia, ensaio, crônica e, claro, conto, garantida por outros e de minha parte com um trecho lido do meu “Abrindo-se”, história que abre o livro.

A coincidência do sarau com o Dia Internacional da Mulher fez com que, além de várias menções e homenagens, eu tivesse clareza de que trecho ler da minha obra, uma vez que cada um tinha em torno de 3 min com o microfone. O pedaço do conto que li falava exatamente da personagem Nina, uma sofrida jovem de classe alta que, em desavença com os pais, morava sozinha em um apartamento simples para seus padrões financeiros e sob o jugo dos homens da sua vida: o agressivo namorado e, principalmente, o pai opressor. Contudo, como ressaltei no preâmbulo que fiz em minha fala ao público presente, a história só se move por conta da ação interna transformadora a qual a personagem se dispõe.

Eis o trecho:

"Acontece que Nina, ao contrário do que alguns tentavam imputá-la, tinha muita capacidade e inteligência. A ponto de buscar no fundo de seu íntimo forças para sair daquele poço emocional. Tudo que não queria era transformar-se no que sua mãe se transformou. Porém, por outros caminhos, via que era justamente isso que estava acontecendo. E afinal, não era exatamente isso que seu pai queria, que as mulheres se anulassem diante dele? Reflexões que a música de Felipe lhe dava condições de fazer nas horas a fio de ensaio dele e de ostracismo dela. “Como esta melodia consegue ser tão delicada e intensa ao mesmo tempo?”, questionava. Impressionava-a que, ali, as repetições eram salutares, diferentemente do que costumavam lhe dizer ao demonizarem a repetição. Através daqueles acordes encadeados, quase hipnóticos, ficava-lhe claro ser possível evoluir e conjugar leveza e força, tudo em que sempre fizeram Nina desacreditar. 

Tanto que buscou ajuda: adotou um cachorro, parou com as drogas, desfez-se das garrafas de álcool, passou a escancarar todas as manhãs as janelas por muito tempo cerradas e começou a fazer terapia online. Quase sempre as sessões eram embaladas pelo toque daquele mesmo tema tocado repetidamente por Felipe, como uma trilha sonora martelada de um filme cujo roteiro chegava na parte em que a mocinha superava a crise em direção a um desfecho feliz. Nina buscou harmonizar-se com a mãe e, dentro do possível, entender a postura do pai. Ainda não o havia perdoado e nem sabia se um dia conseguiria, mas tentava viver um dia depois do outro. Só não via mais conserto no relacionamento com o namorado, que, desinteressado, pois muito provavelmente já em outra, cada vez menos aparecia, até que sumiu de vez."

Bom conhecer o pessoal da editora, que em parte veio de Belo Horizonte diretamente para o evento, bem como alguns dos colegas escritores. Casa cheia é sempre legal. Esta foi, embora tímida, a primeira aparição pública de “Chapa Quente”, cujo lançamento foi final de dezembro do ano passado. Prenúncio para, aí sim, um lançamento oficial, que pretende-se arranjar em breve. Por ora, no entanto, alguns registros, feitos pela lente atenta de Leocádia Costa, desse momento de letras e encontros. 

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A literária Macunaína Gastro Pub


Casa movimentada


Com o editor Leonardo Costaneto (em pé), Leocádia e outros autores


Lendo trecho de "Chapa Quente" no sarau da Caravana


Com os outros autores gaúchos e o pessoal da editora


Momento da leitura, apresentando-se e justificando 
o porquê do trecho escolhido



texto: Daniel Rodrigues
fotos e vídeo: Leocádia Costa, Daniel Rodrigues e Guy Leonard






terça-feira, 26 de março de 2024

cotidianas #825 - Novas Versões para Antigos Clássicos da Literatura - "Alice na Toca do Coelho"




Alice já estava cansada de ficar sentada no banco sem nada para fazer. Foi quando, de repente, um Coelho Branco de olhos cor-de-rosa passou correndo perto dela. Não havia nada de tão incrível nisso fora o fato do Coelho Branco repetir continuamente para si mesmo: — Ai, rapaz! Ai, rapaz! Vou me atrasar. Alice se alvoroçou mesmo foi quando o Coelho Branco sacou um relógio do bolso de seu colete, checou as horas e saiu apressado. Ela se deu conta de que nunca tinha visto um coelho com um relógio no bolso do colete. Ardendo de curiosidade, correu atrás dele a tempo de vê-lo se emburacar toca adentro no pé de uma cerca. 

No instante seguinte, era Alice quem se entocava ali. Decidiu perseguir o Coelho Branco sem refletir sobre como sairia daquele buraco. 

A toca tinha um trecho reto semelhante a um túnel. Depois, inclinava-se bruscamente para baixo, tão bruscamente que Alice não foi sequer capaz de pensar em frear. Simplesmente despencou em um poço de grande profundidade. 

Alice caía, caía, caía... Será que aquela queda não acabaria nunca? — Então, de repente: plunct! Aterrissou em um amontoado de gravetos e folhas secas. A queda havia chegado ao fim. 

Sem nenhum arranhão, ela se levantou em um instante. Olhou para cima, mas sobre sua cabeça tudo estava escuro. Atrás de Alice havia outra passagem longa, onde ainda se podia ver o Coelho Branco descendo bem depressa. Não dava para perder nem um segundo: lá foi a menina, veloz como o vento ainda a tempo de vê-lo fazer a curva. Alice estava perto dele ao fazer, mas o Coelho Branco já não podia mais ser visto. Sumira na escuridão de um salão comprido, baixo e mal iluminado. 

De repente, de um ponto qualquer na escuridão do fundo do salão, viu surgir o Coelho que avançou lentamente para uma faixa um pouco mais iluminada onde ela podia distingui-lo melhor. Ele estancou a encará-la e Alice, por sua vez, o olhou com curiosidade. 

De trás do Coelho Branco, também daquela treva, surgiram à luz algumas figuras no mínimo excêntricas: um tipo alto com uma cartola extravagante, um homenzinho baixo tão gordo que se assemelhava a um ovo, um par de gêmeos rechonchudos vestidos de forma rigorosamente igual, e um gato que a encarava com um sorriso sinistro na cara. 

O Coelho, girando a corrente do relógio de bolso, e agora parecendo ignorar a presença da menina, depois de um angustiante período de silêncio, finalmente abriu a boca e falou: - Eu não disse que ela ia me seguir? Tá aí ela, gente. Podem descer a porrada.



Cly Reis
livremente inspirado em "Alice no País das Maravilhas",
de Lewis Carrol

quarta-feira, 20 de março de 2024

Música da Cabeça - Programa #362

 

Vocês já sabem, mas não custa repetir: o MDC é a melhor vacina. Com a carteirinha em dia, o programa terá doses consideráveis de boa música com Ministry, Carolina Maria de Jesus, Zé Rodrix, The Troggs, Beth Carvalho e mais. Tem até Cabeça dos Outros, e tudo de graça como injeção na testa. Sem fraude no cartão vacinal, vamos ao ar às 21h na imunizada Rádio Elétrica. Produção, apresentação e certificado autêntico: Daniel Rodrigues



www.radioeletreica.com

sexta-feira, 19 de janeiro de 2024

Livro "Chapa Quente" - Pré-lançamento

 


“Chapa Quente” é uma reunião de cinco contos que têm em comum as tensões interpessoais e a complexidade das relações humanas, independente da época, do local ou da cultura em que ocorram.
Com imensa satisfação, anuncio o meu mais novo livro, "Chapa Quente", que está em fase de pré-lançamento. Quase saindo do forno! É o meu primeiro de contos individual, eu que já estive em seleções e antologias coletivas. A publicação sai pela mineira Caravana Editorial, de Minas Gerais.

A capa, de autoria do designer Caíque Cavalcante sobre uma fotografia do editor da Caravana, Leonardo Costaneto, é o detalhe da parede de um restaurante em Madrid. Curioso é que, vendo a imagem pela primeira vez, meu irmão e coeditor do blog, Cly Reis, achou que se tratava de algum desenho feito por mim, pois o traço parece com o meu. Revendo, percebi: "não é que parece mesmo?!". Coincidências da vida - ou não tão coincidências assim.

Mas para dar uma ideia do conteúdo em si, “Chapa Quente” é uma reunião de cinco contos de minha autoria, que têm em comum as tensões interpessoais e a complexidade das relações humanas, independente da época, do local ou da cultura em que ocorram. Seja nas favelas dos morros cariocas, na Europa iluminista ou nas pradarias inóspitas da América do Norte. E o fogo está ali, queimando sempre.

Ficaram instigados? Então, aqui um trecho do conto que dá título à obra, originalmente de 2014:

“O som insistia em não parar, o que os deixava ansiosos, porém, também apreensivos caso parasse, pois perderiam a pista. Até que Fabão, quieto e observador que era, levantou-se do sofá, chegou perto do sequestrado e encostou o ouvido na altura de seu ventre. Apenas apontou o dedo na direção da barriga dele. Era o celular pequeno e antigo que o tinham obrigado a engolir na hora do sequestro.” 

E aí, instigou? Para adquirir, está em tempo ainda: basta acessar este link


Daniel Rodrigues

quinta-feira, 30 de novembro de 2023

"Bom Dia, Manhã - Poemas", de Grande Othelo - Ed. Topbooks (1993)




"Grande Othelo foi um imenso brasileiro, um dos maiores de todos os tempos: ator, músico, cantor, apresentador de televisão, grande do teatro e do cinema, gênio nascido no ventre mestiço do Brasil. Tão gênio brasileiro quanto Oscar Niemeyer, Carlos Drummond de Andrade e Pelé."
Jorge Amado

"O autor por excelência do Brasil."
José Olinto

Há determinados artistas brasileiros que deixam um vácuo quando morrem. Aqueles que vão inesperadamente como foi com Elis Regina, Chico Science, Raphael Rabello, Cássia Eller e, mais recentemente, com Gal Costa. Eles provocam essa sensação de um buraco que se abre e que nunca mais será preenchido. Tanto quanto aqueles que, comum mais antigamente, despediam-se com menos idade do que seria normal à atual expectativa de vida, casos de Tom Jobim (67), Emílio Santiago (66), Mussum (53) e Tim Maia (55). 

Sebastião Bernardes de Souza Prata, o Grande Othelo é um desses vazios. Aliás, fazem 30 anos deste vazio, tão grande que parece contradizer com a diminuta estatura deste homem de apenas 1m50cm de altura. Mesmo que menos prematuro como os já citados (morreu aos 78 anos), sua vida marcada pela infância dura e pela vida adulta boêmia, não o poupou de roubar-lhe, quiçá, uma década cheia. Mas o que este brasileiro deixou como legado se reflete (ao contrário dos citados acima, músicos por natureza) em mais de um campo artístico. Grande Othelo foi um gênio na arte de atuar, mas deixou marcas indeléveis na música popular e na poesia.

"Bom Dia, Manhã" cristaliza essa magnitude de Grande Othelo, o homem das palavras, sejam as da dramaturgia, as dos sambas ou as dos poemas. Lançado em 1993 e com organização de Luiz Carlos Prestes Filho, o livro reúne um bom compêndio de mais de 100 textos poéticos do artista que eternizou em seu nome o ícone shakesperiano. Não haveria o livro, por óbvio, ser menos do que isso. Com sua inteligência incomum e fluência natural de escrita, Grande Othelo alterna da mais singela confissão existencial ao romantismo sentimental, a malandragem e a alta literatura, os sambas e o parnasianismo, passando pelas homenagens aos amigos e as observâncias da vida e das mazelas do mundo. Tudo numa linguagem de "puras palavras", como definiu o escritor José Olinto, sem cerebralismos e dotados de cadências existenciais.

Em “Nada”, o poeta escreve: “Na saga das tuas solidões/ Vão surgindo outras/ Em outros corações”. A compreensão do amor “desromantizado” de “Homem e Mulher” é também digna de escrita, assim como “Estrada”, que narra o descompasso de um homem velho e uma mulher mais jovem. Os sambas, no entanto, são uma delícia à parte. Como os que coescreveu com Herivelto Martins  “Fala Claudionor” ou o clássico “Bom dia Avenida”, de 1944, feito quando a Prefeitura do Rio de Janeiro resolveu acabar com o Carnaval na referencial Praça Onze, a Sapucaí do início do século XX: “Vão acabar com a Praça Onze/ Não vai haver mais escola de samba/ Não vai/ Chora tamborim/ Chora o morro inteiro”. Mas há ainda o samba-fantasia “Penha Circular”, o samba-crônica “Rio, Zona Oeste”, o samba inacabado “A boemia cantou”, o samba não-cantado por Elizeth Cardoso “Ao som de um violão”.

Representativo da raça negra em uma época de inúmeras dificuldades para o exercício deste ativismo, Grande Othelo mesmo assim posiciona-se por meio de suas palavras. Semelhante ao que ocorrera com outro ícone preto made in Brazil, Pelé, Othelo (que bem pode ser considerado um Pelé dos palcos, pois possivelmente o maior da sua área) bastava existir para representar resistência. Mas faz mais. “Sou no momento que passa/ A expressão mais forte/ De uma raça”, escreveu em “Neste momento: eu!”. Leu, com o olhar de menino sábio, a lenda gaúcha do Negrinho do Pastoreio, que ele mesmo representou no cinema em 1973, dirigido pelo tradicionalista Nico Fagundes:

“O negrinho descerá e subirá cañadas
Em correrias desenfreadas...
Beberá a água das sangas
E sempre sozinho, pois ninguém o vê.
Mas quando voltar há de trazer
A felicidade procurada por você.”

Não é uma delicadeza de apreciação? Estas e muitas mais delicadezas estão em "Bom Dia, Manhã", cuja leitura se dá com o prazer de quem ouve um samba, de quem lê uma crônica, de quem reflexiona a própria condição humana. É difícil imaginar o que Grande Othelo teria feito se tivesse vivido, quem sabe, mais 10 anos – nada alarmante nos tempos de hoje em que senhores da faixa dos 87-88 anos são Tom Zé ou Roberto Menescal, ativos e joviais. Mas é impossível não sentir falta dele vivo, aqui presente. Pensar que aquele Macunaíma, aquele Espírito de Luz, aquele parceiro de Carmen Miranda, aquele Cachaça, aquele farol do povo brasileiro não está mais é reconhecer o vazio que isso provoca. Um vazio grande, como o que este pequeno Othelo carregava no nome.

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Trio de Ouro 


Daniel Rodrigues

quinta-feira, 9 de novembro de 2023

"Contos", de Erico Veríssimo - ed. Globo / coleção Aventura de Ler (1997)






"O Tempo é um rio sem nascentes
a correr incessantemente
para a Eternidade (...)"
trecho do conto "Sonata"



Erico Veríssimo era impressionante! Sua versatilidade, habilidade para transitar entre diversos gêneros com a mesma qualidade, intensidade era algo incrível.
Estava aqui em casa mas sempre deixava para depois, o livro "Contos", edição de 1987, que reúne algumas poucas histórias do autor neste modelo mais curto, mas sucinto, mas ainda assim muito significativas no que diga respeito a seu estilo e possibilidades.
O célebre autor gaúcho passeia do drama familiar ao terror, do fantástico ao policial, com uma naturalidade incomum. Emociona com o conto "As Mãos do Meu Filho", no qual um músico talentoso rende suas homenagens à mãe, esforçada, heroica nos sacrifícios, nas renúncias da vida, mas despreza o pai, problemático, ex-alcoólatra, e que no entanto, é orgulhoso do filho e, sabe que, à sua maneira, teve sua parcela para que ele chegasse àquele momento de consagração.
"O Navio das Sombras", ainda que com todos os conflitos emocionais do personagem principal e seu estado psicológico, é acima de tudo um conto de terror, seja pela ambientação, um porto deserto, um navio fantasma, seja pelas imagens criadas por Erico como a névoa, a escuridão, vultos indefinidos e rostos zumbificados.
"Os Devaneios do General", sobre a nostalgia de um ex-militar da época da Revolução Federalista, dos tempos em que mandava e desmandava numa cidadezinha do interior, embora traga a dura realidade das crueldade das guerras, carrega consigo uma ponta cômica e revela a veia ácida do autor.
A tortura interior de um homem ciumento em relação à sua jovem esposa pauta o envolvente "Esquilos de Outono", drama-suspense, ambientado nos Estados Unidos.
"A Ponte", o mais longo dos contos, desenvolvido com a habilidade do romancista, traz um homem rico realizado materialmente, mas cuja vida revela uma série de vazios, entre eles, uma saudade da cidade Natal e uma espécie de dívida pessoal com o lugarejo.
No mais impressionante dos contos, "Sonata", Erico Veríssimo manipula o tempo como bem entende, misturando tempo, personagens de épocas diferentes, espaços físicos, sensações, e costurando tudo isso, a música. Numa maestria que somente um grande autor pode se permitir e conseguir executar, ele conta a breve história de um músico, sem grandes perspectivas, deslocado de sua época, fora de seu tempo que, deparando-se com um anúncio de jornal do ano em que nascera, por curiosidade, resolve investigar como a pessoa que solicitara um profesor de piano, vinte e oito anos antes, encontraria-se naquele momento. Vai então até o endereço do anúncio e aí começa uma incrível jornada que alterna passado e presente e une esses mesmos espaços de tempo de forma mágica. Imaginação, viagem no tempo, delírio, sonho, pós-morte? Nada é certo, nada é definitivo em "Sonata".
Fazia tempo que não lia Erico e reencontrá-lo nesses contos foi, de certa forma, uma retomada completa. Tem o Erico novelístico, o Erico espiritual, o Erico cru, o Erico viajante, o Erico historiador, enfim... O exercício do conto possibilita que o autor coloque um pouco de suas características de romancista em cada uma dessas historietas e, desta forma, o leitor tem o privilégio de saborear praticamente uma compilação dessas formas literárias que o consagraram, em pequenas doses.
Meu tratamento à base de Érico Veríssimo foi retomado com êxito. Agora, a recomendação é aumentar a dosagem.




Cly Reis


quarta-feira, 1 de novembro de 2023

cotidianas #812 - Pílula Surrealista #55

 

- Cara, você nunca sentiu que precisava extrair mais do mundo, da vida? Uma sensação de que, sei lá, não consegue aproveitar o bastante, que faltam sentidos a nós humanos pra absorver as coisas com mais vigor, mais verdade.

- Como assim?

- Olha isso aqui à nossa volta: dá uma vontade de captar mais o que é bom, o que é vivo, de sentir mais o gosto das coisas, porque parece que o que a gente tem nesse mundo real não dá conta.

- Pra isso serve a arte. "A arte existe porque a vida não basta". Não é assim que o poeta diz?

- Não, não é só de arte que eu tô falando. Isso que eu digo é mais do que arte ou qualquer coisa palpável. É um desejo de vida mesmo, entende? Não é só respirar, é... 

- Explica melhor.

- Humm, sei lá... não sei nem se eu sei dizer, mais é o que eu sinto, sabe? É como se necessitasse sentir com mais inteireza esse milagre da vida. O sol que ilumina as árvores, o azul ou o preto do céu, o vento que bate na pele, a beleza feroz dos relâmpagos, o verde da relva, o colorido das flores... Tudo isso não cabe na compreensão, não acha?

- É, acho que sim.

- Pois é, tudo isso não cabe, não tem como pegar, como conter, como comprimir. Escapa. Chega a me dar vontade de comer!

- Comer o quê?

- O mundo.

- Humm...

- Sim, comer o mundo! Uma garfada, uma mordida na polpa. Como um pão, uma comida. Uma carne.

- Olha, gostei dessa: carne do mundo.

- É, isso mesmo: sentir o gosto da vida como quem saboreia a carne do mundo... Impossível, né?

- É... quem sabe um dia.

- Pois é: quem sabe.


Daniel Rodrigues

quarta-feira, 18 de outubro de 2023

Música da Cabeça - PROGRAMA ESPECIAL Nº 340

 

Amigos punks: escutem esse desabafo daquele que é uma lenda do rock gaúcho: Frank Jorge. Ele é o entrevistado do MDC especial n° 340! Além dele no quadro Uma Palavra, ainda tem música, notícia, letra, aquilo tudo. A essa altura da noite, 21h, o que importa mesmo é ouvir o programa na xilarmônica Rádio Elétrica. Produção e apresentação: Daniel Rodrigues - enquanto sigo detonando um hardcore.


www.radioeletrica.com

terça-feira, 10 de outubro de 2023

cotidianas #809 - Pílula Surrealista #54

 

O poeta, anacrônico, perde-se na fisiologia do mundo digital, transformador de tudo. O papel, a pena, a tinta, a traça. Nada mais. Nunca mais. Na nuvem de palavras - soltas, acotovelando-se, daninhas - o poeta se dispersa em si próprio. Dilui-se entre letras. Até sumir.


Daniel Rodrigues

sexta-feira, 23 de junho de 2023

"A Menina que Morava no Sino", de Celso Gutfreind e ilustrações de Flávio Fargas, ed. Physalis Editora (2020)

 

"A nossa história já foi comprovada para além da imaginação. A menina morava aqui na Terra mesmo. Ela vivia sozinha no Sino. A bem da verdade, havia três sinos lá no alto. Eles tocavam juntos para a gente ouvir melhor. A menina achava que eles não precisavam de ninguém. Ou eles tocavam sozinhos para acompanhar o balanço dela."


Tive a oportunidade de ler o original do livro "A Menina que Morava no Sino" e me lembro do grande impacto que senti. Já nas primeiras páginas queria ser amiga dela e subir no sino que cresci escutando, e que existe mesmo, ali na Igreja (super gótica) conhecida como Santa Therezinha, em frente ao Brique da Redenção. 

Ao ler essa estória você irá se deparar com temas como adoção, diferenças, deficiência auditiva, o cotidiano das cidades e seus personagens, poesia, música e literatura. São 136 páginas para leitores de todas as idades, mas também indicado a leitores do 4º ao 9º ano do Ensino Fundamental, cuja edição cuidadosa é da Physalis (Passo Fundo/RS) e foi lançada em 2020. O meu exemplar foi adquirido na AMA Livros. 

Essa é a primeira novela infanto-juvenil do conhecido escritor e médico gaúcho Celso Gutfreind. Na trajetória de escritor, a poesia ocupa boa parte das publicações de Celso e a surdez é um tema recorrente em sua prática como psicanalista, e por isso faz parte dessa estória, “que não se sabe muito bem de onde vêm”, como a menina mesmo diz.

De forma poética, divertida e cheia de referências as estórias dentro da estória da menina, vão trazendo emoções, dúvidas, e a oportunidade de discutir muitos aspectos ali contidos. Maria Antonieta Cunha, que apresenta o livro, diz que "A menina que morava no sino é um hino à humanidade e a algumas das melhores coisas que ela produz: por exemplo, a arte, em suas tantas manifestações (em especial, o ato de contar histórias) e o amor, nas suas mais diversas formas. Saímos dela com otimismo, com esperança, com vontade de experimentar um olhar mais atento e carinhoso para nosso mundo." 

Premiadíssimo em 2021, "A Menina que Morava no Sino" ganhou os troféus: Açorianos de Literatura Infantojuvenil; Livro do Ano Juvenil AGES - Associação Gaúcha de Escritores e Carlos Urbim - Literatura Infantil, pela Academia Riograndense de Letras, e Prêmio Cidade de Passo Fundo RS. A edição traz as ilustrações do mineiro Flávio Fargas, formado em Belas Artes pela UFMG com bacharelado em Pintura e Desenho, que revela: “Já tive a oportunidade de ilustrar textos magníficos ao longo desta vida de ilustrador. Mas poucos mexeram comigo tanto quanto este. A menina que morava no sino é lindo, leve, divertido, emocionante. Tudo ao mesmo tempo...” 

#ficaadica


Leocádia Costa


quinta-feira, 8 de junho de 2023

"Grande Sertão: Veredas", de João Guimarães Rosa, adaptado para quadrinhos por Guazelli e Rodrigo Rosa - editora Quadrinhos na Cia. (2014)

 




"O diabo
no meio da rua
no meio do redemunho"


Belíssima adaptação para quadrinhos de um dos maiores clássicos da literatura brasileira. O roteirista Guazelli e o artista Rodrigo Rosa tiveram a desafiadora tarefa de transpôr para esta outra linguagem, ainda que também literária, porém muito mais visual, uma obra de estrutura difícil, de texto complexo e longa extensão, e no fim das contas, pesando acertos e erros, prós e contras, pode-se dizer que se saíram muito bem.
O romance gráfico consegue transmitir a atmosfera árida, o clima sufocante do sertão, a intensidade dos confrontos e a verdade do sertanejo, seja ela de ignorância ou de sabedoria.
"Grande Sertão: Veredas", obra original de Guimarães Rosa, um dos maiores gênios da literatura brasileira, narra, na voz de um sertanejo relatando a um visitante curioso, as sagas, aventuras e desventuras de um grupo de jagunços no interior de Minas Gerais, seus conflitos, traições, disputas de poder e batalhas, tudo sob um olhar de sabedoria do homem que aprendeu a conhecer os homens e a conhecer o mundo, e a partir disso formou juízos repletos de filosofia sobre tudo à sua volta.

A sensação do calor e a intensidade dos tiroteios
nas ilustrações impressionantes de Rodrigo Rosa

As ilustrações de Rodrigo Rosa são impressionantes! O leitor quase sente o calor, o sol castigando, a tensão entre os homens, a coragem, o medo, o clima dos tiroteios. O roteiro que peca um pouco nas transições, de situações, de lugar, de tempo, mas não  desvaloriza o grande trabalho de adaptação dessa obra, por um lado fácil de ser colocada em imagens, dada a riqueza narrativa de Guimarães Rosa, mas, por outro, difícil pelo formato, pelo texto corrido, pela linguagem sertaneja, etc.
Enfim, mais méritos que críticas ao trabalho dos autores da HQ. Parabéns a eles. Mais uma obra fundamental da nossa literatura que ganha traço e cores artísticas com muita qualidade. 

A beleza e a força da cena de Riobaldo invocando o demônio.





Cly Reis


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"Grande Sertão: Veredas"
romance gráfico adaptado a partir da obra "Grande Sertão: Veredas", de João Guimarães Rosa
roteiro: Guazelli
arte: Rodrigo Rosa
editora: Quadrinhos da Cia.