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sexta-feira, 20 de setembro de 2024

"Verissimo", de Angelo Defanti (2023)


por Leocádia Costa

“Tudo em Verissimo – a emoção, o lirismo, o drama e até a erudição de quem leu, viveu, ouviu e assistiu do bom e do melhor – é contido e temperado pela autoironia e por um humor generoso e irresistível”. 
Zuenir Ventura – "Conversa sobre o tempo"

“A vida privada do brasileiro, contudo, é o seu forte – ou as comédias da vida privada, para dizer melhor. Os rituais do namoro e do casamento, o sexo, as infidelidades, o choque de gerações, tudo isso é um prato cheio para o escritor. Quanto ao humor de Verissimo, ele é de um tipo muito especial. Por mais incisivas que sejam, suas piadas nunca destilam raiva. Ele não procura o fígado do leitor nem professa um humor amargo, desiludido com a humanidade. Verissimo afirma que, à medida que envelhece, talvez esteja caminhando para um ceticismo terminal, daqueles que não dão desconto. Mas ainda não chegou lá.”
Revista Veja, em reportagem de capa sobre Luis Fernando Verissimo

“Superlativo já no nome, Verissimo possui dois instrumentos de audição, dois de visão, um, bifurcado, de olfato, um gustativo (exemplarmente cultivado) mas, homem cheio de dedos, é bom mesmo no tato. Humorismo nunca ninguém lhe ensinou. Ele se riu por si mesmo.” 
Millôr Fernandes - "Millôr Definitivo - A Bíblia do Caos"


Assistir ao filme do multiartista Luis Fernando Verissimo é vivenciar a passagem do tempo e a chegada da maturidade de um homem perto de completar os seus 80 anos de vida. 

O filme começa de uma forma muito bonita, revelando o dia a dia, a rotina desse escritor, a sua escuta permanente de todos os sons ao redor, a sua relação íntima com a família (com a esposa Lúcia, com os filhos Pedro, Mariana e Fernanda, com os netos Lucinda e Davi), a sua predileção apaixonada pelo time do coração, Internacional. Aliás, essa é uma das paixões, além da literatura, que temos em comum, pois também me tornei igualmente torcedora, de forma irreversível, após sucessivas experiências traumáticas: vestir uma camiseta pinicante do Grêmio quando criança, uma apreensiva ida ao estádio clássico da Medianeira e passar 90 minutos na iminência de receber um saco de urina na cabeça, e por fim, namorar um gremista... disso tudo  se salva somente a entrada do almoço do restaurante Mosqueteiro, que era “mara” e onde fui com meus pais algumas vezes ainda na primeira infância. 

Voltando ao filme: o documentário mostra uma série de relações que foram se estabelecendo no decorrer do tempo entre a sua produção literária, a sua produção jornalística e a sua forma de estar no mundo. É um filme que encanta a gente! Deixa-nos ver de forma tão íntima a rotina dele e nos permite encontrar um escritor com o corpo idoso, mas com uma mente superligada em tudo que está acontecendo. Verissimo tem uma incrível curiosidade, um senso de humor permanente, né? E de uma forma muito imediata, embarcarmos naquilo que a gente poderia dizer que é o imaginário dele, sabe? 

Momento de intimidade com os netos
No filme me chamou atenção a relação dele com a neta Lucinda, a mais velha entre os netos e muito parecida com ele. Os dois se entendem no olhar, se entendem nas pausas e se entendem nessa “maluquice do bem” que é vivenciar mundos paralelos diversos, enquanto inventam personagens, estórias e situações, só para se divertir, só por ser prazeroso, só por haver essa troca entre os dois. Avô e neta, escrevendo os dias – é tocante. 

O filme me fez lembrar também da primeira vez que eu entrei na casa dos Verissimo. Porque essa casa tem uma identidade muito forte: é uma casa que estrutura parte da história de uma família, desde a existência dos pais do cronista, o renomado Érico Verissimo e a Dona Mafalda. Interessante perceber que pai e filho souberam costurar o tempo em suas existências. Foi ali que o valioso núcleo familiar vivenciou e construiu suas vidas em Porto Alegre. Ver Luis Fernando ali, nesse ambiente tão fértil, e ao mesmo tempo, tão sólido, onde tudo continua existindo é, sim, parte dessa história. 

Lembrei-me da primeira e única vez que eu entrei, lá em 1997, quando eu fui entrevistá-lo para o meu Trabalho de Conclusão de Curso da PUCRS, em Comunicação Social – Publicidade intitulado: “Comédias da Vida Privada – uma produção ficcional na televisão brasileira”. Quem conseguiu o contato foi a minha queridona Gagá (Maria da Graça Dhuá Celente), que era amiga da família, coordenava o Departamento de Publicidade da FAMECOS/PUCRS, onde eu, estudante quase me formando, era sua monitora e na mesma instituição que eu havia sido sua aluna. Ela, com toda a gentileza, colocou-me em contato com a agente literária e com a esposa do Verissimo. Eles se conheciam acredito que dos tempos da publicidade em que Verissimo foi redator no Rio de Janeiro, mesma cidade em que conheceu sua esposa, Lúcia. Uma ponte muito amorosa se ergueu naquele momento, reverberando posteriormente na minha entrada em outros mundos literários. Gagá me ingressou na Publicidade e, de certa forma, me fixou na Literatura.

Em 09 de junho de 1997, foi apresentado o TCC para uma banca potente, com a cineasta Flávia Seligman, a Gagá e o professor Bob Ramos, além da minha orientadora, Ana Carolina Escosteguy. Falar nessa produção do “Comédias da Vida Privada”, que era muito contemporânea, ainda fresca e presente na televisão e que me deixava totalmente arrebatada, foi algo ousado, mas somente hoje, depois de 27 anos, é que percebo isso. Naquela ocasião, tinha o dever de concluir, em meio a tantos compromissos, uma faculdade. Percebi, muito jovem, esse trâmite entre a Literatura e o Audiovisual, e as entrevistas que se sucederam com Jorge Furtado e Carlos Gerbase me deram essa certeza de que estava com uma percepção fina da realidade.

Como leitora do Verissimo, eu vi verter das páginas que ele tinha escrito, diálogos para televisão com atores e atrizes de uma geração supertalentosa e muito bem dirigidos. Ao entrar naquela casa fui bem recebida pela Dona Lúcia e por ele, que chegou silenciosamente e timidamente sentou-se numa cadeira thonart em frente à minha. Ficamos os dois em cadeiras por alguns minutos ali. Um pouco tímida, fui fazendo perguntas para ele e ele me respondendo, algumas de forma mais breve e outras com o maior profundidade, com a maior atenção.

 O som da rua e o som do relógio estavam presentes naquele meu encontro com Verissimo, como se um estivesse conectado ao mundo externo e o outro marcasse o tempo interno. E no filme esse quase personagem constante se mostra pelo som, o que me trouxe a mesma sensação de quando entrei na casa.

O reservado Verissimo em seus momentos de retiro

Eu estava na frente de uma pessoa que eu admirava muito e simpática a mim, mas totalmente reservada. Ele escutava muito, e isso para mim, que sou super tagarela, foi me dando um senso maior de responsabilidade do que dizer sem ser óbvia ou burra. Mas o fato é que a entrevista foi muito boa, me rendeu algumas informações direto do autor daquela produção toda, que eu rapidamente adicionei no meu trabalho. Um tempo depois enviei uma cópia do TCC para ele ter/ler e fiquei muito surpresa quando soube que ele havia adicionado ao site que ele mantinha com indicações de obras, entre outros itens e indicações de trabalhos sobre a sua produção. Então, acabei concluindo que ele leu e gostou! 

No filme aparece uma cena poética desse respeito que ele tem com as pessoas que se dirigem a ele, como leitoras ou como referência, na espera de uma leitura daquilo que escrevem. O retorno que ele proporciona para quem abre esse diálogo sincero com ele é muito bonito! Um misto de gentileza com escuta, algo cada vez mais raro na sociedade em que se vive. Enquanto eu assistia ao filme tudo isso emergiu, revelando, inclusive, algumas pessoas importantes da minha biografia, além do próprio Verissimo e da Gagá. Relembrei que havia conhecido a Lúcia Riff (agente literária dele e de boa parte dos escritores brasileiros) não num trabalho da Casa de Cultura Mario Quintana, através do Sergio Napp e, sim, nesse momento aí, do TCC, sendo que a Lúcia até hoje é uma pessoa importantíssima em minha vida. Ela foi quem sempre me apoiou e me deu aval para que eu pudesse desenvolver vários trabalhos com a obra do Mario Quintana e foi muito bonito rever a nossa história a partir deste filme. Além dela, outras personagens importantes aqui da nossa cidade aparecem e se relacionam com a momentos da vida de Verissimo e da minha: o inventivo Cláudio Levitan, o poeta Mario Pirata e a pesquisadora Maria da Glória Bordini, pessoas que fazem parte da história de Porto Alegre. 

Foi muito emocionante para mim assistir Verissimo completar 80 anos através deste filme, pela TV após ter sido impedida de ver no cinema, em maio deste ano, em função das enchentes que atingiram não somente a programação da estreia mas a sala de cinema onde aconteceria a exibição. Verissimo sempre esteve muito presente na minha casa, era lido por meus pais, muito antes de eu ser sua leitora. Nestes mais de 40 anos que eu convivo com seus pensamentos e senso de humor muito lúcidos e geniais, volto a dizer que os artistas não deveriam se afastar dos seus ofícios. Sendo eternos mesmo quando se tornam um dia invisíveis à nossa percepção, a obra, o olhar e o recorte do tempo permanecerão imortais para quem os leu profundamente. O tempo é uma realidade com a qual precisamos saber lidar. Afinal, somos nós quem passamos por ele e, Verissimo faz isso de maneira suave, constante e inspiradora. 

Obrigada, Verissimo, por tanto! E agradeço também por esse encontro às sensíveis e generosas mulheres Gagá e as “Lúcias” Verissimo e Riff.

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tralier oficial de "Verissimo"


"Verissimo"
Direção: Angelo Defanti
Gênero: Documentário
Duração: 90 min.
Ano: 2023
País: Brasil
Onde encontrar: NET/Claro - Now


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segunda-feira, 16 de setembro de 2024

“Chibo”, de Gabriela Poester e Henrique Lahude (2023)

 

Dois curtas-metragens produzidos no Rio Grande do Sul em especial saltaram aos olhos na última edição do Festival de Gramado. O primeiro deles foi, obviamente, a grande revelação “Pastrana”. Vencedor do prêmio de Melhor Curta-Metragem na competição nacional, feito que não ocorria há anos no cinema gaúcho, o filme dos jovens diretores Melissa Brogni e Gabriel Motta ganhou, com total merecimento, ainda os Kikitos de Melhor Fotografia e Montagem, além de arrebatar a crítica na Mostra Gaúcha – Prêmio Assembleia Legislativa, levando o Prêmio ACCIRS, e mais o de Melhor Produção Executiva.

Porém, outro filme dessa recente leva gaúcha um pouco menos laureado, mas nem por isso, menor em relevância e qualidade, é, “Chibo”. Eleito melhor curta-metragem gaúcho no Prêmio Assembleia Legislativa, o filme dos também jovens realizadores Gabriela Poester e Henrique Lahude tem a potência inquietante do filmes de arte. Se “Pastrana” conquista o público em poucos minutos por sua montagem ágil, imagens impactantes e narrativa tocante ao prestar, num documentário muito pessoal, uma homenagem ao skatista de downhill Allysson Pastrana, falecido trágica e precocemente em 2018 durante uma competição, “Chibo”, por sua vez, vale-se de outras ferramentas para se erguer enquanto obra. O que faz com bastante originalidade.

O filme traz a história de uma família, que vive na fronteira entre Brasil e Argentina, às margens do rio Uruguai, e que trabalha com chibo - travessia clandestina de mercadorias para subsistência, comércio e pessoas. Dani, a filha mais velha, está prestes a concluir o ensino médio e enfrenta as decisões dessa fase da vida. Num realismo cru, fotografia que oscila entre o sujo e o poético e uma proposta de “dificultação” do olhar, “Chibo” capta tanto a questão identitária e socioeconômica do gaúcho quanto a feminina e a da juventude em busca de perspectivas. 

Em perspectiva de uma onda de produções gaúchas que vêm questionando valores arraigados (e, no mais das vezes, desgastados) do povo Rio Grande do Sul, como os longas “Casa Vazia” (Giovani Borba, 2021), “Rifle” (Davi Pretto, 2017) e os recentes “Além de Nós” e “Sobreviventes do Pampa”, ambos de Rogério Rodrigues, “Chibo” traz à tona uma outra perspectiva para essa saudável discussão. Num estado que recentemente viveu a maior catástrofe natural de sua história e tenta, a murros em ponta de faca, reconstruir-se, por que não, então, diante do presente sentimento de crise, voltar-se para dentro e repensar a si próprio? Afinal, o que é esse ser gaúcho? Filmes como “Chibo” trazem à tona um dos pontos essenciais dessa discussão, que é a questão do trabalho e sua precarização. Enquanto o agro monocultural e tecnológico (leia-se soja e pecuária) avança, para onde vão pessoas como Dani e seus familiares, à margem deste processo? Não à toa, simbólica e praticamente eles margeiam um rio que divide dois países vizinhos permanentemente em dificuldade econômica.

Cena de "Chibo": é preciso repensar o gaúcho

Além disso, “Chibo” também guarda um olhar muito apurado para a questão feminina. Que perspectiva de vida uma adolescente tem naquele fim de mundo pobre e sujeito a piorar? Causa uma desacomodarão ao espectador ver os momentos da protagonista em casa ou na lida com os bichos na pequena propriedade, ao passo que também é encantador vê-la nas interações com a irmãzinha imersas na paisagem bonita daquele local longe do mundo. 

Seja a emoção genuína que “Pastrana” causa no espectador, seja o desconforto propiciado por “Chibo”, o Rio Grande do Sul ganhou dois excelentes representantes do novo cinema este ano. E como curtas-metragens são a porta para realizações mais audaciosas futuras, que venham os desafios. Gabriela e Lahude, por sinal, já estão em desenvolvimento do longa-metragem "Caça". A se ver pelas mostras iniciais, o caminho foi muito bem aberto.


"Chibo"
Direção: Gabriela Poester e Henrique Lahude 
Gênero: Drama
Duração: 12 min.
Ano: 2023
País: Brasil

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Daniel Rodrigues

quinta-feira, 29 de agosto de 2024

Debate "As Canções", de Eduardo Coutinho - Ciclo de Cinema Documentário - Clube de Cinema de Porto Alegre - Sala Redenção da UFRGS (14/08/24)


Com a realização ainda em curso do 52º Festival de Cinema de Gramado, onde estive dias antes de descer a Serra de volta para Porto Alegre, participei de outra atividade envolvendo a crítica de cinema, esta na Sala Redenção, na Reitoria da UFRGS. Foi um debate sobre o belo documentário “As Canções”, de 2011, do mestre Eduardo Coutinho, um de seus últimos filmes. A ocasião foi em virtude de um afetuoso convite do colega de Accirs Paulo Casa Nova, presidente do Clube de Cinema de Porto Alegre, o mais antigo clube do tipo no Brasil, fundado em 1948 pelo célebre cinéfilo gaúcho P. F. Gastal e que teve como membros em sua longa história nomes como Mario Quintana, Erico Veríssimo, Ítala Nandi, Carlos Reverbel, Carlos Scliar, Vasco Prado, Fernando Corona, entre outros. O mote: uma homenagem a Coutinho, a quem perdemos tragicamente há 10 anos vitimado pelo próprio filho. Ou seja: um convite irrecusável.

Com mediação da também colega de associação de críticos Kelly Demo Christ, Diretora de Comunicação do CCPA, pude, além de rever esta preciosa obra de Coutinho, debatê-la com o público presente, bastante interessado e, assim como eu, impressionado com a riqueza poética e artística do filme. O enredo é simples: 18 pessoas comuns selecionadas aleatoriamente através de anúncios em jornais relatam de frente para a câmera, num cenário com apenas uma cadeira para sentarem e cortinas escuras atrás, casos particulares relacionados a determinada música que lhes marcara a vida. Simples, contudo, é modo de dizer, pois é justamente dessa aparente simplicidade que Coutinho, hábil entrevistador e perscrutador da alma humana, extrai histórias quando não marcantes, ainda mais do que isso: impactantes e emocionantes.

Entre os aspectos que pude dividir com os presentes, um deles foi a visão de mundo de Coutinho, um marxista convicto que pautou sua obra - principalmente a documental, a qual passou a se dedicar exclusivamente partir dos anos 70 e pela qual ficou identificado - por um humanismo atravessado pela perspectiva da dialética como motor para o entendimento das relações de classe e, por isso, humanas. Esta característica, que surgiu com total potência em sua obra-prima, “Cabra Marcado para Morrer”, de 1983, ainda sob a égide da Ditadura Militar, se materializou em várias de suas realizações posteriores, principalmente a partir dos anos 90, quando se consolida de vez no documentário. Filmes como “Santo Forte”, “Moscou”, “Edifício Master” e “O Fim e o Princípio” carregam invariavelmente esta forma dual de enxergar o ser humano em sociedade, desvelando com uma sensibilidade ímpar sentimentos muito profundos por meio de uma investigação quase antropológica.

Em “As Canções”, valendo-se da máxima de que somente uma música é capaz de ter potência suficiente para guardar na memória sentimentos sublimes, este aprofundamento emocional se dá em vários momentos, seja nos tocantes depoimentos, seja nas interpretações das músicas (sim, cada pessoa canta pelo menos um pedaço da canção, mesmo não sendo cantores profissionais), seja no sensível trabalho de edição. A forma jornalística como o cineasta conduz as abordagens ganha, na montagem, traços “ficcionais”, que vão trazendo correlações, espelhamentos, divisões, coincidências.

trailer de "As Canções", de Eduardo Coutinho

O sentimento de abandono marital da platônica Sonia é o mesmo da inglesa Isabell e da sofrida Lídia, mas não que suas aparições se deem necessariamente numa sequência. Igual, viuvez, como nos relatos de Gilmar e de Ózio. Isso quando não se suscitam correlações ainda mais sutis: não seria tão fatal quanto pensar que, da forma como o militar João Barbosa confessa ter tratado a esposa ou a conturbação do relacionamento de Sílvia (mulher de olhar triste que encerra o filme noutra tocante fala) uma forma de morte também?

Diversos elementos que a obra de Coutinho nos leva a refletir, como o que pudemos fazer por algumas horas na sessão do Clube de Cinema. Um privilégio e um prazer.

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"As Canções"
Direção: Eduardo Coutinho
Gênero: Documentário
Duração: 90 min.
Ano: 2014
País: Brasil
Onde encontrar: Netflix
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Daniel Rodrigues


sábado, 24 de agosto de 2024

“Movimentos Migratórios”, de Rogério Cathalá (2022)


Ode ao não-Kikito

A participação de um filme em um festival não significa necessariamente ser esse seu apogeu. Afora o feito de figurar entre os selecionados, o que muitas vezes já e quase uma premiação, principalmente a realizadores estreantes e ainda em processo inicial de carreira, não quer dizer que o festival irá enxergar a obra na hora de julgar. Pode-se dizer que algo próximo disso ocorreu na Mostra de Curtas-Metragens Brasileiros do 52º Festival de Cinema de Gramado, encerrado no último dia 17. Dos 12 títulos concorrentes, 11 deles levaram para casa algum tipo de premiação, menos um: o baiano “Movimentos Migratórios”, de Rogério Cathalá. Justamente, o que talvez seja o melhor de toda a seleção.

O fato de “Movimentos...” ter saído de mãos vazias de Gramado não quer dizer, portanto, que não guarde qualidades. Muitas. Num preto e branco limpo, quase esmaecido pelo sol calcinante de Salvador, o curta traz a história de Pedro, um imigrante sul-americano que se esforça para se adaptar ao novo país. Numa manhã, antes de sair de casa, um andorinha cai na sua sacada, e ele, bom coração, divide-se entre a rotina de busca por emprego e a tentativa de salvar o pássaro, enfrentando obstáculos que refletem a sua própria condição.

A história é contada a partir do ponto de vista de Pedro, o qual se reflete simbolicamente na visão da ave presa à caixa de sapatos onde achou para acomodá-la. A prisão da diáspora social, a prisão de quem perde a identidade, de quem está machucado e não pode usar as próprias asas. Artista, além da caixa, Pedro também levava debaixo do braço um inseparável violão, cujos acordes, quando tocados por ele na rua em troca de algumas moedas, perfaz a única trilha sonora do filme forçosamente incidental. Um artista e um pássaro sem ninho (um artista-pássaro sem ninho).

O imigrante Pedro vivido por Arturo Campos Begazo,
falecido antes do filme estrear

A concepção fotográfica (Rafael MacCulloch) e artística (Eva Freire) concorda com a abordagem crítica desta pequena obra, visto que, ao mostrar a geralmente vibrante capital baiana seca e sem cores, corrobora com uma visão antropológica também pouco convencional quando se fala no povo nordestino: a de uma gente receptiva e calorosa. Na sua caminhada, Pedro é tratado como uma pessoa menor e mal quista pela sociedade brasileira preconceituosa e xenofóbica. Não há cor no sol de Salvador.

Capaz de tornar possível ainda mais simbologias em um filme tão breve, o movimento de migração ao qual o título alude ganha ainda dois contornos possíveis e que se complementam. O primeiro deles é o de transformação pessoal, uma vez que, feliz em sua empreitada, o protagonista consegue um paradeiro seguro ao amigo alado, o que é sensivelmente transmitido na inversão (única) do ponto de vista dele para o do pássaro, que agora o olha com gratidão de dentro da caixa-abrigo. Já o segundo senso que “Movimentos...” traz só se descortina nos créditos finais. É quando se descobre que o ator principal, Arturo Campos Begazo, havia morrido, e que o filme lhe é dedicado. Tocante. É como se Pedro houvesse se materializado para, em seguida, ajeitar as asas e alçar o voo derradeiro. Virar pássaro.

A despeito dos bem premiados "Pastrana", "Fenda" e "Ponto e Vírgula", que conquistaram mais de um  Kikito,“Movimentos...”, curiosamente, não levou nenhum, Nem considerando a política distributiva que festivais como Gramado adota ao contemplar o máximo possível que concorre. Mas tudo isso não faz diferença. A sensível produção de Cathalá (que está em desenvolvimento de seu primeiro longa, “Sombra no Espelho”) se credencia tranquilamente a outros festivais  em algum desses aspectos fílmicos aos quais tão bem responde, a começar pela direção. Contudo, prêmio não é o que determina a qualidade de um filme, definitivamente, a se recordar na história do cinema de tantos outros diversos casos, como ano após ano se vê em premiações mundiais como o Oscar. Um salve aos filmes sem prêmio!


Daniel Rodrigues


segunda-feira, 19 de agosto de 2024

52º Festival de Cinema de Gramado - Bastidores e Premiados

 

Assisti de casa a cerimônia de premiação do 52º Festival deCinema de Gramado, o qual pude, ao menos por alguns dias, participar presencialmente de novo ao lado de Leocádia, assim como havíamos feito pela primeira vez em 2022. E desta, além do prazer de estar no maior e mais longevo festival de cinema do Brasil e de encontrar amigos e colegas, teve um sabor especial: foi o meu primeiro à frente da Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (Accirs), entidade a qual assumi a presidência há cerca de 2 meses. Isso fez com que, presentemente, pudesse integrar, também ineditamente, o júri do Prêmio Accirs aos curtas-metragens gaúchos, o chamado “Gauchão”, na Mostra Assembleia Legislativa ocorrida no primeiro final de semana do evento.

Juntamente com meus colegas de associação, Adriana Androvandi, André Bozzetti, Carol Zatt, Cristiano Aquino, Mônica Kanitz e Paulo Casa Nova, deliberamos este prêmio da crítica ao agora, uma semana depois, multipremiado “Pastrana”, de Melissa Brogni e Gabriel Motta, tendo em vista que o filme levou também Kikitos na Mostra de Curtas-Metragens Nacionais, incluindo o principal, o de Melhor Filme. O quase solitário destaque que demos a “Pastrana” na mostra gaúcha (recebeu apenas mais o singelo troféu de Melhor Produção Executiva), quando subi ao palco para entregar-lhes o certificado e nosso livro, foi, de certa forma, chancelado na mostra nacional, que, além do grande prêmio, conferiu ainda o reconhecimento por Fotografia e Montagem a esta homenagem para Allysson Pastrana, skatista de downhill, que faleceu em 2018 durante uma competição. 

vídeo da cerimônia de entrega da Mostra de Curtas Gaúchos - Prêmio Accirs


Mas existe ainda mais um fator de especialidade a esta nova participação minha em Gramado. Havia composto o júri da crítica na 49º edição, em 2021, alto da pandemia da Covid-19, o que obrigou a que todo o festival fosse virtual, inclusive a contribuição do grupo do qual estive. Desta feita, no entanto, outra felicidade me aproximou diretamente dos filmes, que foi integrar a comissão de seleção dos curtas-metragens nacionais, empreitada que encarei entre junho e julho ao lado de três competentes mulheres: a atriz e diretora Fernanda Rocha, do Rio de Janeiro; a professora da UFMS Daniele Siqueira, do Mato Grosso, e a cineasta, professora e minha colega de Accirs Daniela Strack.

Cartaz do excelente "Pastrana",
conquistas nas mostras
gaúcha e nacional
Da difícil seleção dos mais de 300 filmes que assistimos e discutimos, dentre os quais muita coisa de alta qualidade, restaram os 12 títulos concorrentes, seleção esta que, aliás, foi mais de uma vez elogiada no palco durante a cerimônia de premiação, o que me deixa bastante orgulhoso. E mais ainda por ver o gaúcho “Pastrana”, um de nossos escolhidos para esta seleção, sair vencedor como há 9 anos não ocorria – principalmente em um ano em que o Rio Grande do Sul foi tão afetado pelas enchentes ocorridas em maio. Somando-se à escolha do público pelo ótimo e tocante “Ana Cecília”, a outra produção gaúcha da mostra de curtas nacionais pareando com filmes do Centro-Oeste, Nordeste, Norte e Sul do país, pode-se considerar uma vitória do cinema gaúcho e do Rio Grande do Sul.

Ainda sobre os pagos daqui, do Prêmio Sedac/Iecine de Longas-Metragens Gaúchos – que celebrou a produção indígena “A Transformação de Canuto”, de Ariel Kuaray Ortega e Ernesto de Carvalho, com o prêmio de Melhor Filme –, não assisti a nenhum deles por não estar mais em Gramado quando de suas exibições, o que desejo fazer em breve assim que estes começarem a rodar nas salas de Porto Alegre. Já em relação aos documentários, que foram exibidos apenas no Canal Brasil e não no Palácio dos Festivais, dois deles perdi, mas vi o vencedor, “Clarice Niskier: Teatro dos pés à Cabeça”, de Renata Paschoal, embora um doc de estrutura convencional, pareceu-me merecedor num primeiro momento.

Por fim, os longas brasileiros. Foi-me possível conferir apenas dois concorrentes quando em Gramado: “O Clube das Mulheres de Negócios”, de Ana Muylaert, que levou somente Prêmio Especial do Júri pelo conjunto do elenco, mas que, a meu ver, se credenciava a, quem sabe, Trilha Sonora ou Atriz (Cristina Pereira); e “Estômago 2: O Poderoso Chef”, de Marcos Jorge, uma coprodução Brasil-Itália totalmente equivocada capaz de deturpar e diminuir o excelente filme original, de 2007, um cult do cinema nacional. Roteiro confuso, inconsistente e banal, que compromete todo o filme, desde seu ritmo narrativo até as atuações, a ponto de apagar aquele que deveria ser o personagem principal, o chef de cozinha agora presidiário Raimundo Nonato, vivido pelo ator João Miguel.

Cena de "Oeste Outra Vez", grande vencedor do ano
Para grande surpresa minha e de muita gente da crítica, “Estômago 2” foi o maior premiado da edição, com 5 Kikitos, dentre os quais – pasmem! – o de Melhor Roteiro. Sinceramente, equivocada a escolha, visto que injustificável para uma história que não se concatena. Até sondei a possibilidade de se estar privilegiando um filme com potencial de bilheteria (deve estrear nos cinemas em 29 de agosto), mas a hipótese se esvaiu rapidamente, tendo em vista que um júri deve valorizar, em respeito ao espectador e ao cinema, um mínimo de qualidade – o que o roteiro de “Estômago 2” deixa muito a desejar. Ainda mais estranho foi, mesmo com uma atuação que não lhe favorece, visto que a história ofusca o próprio protagonista, é Miguel ter dividido o prêmio de Melhor Ator junto com Nicola Siri! O filme ainda, para completar, abocanhou Trilha Sonora, que nada mais é do que a emulação da, esta sim, ótima trilha do primeiro filme. Tudo muito estranho.

Os outros longas não tive, assim como os gaúchos dessa metragem, a oportunidade de assistir, mas ao que parece, pela reação geral, a redenção dos erros de avaliação foram os prêmios da crítica, para “Cidade; Campo”, de Juliana Rojas, e a escolha do grande filme do ano de Gramado: o goiano "Oeste Outra Vez", de Erico Rassi, que realmente se destaca diante dos outros nas poucas cenas que vi. O faroeste à brasileira, que traz uma narrativa centrada em um universo masculino rural, conquistou também os prêmios para Melhor Fotografia e Melhor Ator Coadjuvante, para Rodger Rogério.

Enfim, uma premiação com altos e baixos (como são na maioria), mas que, independentemente disso, não tira de mim a alegria de ter participado de forma tão mais consistente do Festival de Gramado.

A clássica foto final com os premiados

Confira, então, os premiados da edição de 2024:


LONGAS-METRAGENS BRASILEIROS

Melhor filme: ‘Oeste Outra Vez”, de Erico Rassi

Melhor direção: Eliane Caffé, por “Filhos do Mangue”

Melhor ator: João Miguel e Nicola Siri, por “Estômago 2: O Poderoso Chef”

Melhor atriz: Fernanda Vianna, por “Cidade; Campo”

Melhor roteiro: Bernardo Rennó, Lusa Silvestre e Marcos Jorge, por “Estômago 2: O Poderoso Chef”

Melhor fotografia: André Carvalheira, por “Oeste Outra Vez”

Melhor montagem: Karen Akerman, por “Barba Ensopada de Sangue”

Melhor ator coadjuvante: Rodger Rogério, por “Oeste Outra Vez”

Melhor atriz coadjuvante: Genilda Maria, por “Filhos do Mangue”

Melhor direção de arte: Fabíola Bonofiglio e Massimo Santomarco, por “Estômago 2: O Poderoso Chef”

Melhor trilha musical: Giovanni Venosta, por “Estômago 2: O Poderoso Chef”

Melhor desenho de som: Beto Ferraz, por “Pasárgada”

Prêmio especial do júri: “O Clube das Mulheres de Negócios”, de Anna Muylaert

Júri popular: “Estômago 2: O Poderoso Chef”, de Marcos Jorge

Júri da Crítica: “Cidade; Campo”, de Juliana Rojas


CURTAS-METRAGENS BRASILEIROS

Melhor filme: “Pastrana”, de Melissa Brogni e Gabriel Motta

Melhor direção: Lucas Abrahão, por “Maputo”

Melhor roteiro: Adriel Nizer, por “A Casa Amarela”

Melhor ator: Wilson Rabelo, por “Ponto e Vírgula”

Melhor atriz: Edvana Carvalho, por “Fenda”

Melhor trilha musical: Liniker, por “Ponto e Vírgula”

Melhor fotografia: Livia Pasqual, por “Pastrana”

Melhor montagem: Bruno Carboni, por “Pastrana”

Melhor direção de arte: Coh Amaral , por “Maputo”

Melhor desenho de som: Felippe Mussel, por “A Menina e o Pote”

Prêmio especial do júri: “Ponto e Vírgula”, de Thiago Kistenmacher

Júri popular: “Ana Cecília”, de Julia Regis

Prêmio Canal Brasil de Curtas: “Maputo”, de Lucas Abrahão

Menção honrosa

“Ressaca”, de Pedro Estrada

“Via Sacra”, de João Campos

“Navio”, de Alice Carvalho, Larinha R. Dantas e Vitória Real

 "Maputo”, de Lucas Abrahão

 Júri da crítica: “Fenda”, de Lis Paim 


LONGAS-METRAGENS DOCUMENTAIS

"Clarice Niskier: Teatro dos pés à Cabeça”, de Renata Paschoal

 

 LONGAS-METRAGENS GAÚCHOS 

Melhor filme: "A Transformação de Canuto", de Ariel Kuaray Ortega e Ernseto de Carvalho

Melhor Direção: Ariel Kuaray Ortega e Ernseto de Carvalho, por "A Transformação de Canuto"

Melhor Ator: Fabrício Benitez, por "A Transformação de Canuto"

Melhor Atriz: Cibele Tedesco, por "Até que a Música Pare"

Melhor Roteiro: Thais Fernandes, Rafael Corrêa e Ma Villa Real, por "Memórias de um Esclerosado"

Melhor Fotografia: Camila Freitas, por "A Transformação de Canuto"

Melhor Direção de Arte: Adriana do Nascimento Borba, por "Até que a Música Pare"

Melhor Montagem: Jonatas Rubert e Thais Fernandes, por "Memórias de um Esclerosado"

Melhor Desenho de Som: Kiko Ferraz, por "Memórias de um Esclerosado"

Melhor Trilha Musical: André Paz, por "Memórias de um Esclerosado"

Júri Popular: "Infinimundo", de Bruno Martins e Diego Müller 

  

CURTAS-METRAGENS GAÚCHOS - PRÊMIO ASSEMBLEIA LEGISLATIVA DE CINEMA

Melhor filme; "Chibo", de Gabriela Poester e Henrique Lahude

Melhor direção: Rodrigo Herzog, por "Está Tudo Bem"

Melhor atriz: Jéssica Teixeira, por "Noz Pecã"

Melhor ator: Victor Di Marco, por "Zagêro"

Melhor roteiro: Victória Kaminski e Rubens Fabrício Anzolin, por "Posso Contar nos Dedos"

Melhor fotografia: Eloísa Soares, por "Cassino"

Melhor direção de arte: Denis Souza, Victoria Kaminski e Nadine Lannes Maciel, por "Posso Contar nos Dedos"

Melhor trilha sonora: Edneia Brasão e Pedro Erler, por "Não Tem Mar Nessa Cidade"

Melhor montagem: Marcio Picoli e Victor Di Marco, por "Zagêro"

Melhor desenho de som: Fábio Baltar, por "Flor"

Melhor produção executiva: Graziella Ferst e Marlise Aúde, por "Pastrana"

 

FILMES UNIVERSITÁRIOS - PRÊMIO EDINA FUJII – CIA RIO

“A Falta que Me Traz”, de Laura Zimmer Helfer e Luís Alexandre, da Universidade de Santa Cruz do Sul

 

texto: Daniel Rodrigues
fotos: Daniel Rodrigues, Leocádia Costa e Edison Vara/Festival de Gramado

terça-feira, 2 de julho de 2024

“Nada Será Como Antes - A Música do Clube da Esquina”, de Ana Rieper (2024)

 

Nada (ou muito pouco) é como antes

O cinema brasileiro se solidificou como um grande produtor de documentários desde a retomada, no início dos anos 2000. Embora já tivesse uma considerável tradição documentarista, desde o Ciclo de Cataguases aos cinemanovistas, foi principalmente a partir da década de 2010 que explodiram produções documentais em diversos formatos e temas, sendo um deles o da história cultural do País. O aperfeiçoamento das formas de pesquisa e dos recursos de tecnologia juntam-se ao interesse dos novos realizadores em contar essa riqueza histórica, que oferece um panorama amplo de entendimentos políticos, comportamentais e sociais do Brasil. Artistas, autores, personalidades, movimentos, escolas e projetos passaram a se tornar objeto de análise fílmica, rendendo muitos filmes de excelência, mas outros nem tanto. 

É o caso do recente “Nada Será Como Antes - A Música do Clube da Esquina”, que se debruça sobre o movimento musical mineiro cujo principal álbum é considerado um dos maiores de todos os tempos no Brasil. Há pouco, a revista norte-americana Post Magazine, igualmente, colocou-o entre os 10 melhores entre os 300 mais emblemáticos da música pop, algo semelhante ao que fez o livro "1001 Discos para se Ouvir Antes de Morrer" ao incluí-lo na listagem juntamente com outros 15 brasileiros. Mas, infelizmente, o documentário de Ana Rieper perde a chance de explorar toda a riqueza que o tema oferece. Na esteira do festejado mas pouco envolvente “Elis & Tom - Só Tinha de Ser Com Você” (Roberto de Oliveira e Jom Tob Azulay, 2023), “Nada Será...” busca resgatar, a partir da visão de seus principais atores, a alma deste outro disco clássico: "Clube da Esquina", de 1972. Faz isso resgatando a formação do famoso Clube, apelido da turma de músicos mineiros liderados por Milton Nascimento que faz referência a uma esquina de Belo Horizonte, entre as ruas Paraisópolis e a Divinópolis, no bairro de Santa Tereza, onde moravam, nos anos 60, os igualmente protagonistas irmãos Borges (Márcio, , Telo e Marílton). Uma cena artística absolutamente original e de uma qualidade incomparável ainda hoje, que reunia talentos e todas as forças da música brasileira àquela época: a tradição do samba, as influências do rock e do jazz, os ritmos do Nordeste e do sertão, o classicismo, a herança religiosa, a tradição ibérica e a veia sul-americana. Tudo muito bem conjugado, sintetizado, orquestrado. 

Porém, os problemas do filme começam, de certa forma, na maneira de contar essa trajetória. Intercalando depoimentos recentes dos Borges (principalmente, Márcio e Lô, este último, o coautor do celebrado disco com Milton), Beto Guedes, Novelli, Wagner Tiso, Toninho Horta, Flávio Venturini e outros, quando se trata de Milton, os registros de entrevistas são “velhos”. Não que não o valham. Pelo contrário, só enriquecem. Porém, Milton, diferentemente de outro importante personagem como Fernando Brant, ainda está vivo, e seria fundamental, mesmo que prejudicado pelo atual estado de saúde que atrapalha sua fala, contar com depoimentos atuais de Bituca, indiscutivelmente o centro de todo aquele movimento.

Milton em entrevistas de anos atrás: blindagem da
família ou desleixo da produção?  
Pode-se sondar que Milton tenha sido blindado pela superprotetora família (para não dizer "arredia"), cuidadosa em expô-lo desta forma – o que é bem possível que Ana tenha esbarrado. Mas não soa como uma explicação totalmente plausível, visto que o documentário parece, justamente, ressentir-se de documentos. Há menos vídeos e fotos de shows ou de apresentações do que se espera. Existem, sim, como as imagens do “Show do Paraíso”, o Woodstock mineiro realizado em uma fazenda nas proximidades da cidade de Três Pontas, que reuniu grandes nomes da música brasileira, como Tiso, Beto Guedes, Lô, Nelson Ângelo, Gonzaguinha, Fafá de Belém, Francis Hime, Chico Buarque, Clementina de Jesus, entre outros. Mas não passa muito disso, o que faz com que se fique com a sensação de que pouco se embrenhou nos arquivos. Do próprio Brant, falecido em 2015, há, grosso modo, uma sequência apenas de uma conversa numa mesa de bar em que se celebra o grande poeta do Clube da Esquina. E só. Sem registros de entrevistas em vídeo ou áudio do autor que colocou em palavras alguns daqueles clássicos, como “Para Lennon e McCartney”, “Travessia” e a própria música que dá título ao filme. Seria isso em razão de uma (estranha) decisão pelo fato de Brant não estar mais vivo? Não, pois o outro grande letrista da turma, Ronaldo Bastos, mesmo ainda vivo, depõe em uma única e solitária vez.

Talvez por certa tentativa de dar um ar de “mineirice” à narrativa, num tom de “dedo de prosa” e puxando para Márcio e Lô o papel de condutores, o filme tenha recaído numa certa superficialidade diante do dimensão do tema central. Além da pequena participação de Ronaldo e da inexplicável redução da figura de Brant, outros personagens coadjuvantes - mas de participação efetiva para a composição do disco - nem citados são. Casos de Alaíde Costa, a voz principal da espetacular faixa “"Me Deixa em Paz", ou o fotógrafo e designer Cafi, autor da famosa foto dos meninos da capa que tão bem simboliza o álbum. É preciso assistir ao filme "Salve o Prazer!" (Lírio Ferreira e Natara Ney, 2020) para que, ali, Cafi conte, enfim, a história da fotografia e como ela se tornou, por decisão de Milton, a capa do disco.

A opção narrativa de Ana também incorre em um outro aspecto, que é a definição daquilo que, de fato, está se falando: o Clube da Esquina como grupo, como cena artística ou como disco? Não que não se fale e não se pudesse falar dos três concomitantemente. Aliás, é o ideal, visto que seria muito estranho tratar de um como se o outro não existisse ou que não sejam diretamente correlacionados. Contudo, fica a dúvida de que olhar a diretora e roteirista quis dar. Ora se detalha elementos técnicos como o solo de Toninho Horta em “Trem Azul”, ora se abstém de abordar faixas memoráveis do mesmo repertório, como “Cais” e "Me Deixa em Paz". Então, conclui-se que não é só sobre o disco. Em contrapartida, também não é somente sobre o grupo/cena. Não se fala, por exemplo, do legado do Clube da Esquina, como sua influência para a world music quando Wayne Shorter (outro esquecido no filme) leva o amigo Milton para os Estados Unidos para gravarem “Native Dancer”, em 1975. Nem muito menos o “Clube da Esquina 2”, de 1978, que, mais do que uma continuidade, agregou àquele grupo nomes como Chico, Elis Regina, Azymuth, Joyce e Danilo Caymmi, expandindo os ecos originais. 

Em suma, ao não aprofundar estes três pilares (ou não se optar por algum para, aí sim, dissecá-lo), tudo fica um tanto incompleto. Afinal, o Clube da Esquina merece muito mais aprofundamento, pelo que é e pelo o que representa. Mesmo que sua centelha tenha sido aquela naturalidade quase inocente que Lô bem descreve, o Clube da Esquina virou muito mais do que isso. Assim, o final poético dado pela cineasta, por mais bonito que seja, sofre certo esvaziamento. Para arrematar, a música que roda nos créditos é a própria “Nada Será Como Antes”. Até aí, tudo bem. Porém, é exatamente a mesma versão do início do filme. Mais uma elemento desabonador em um filme que parece ter economizado em pesquisa e atenção ao objeto pesquisado. Uma pena, tendo em vista que se perde uma boa oportunidade de trazer à luz algo, como dito no início, importante para a reconstrução histórico-cultural do Brasil moderno. Ainda bem que, diferentemente do passado menos denso em documentários no cinema brasileiro, hoje pode-se, tranquilamente retornar ao mesmo assunto, agregando mais visões ao mesmo tema. E quem sabe, retratando o Clube da Esquina com maior fidelidade e trazendo, enfim, muito mais do que foi como antes. Amanhã.

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trailer de “Nada Será Como Antes - A Música Do Clube Da Esquina”, de Ana Rieper



Daniel Rodrigues


quinta-feira, 11 de abril de 2024

"Hamlet", de Zeca Brito (2023)



Ser ou Não Ser Político? Eis a Questão


"A loucura às vezes atinge quando o julgamento e a sanidade não dão frutos."
Da Peça "Hamlet", ato 2

Levar Shakespeare para a tela sempre foi uma tarefa complexa. A tentação de se valer do texto clássico pela sua inequívoca qualidade, no entanto, nem sempre é garantia de um bom resultado. Justamente pela alta qualidade literária, a adaptação pode facilmente resvalar. Se há acertos esplêndidos, como “Othelo” de Orson Welles, há também pasteurizações enfadonhas, tipo “Romeu + Julieta” de Baz Luhrmann. Fato é que o cinema ainda explora formas de elaborar a dramaturgia do autor inglês. Entende-se, contudo, tamanha tentação. O teatro shakespeariano sintetiza tão bem a alma humana, que é capaz de refletir situações aparentemente distantes de si, rompendo épocas e renovando linguagens ao longo do tempo. O provocativo “Hamlet”, do cineasta gaúcho Zeca Brito, prova isto. Quando se poderia imaginar, afinal, que uma peça de 425 anos suportaria com a devida potência a ação do movimento Ocupa Escola do Brasil do século 21?

Ganhador de diversos prêmios em festivais, como Gramado e o FIDBA, em Buenos Aires, “Hamlet” é livremente inspirado na peça trágica. Encarnado por Fredericco Restori, o jovem protagonista se encontra em pleno ano de 2016 vivenciado a ocupação do movimento estudantil no Instituto de Educação General Flores da Cunha, em Porto Alegre. Em meio ao traumático processo de impeachment de Dilma Rousseff, é o registro de um período de convulsão social, quando estudantes secundaristas amotinam-se e interrompem as aulas para protestar contra o desgastado sistema vigente. 

Restori no papel de "Hamlet" entre os alunos em protesto

Com a equipe de filmagem inserida no colégio, Brito capta ao mesmo tempo a realidade daqueles jovens e a participação ativa do ator, que divide-se entre a ficção e a vida real. O cineasta retoma o teor político de realizações anteriores, como “A Vida Extra-ordinária de Tarso de Castro” (2016) e “Legalidade” (2019), porém usando a tragédia renascentista como impulso a uma obra pulsante e singular.

A força do filme está no proveito de um dos recursos elementares do texto original: a duplicidade. A dureza da fotografia em p&b expõe constantemente a dicotomia “realidade versus ficção”. O “ser ou não ser” hamletiano se transfigura em embates simbólicos entre bem e mal, loucura e lucidez, democracia e totalitarismo, violência e doçura, espírito e matéria. Ao unir documentário e drama, “Hamlet” joga seu personagem principal num palco vivo, que o faz questionar a vida como um teatro de incertezas e angústias. A exposição na tela daquele Brasil rachado redimensiona, assim, o significado da palavra “cenário”. Não é mais apenas uma explicação para “conjuntura política”, mas para a cena, o plano de ação, aquilo que a câmera enquadra. 

É emblemática a cena em que Hamlet é abordado por uma equipe de televisão, que transmitia ao vivo o ato no colégio. A repórter (de abordagem parcial e sem saber que se tratava de um ator), questiona Hamlet sobre a ocupação. Porém, incomodada com uma pessoa que a filma just in time (o próprio Zeca Brito), grosseiramente a condena. A multiplicidade de camadas e espelhamentos que a sequência consegue revelar – o olhar do cineasta, do tevente, do espectador do filme, da repórter, do apresentador, do cinegrafista – atingem um nível de metalinguagem e de complexidade discursiva admiráveis.

Diálogo entre pai e filho: espelho
A atuação de Restori, igualmente, é alimentada por esta riqueza de intenções. A tênue fronteira entre sanidade e insanidade que conduz Hamlet durante toda a peça expõe-se no personagem do filme através do conflito existencial entre outros dois extremos: o rompimento com a infância e a assunção da vida adulta. Mais do que isso: a tomada de consciência do seu “ser político”. Os diálogos dele com o pai, o também ator Marcelo Restori, como que pondo-se diante de um fantasma no espelho, retrazem o elemento da figura paterna do livro, mas não pelo trauma da morte física como no caso do príncipe dinamarquês, mas a morte da inocência em detrimento da razão. 

Ao reelaborar elementos distintivos do clássico, o filme renova o olhar sobre o ser humano em suas relações sociopolíticas na atualidade. O jovem Hamlet, amálgama de incertezas e desafios, veste, agora, seu manto preto pelas ruas de Porto Alegre como um estudante em busca de respostas àquilo que lhe faça sentido. O filme, assim, faz suscitar profundos questionamentos a respeito da sociedade brasileira dos últimos anos, uma sociedade contraditória e marcada pela pior das dicotomias a qual pode condenar-se: a polarização política. No espelho, não é mais o fantasma do pai que Hamlet vê: é o seu país.

texto originalmente publicado no caderno Doc do jornal Zero Hora em 8 de março de 2024

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trailer de "Hamlet", de Zeca Brito



Daniel Rodrigues