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quinta-feira, 22 de agosto de 2024

Françoise Hardy - "Tant De Belles Choses” (2004)

 

"Henri Salvador, que tinha uma gravadora, viu minha apresentação na televisão e telefonou com a intenção de assinar um contrato comigo. A reunião nunca aconteceu, porque eu já estava sob contrato, mas eu sinto tontura toda vez que penso no meu desenvolvimento profissional e o curso que isso tomaria se um artista tão excepcional quanto Henri tivesse me colocado sob sua asa."
Françoise Hardy, em sua autobiografia "The Despair of Monkeys and Other Trifles: A Memoir by Françoise Hardy", de 2018

Ela havia completado 80 anos recentemente, o que foi motivo de celebração para os fãs desta artista cult que somente um país como a França podo gerar. Ela é Françoise Hardy, cantora, compositora, atriz e modelo, que além de linda e talentosa, reúne características daquilo que há de melhor na cultura de sua cidade-natal, Paris: o bom gosto, a delicadeza e a elegância. Mas um câncer a levou em junho deste ano, pouco mais de um mês antes da abertura das Olimpíadas iniciarem na própria Cidade-Luz. Quem sabe ela também não estaria na cerimônia de abertura às margens do Sena tocando?

Surgida como uma das principais figuras do movimento yé-yé nos anos 1960, ela conquistou a Europa com sua voz suave e estilo distinto. Instrumentista desde a adolescência, ela fez faculdade de Ciências Políticas e de Letras na Sorbonne, mas não conclui nenhum dos cursos, pois já havia descoberto sua vocação. Depois de passar em uma seleção de novos talentos da gravadora Vogue, em 1961, passa a cantar na TV francesa e logo foi catapultada ao sucesso com a canção "Tous les Garçons et les Filles", que vendeu milhões de cópias. Hardy não conquistou só o público francês, mas também ganhou notoriedade internacional, gravando versões de suas músicas em italiano, alemão e inglês.

Bela, foi também musa na moda e no cinema. Com o fotógrafo Jean-Marie Périer, com quem se relacionou até 1967, Françoise entrou no mundo da moda atuando como modelo e tornou-se um ícone fashion. Em colaboração com designers renomados como Yves Saint-Laurent e Paco Rabanne, ela influenciou a moda dos anos 1960 com seu estilo característico de minissaias e botas brancas. No cinema, foi dirigida por Jean-Luc Godard, Roger Vadim, Clive Donner e John Frankenheimer, quando contracenou com Peter Sellers e Peter O'Toole no clássico "Grand Prix", de 1966. Françoise era desejada por homens e mulheres, de David Bowie a Mick Jagger, de Brian Jones a John Lennon.

Na música, no entanto, foi onde mais se desenvolveu. Evoluiu do rock inocente e passou a gravar coisas como o folk “Suzanne”, de Leonard Cohen, e, em passagem pelo Brasil, voltou para a França na mala com uma versão francófona de “Sabiá”, de Chico Buarque e Tom Jobim, intitulada “La Mésange”. As fronteiras sonoras de Françoise começavam a se expandir. Entre 1962 e 1973, ela lançou um álbum por ano, consolidando seu status como uma das principais artistas da época. Alguns de seus maiores sucessos incluem "Le Temps de l'Amour" e "Mon Amie la Rose". Ela trabalhou com compositores renomados como Serge Gainsbourg, que escreveu para ela o hit "Comment te Dire Adieu", e Michel Berger, que compôs duas canções para o álbum "Message Personnel" (1973). Com tudo sua voz ligeiramente rouca e afinada e muito bom gosto sonoro, tornou-se uma excelente melodista e letrista admirada por ícones como Henri Salvador, que até quis contratá-la no início da carreira.

Embora a extensa discografia, que adentrou os anos 70, 80 e 90, foi na maturidade que Françoise chegou a seu auge em termos de musicalidade. Ela já havia surpreendido crítica e público com o triunfante retorno aos estúdios depois de 4 anos de pausa com “Clair-Obscur”, de 2000, quando, além de suas excelentes interpretações, composições e versões, canta com gente como Iggy Pop, Olivier Ngog e o ex-marido e eterno parceiro musical Jacques Dutronc. Porém, precisariam mais quatro anos para que viesse, aí sim, com o irretocável “Tant De Belles Choses”, 24º de sua longa trajetória e que completa 20 de lançamento em 2024.

Françoise: ícone também
da moda e do cinema nos
anos 60 e 70
À época com 60 anos, parece que a idade dava a Françoise aquilo que poeticamente Caetano Veloso sentenciou sobre a velhice: “Já tem coragem de saber que é imortal”. A faixa-título e de abertura e encerramento, evidencia esse amadurecimento diante do mundo, diante das coisas, que se tornam graciosamente belas a seu olhar. Na sequência, a sempre presente influência da música brasileira na sonoridade dos franceses está na francesíssima bossa-nova “À L'ombre De La Lune”. Clima parecido tem “Jardinier Bénévole”, mais cadenciada e enigmática, contudo, principalmente pelas programações de ritmo, pelos teclados reverberantes e pelo contracanto de Alain Lubrano.

Balada triste e romântica, “Moments” é uma das duas cantadas em um inglês do álbum juntamente com o pop quase tribal “So Many Things” – ambas não coincidentemente muito parecidas com o som da Everything But the Girl, uma vez que a inglesa Tracey Torn certamente tem em Françoise uma grande inspiração no modo de cantar e compor. Já “Souir de Gala” é um dos belos exemplos da canção pop hardyana, com versos muito melodiosos e visivelmente composta ao violão, embora o piano faça a marcação enquanto a guitarra solta frases pontuais. A voz dela, aliás, sempre suave, bem colocada, sensual. Sem percussão, apenas sob teclados e efeitos, “Sur Quel Volcan?” é outra que merece muita atenção. Interrogativa e não menos reflexiva, a letra diz: “Eu peço emprestado passagens, becos/ Eu pego mensagens, segredos/ Neste espaço de filigrana/ Eu veria um pedaço da sua alma?/ Em qual vulcão/ Vamos dançar/ Você e eu/ A que custo?/ Quem vai queimar lá/ Você ou eu?”.

O jazz com traços franceses, que mestres como Henri Salvador e Francis Lai legaram à música ocidental, vem na gostosa “Grand Hôtel”. A linha jazzística permanece em “La Folie Ordinaire”, que antecipa a potente – e fantasticamente melódica – “Un Air de Guitare”, em que Françoise canta com urgência os versos, os quais fraciona em três instantes bem marcados. O violão, constante e premente, ganha a parceria da dona da música, a “guitare”, tocada pelo filho Thomas Dutronc. Que baita música! Já na tensa “Tard Dans La Nuit…” – que lembra os temas densos de Nico –, Françoise fala das dores e angústias que a noite esconde. “Ela não é quem deve ser culpada/ Tantos sonhos se dissipam/ É melhor se esconder nas sombras/ As ruas não são seguras/ Atrás das portas blindadas/ Cães latem impiedosamente/ Ninguém pôde dizer/ De onde vieram os golpes/ Tarde da noite”.

Finalizando, mais uma preciosidade: “Côté Jardin, Côté Cour”. Lindo refrão: melodioso, elegante, suave e intenso ao mesmo tempo. A faixa se liga diretamente com a segunda versão de “Tant De Belles Choses”, que ressurge para terminar o disco de maneira imponente. E embora Françoise tenha lançado ainda outros quatro bons trabalhos até o fim da vida, este parece melhor representar a si e ao país ao qual trazia o radical no nome. Com 20 anos de antecedência à própria despedida, ela versa, concordando com aquilo que Caetano disse, a seguinte frase: “O amor é mais forte que a morte”. Nada além da mais pura verdade quando se fala de uma artista imortal como Françoise Hardy.

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FAIXAS:
1. "Tant De Belles Choses" (Pascale Daniel/ Alain Lubrano) - 4:02
2. "À L'ombre De La Lune" (Benjamin Biolay) - 3:38
3. "Jardinier Bénévole" (Lubrano) - 4:02
4. "Moments" (Perry Blake/ Marco Sabiu) - 3:31
5. "Soir De Gala" (Thierry Stremler) - 2:46
6. "Sur Quel Volcan?" (Daniel) - 3:08
7. "So Many Things" (Blake/ Sabiu) - 3:29
8. "Grand Hôtel" (Stremler) - 3:13
9. "La Folie Ordinaire" (Ben Christophers) - 2:32
10. "Un Air De Guitare" (Françoise Hardy)  - 3:58
11. "Tard Dans La Nuit…" (Daniel/ Lubrano) - 3:27
12a. "Côté Jardin, Côté Cour" (Lubrano) - 4:10
12b "Tant De Belles Choses (Version)" (Daniel/ Lubrano) - 3:58

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Daniel Rodrigues

quinta-feira, 8 de agosto de 2024

Caetano Veloso & Chico Buarque - "Caetano e Chico Juntos e ao Vivo” (1972)



por Márcio Pinheiro

"Eu gosto muito de você, Caetano, porque você me desconcerta."
Chico Buarque

No final de 1972, Chico Buarque estava na Bahia, ao lado de Caetano Veloso - que completou 82 anos no último dia 6 - para a realização de um show que dava fim a qualquer boato que colocasse os dois artistas em campos opostos. Registrado pela gravadora Philips, o show se transformaria em disco que seria lançado ainda antes do Natal.

O momento histórico reunindo os dois músicos – numa triste coincidência, na mesma noite em que o poeta e jornalista Torquato Neto se suicidara no Rio de Janeiro – mostra em pouco mais de meia hora de gravação como a afinidade entre eles era imensa.

Com um repertório reunindo composições de Chico (“Bom Conselho”, “Quando o Carnaval Chegar” e “Partido Alto”) e de Caetano (“Tropicália” e “Esse Cara”), com os dois ora se alternando, ora dividindo os vocais, o disco já nascia como relato  histórico caráter antológico. A aparente separação em algumas canções era soterrada na abertura do lado B, com Caetano convidando Chico em “Eu quero dar o fora/E quero que você venha comigo”, em “Você não Entende Nada”, e Chico aceitando o convite e respondendo com “Todo dia eu só penso em poder parar/Meio-dia eu só penso em dizer não/Depois penso na vida pra levar/E me calo com a boca de feijão”, em “Cotidiano”.

Como foi bem observado pelo crítico Julio Hungria em texto no JB, a gravadora apenas se descuidou ao não dar ao evento a condição de caráter histórico, omitindo do registro diálogos, frases de bastidores, confidências que retratassem a importância do encontro. “É um disco predestinado”, definia Hungria, sem esquecer que a censura se fazia presente, como em "Bárbara", de Chico e Ruy Guerra, em que a letra fala de uma “paixão vadia, maravilhosa e transbordante como uma hemorragia” e onde os cortes da Censura podem ser adivinhados apesar da habilidade dos técnicos de gravação. Ou ainda em “Ana de Amsterdã”, dos mesmos autores, em que, num dos versos, a palavra “sacana” da versão original virou “bacana”

Trecho do livro "O Que Não Tem Censura Nem Nunca Terá", de Márcio Pinheiro

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FAIXAS:
1. "Bom Conselho" (Chico Buarque) - Intérpretes: Chico Buarque - 02:00
2. "Partido Alto" (Chico Buarque) - Intérpretes: Caetano Veloso - 05:32
3. "Tropicália" (Caetano Veloso) - Intérpretes: Caetano Veloso - 03:31
4. "Morena dos Olhos D'Água" (Chico Buarque) - Intérpretes: Caetano Veloso - 02:32
5. "A Rita" (Chico Buarque)/ "Esse Cara" (Caetano Veloso) - Intérprete: Caetano Veloso - 03:35
6. "Atrás da Porta" (Chico Buarque/Francis Hime) - Intérpretes: Chico Buarque - 02:44
7. "Você Não Entende Nada" (Caetano Veloso)/ "Cotidiano" (Chico Buarque) - Intérpretes: Chico Buarque/Caetano Veloso - 07:01
8. "Bárbara" (Chico Buarque/Ruy Guerra) - Intérpretes: Caetano Veloso/Chico Buarque - 03:50
9. "Ana de Amsterdam" (Chico Buarque/Ruy Guerra) - Intérpretes: Chico Buarque - 01:45
10. "Janelas Abertas Nº 2" (Caetano Veloso) - Intérpretes: Chico Buarque - 01:56
11. "Os Argonautas" (Caetano Veloso) - Intérpretes: Caetano Veloso - 03:23

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OUÇA O DISCO:

quinta-feira, 25 de julho de 2024

Paul & Linda McCartney – "Ram" (1971)



por Roberto Sulzbach Cortes

“Incrivelmente inconsequente e monumentalmente irrelevante.”
Revista Rolling Stone sobre Ram, em 1971

Se minha última aparição neste querido blog foi para falar do primeiro álbum solo de John Lennon pós-separação dos Beatles, minha primeira aparição do ano (apesar de já estarmos mais para o final do que para o começo) será para falar do segundo disco solo da outra parte da dupla que coloriu os anos 60 juntos. Com a volta do nosso Sir ao Brasil, pelo segundo ano consecutivo, resolvi revisitar o catálogo do artista, o que me levou a uma de suas obras menos apreciadas, mas que com o tempo foi reconhecida: "Ram", de 1971. 

Paul McCartney havia lançado o primeiro disco solo, "McCartney", em 1970, compondo sozinho e tocando todos os instrumentos. Não causou um grande impacto, principalmente quando comparado ao que os ex-colegas John e George Harrison lançaram no mesmo ano. O primeiro lançou "Plastic Ono Band", uma obra-prima envolta em sofrimento, angústia e desabafo, enquanto o segundo lançou "All Things Must Pass", um disco triplo cheio de canções de um guitarrista suprimido pelo ego da dupla de frente da banda, contando até com parcerias de Bob Dylan.

"Ram" surge de um momento de refúgio para Paul, em que ele e a família resolveram se mudar para uma fazenda, o que levou a sua esposa, Linda, a colaborar com as composições. Posteriormente, os dois passam a fazer audições e encontram as pessoas que, eventualmente, formariam o grupo Wings com o casal. Portanto, estava tudo pronto para lançar um disco indie, nesse caso, de “independente”. 

À época, existiam dois motivos para alguém estar em uma gravadora independente: ainda não conseguir um contrato com uma gravadora grande; ou, querer ter maior controle e liberdade artística das obras. Frank Sinatra, ícone da música crooner, tinha seu próprio selo, assim como os Beatles, a famosa Apple Records, e sendo assim, todos os ex-membros competiam entre si quando lançavam novas músicas, além de toda uma nova leva de gêneros musicais que surgiram na virada da década. 

Sendo assim, "Ram" consegue ser direto e abstrato, ao mesmo tempo, com melodias em escalas maiores, características essas, presentes em praticamente todos os álbuns de indie pop subsequentes. E essas escolhas fizeram com que o disco fosse mal interpretado. Apesar do relativo sucesso comercial que o disco atingiu, a crítica caiu em cima de Paul, fazendo com que até seus ex-colegas dissessem que não entenderam o que ele queria fazer. Claro que ninguém entendeu: ele estava inventando um novo gênero. 

“Too Many People” abre o disco, mas poderia muito bem estar no catálogo dos canadenses da Arcade Fire, com violões melódicos e backing vocals femininos (cortesia de Linda) estridentes e afinados ao mesmo tempo, enquanto dá umas cutucadas no amigo John. Na sequência, “3 Legs” parece ter causado em um jovem Jack White, pois parece ser uma antecessora de “Hotel Yorba” do álbum “White Blood Cells”.

Paul e Linda: produção doméstica,
que virou cult com o passar dos anos
“Ram On”, uma semifaixa título, contém apenas uma estrofe e serve como pano de fundo, resumindo a tônica do disco. “Dear Boy” parece ter sido feita uns 5 anos antes, influenciada diretamente pelos Beach Boys, orquestrada, harmônica e grandiosa. Estranhamente, “Uncle Albert/Admiral Halsey” foi um sucesso nos Estados Unidos, de certa forma, até inesperado. Albert é realmente o tio de Paul e Admiral Halsey é em referência ao oficial William Frederick Halsey Jr. da marinha estadunidense, que lutou na Segunda Guerra Mundial. Parecem não ter correlação? Sim! Mas a música é sobre tentar levar a vida de maneira mais leve, e definitivamente, é a mais grudenta da lista, com seu refrão em dueto agudo dos artistas em “Hands across the water, water; Heads across the sky” ("Mãos pela água; mãos pelos céus").

“Monkberry Moon Delight” é uma psicodélica. A música não faz sentido algum, mas tem (como toda boa composição de McCartney), uma excelente melodia, vocais estridentes e a participação de Heather (filha de Linda e adotada por Paul), de 9 anos na época, nos backing vocals. Parece uma versão lúdica de uma canção de Tom Waits. É possível até imaginar os três se divertindo no estúdio, quase brincando enquanto gravavam. 

“Smile Away”, “Heart Of The Country” e “Eat At Home” soam como clássicos e novidades ao mesmo tempo. Misturam elementos do blues, do hard rock e do folk (com um quê tradicionalíssimo de Paul).

“Long Haired Lady” é Lindíssima (com o perdão do trocadilho, homenagem à esposa e parceira artística). “Ram On (Reprise)” traz aquele hábito dos discos do período, conceitualizados, em que um tema que aparece no início, volta a surgir ao final, para passar a sensação de ciclo contínuo, só tocando o instrumental da primeira versão presente no LP.

O disco fecha com “The Back Seat Of My Car”. Uma saída triunfal para um compilado de canções que trouxeram para um público massivo diversos contextos não muito conhecidos à época. O refrão “we believe that we can’t be wrong” ("nós acreditamos que não estamos errado") parece antecipar que ninguém entenderia muito bem o que eles estavam fazendo por ali, mas que o tempo se mostrou senhor da razão, provando que estavam certos.

"Ram" passou por algo muito comum na era dos streamings: a redescoberta. O disco é um “primo alterna”, perto de "Band On The Run" (com a Wings, 1973), ou até mesmo dos hits presentes em "Wings at the Speed of Sound" (1976). Mas, lentamente, ganha espaço como um dos mais experimentais da carreira do baixista daquela banda famosa, e dos mais influentes da música atual.

Um projeto, praticamente, familiar ajudou a pavimentar o caminho do indie pop. O próprio Paul passou a admirar o próprio trabalho "Ram", que depois de mais de 50 anos, está recebendo a devida atenção que sempre mereceu. 

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FAIXAS:
1. "Too Many People" - 4:09
2. "3 Legs" - 2:48
3. "Ram On" - 2:30
4. "Dear Boy" - 2:14
5. "Uncle Albert / Admiral Halsey" - 4:50
6. "Smile Away" - 4:01
7. "Heart Of The Country" - 2:22
8. "Monkberry Moon Delight" - 5:25
9. "Eat At Home" - 3:22
10. "Long Haired Lady" - 6:05
11. "Ram On (Reprise)" - 0:55
12. "The Back Seat Of My Car" - 4:29
Todas as composições de autoria de Paul e Linda McCartney

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OUÇA O DISCO:


segunda-feira, 15 de julho de 2024

Gilberto Gil - "Gilberto Gil ao Vivo" ou "Ao Vivo no Tuca" (1974)

 

“A experiência do exílio universaliza o caráter da música de Gil, mas também serve para reabrasileirá-la”
Marcelo Fróes, pesquisador musical

O forçado período de exílio, no final dos anos 60/início dos 70, em razão da perseguição do Governo Militar brasileiro, fez bem a Gilberto Gil. A afirmação soa cruel humanisticamente falando, mas, em contrapartida, é impossível dissociar a música do compositor e cantor baiano daquilo que ele produziu em sua fase pós-tropicalista, justamente a que coincide com aquele momento. Sondar, hoje, a música de Gil sem esta intervenção temporal, num continuum que ligue “Batmakumba” diretamente a “Realce”, é impensável. Londres, com seu frio e neblina, mas também com seus “lindos verdes campos” que o oportunizaram a Swinging London e a lisergia, marcou-se de vez na alma de Gil. E isso por um simples motivo: a cosmopolita Londres em muito combinava com a visão holística deste artista.

Os sinais do Velho Mundo ficam evidentes já em “Expresso 2222”, de 1972, seja na influência beatle, seja, por outro lado, no re-enraizamento, espécie de contramovimento em direção às origens de quem tanto tempo ficou distante de sua terra. Mas outras sensibilidades também puderam ser extraídas daquela inevitável influência europeia, que é o próprio cosmopolitismo. E Gil, hábil, traduziu isso em sonoridade. Jards Macalé já havia dado os primeiros passos desde seu compacto "Só Morto", de 1970, e, posteriormente, ao instaurá-la em “Transa”, que Caetano Veloso, companheiro de Tropicália e de exílio de Gil, gravaria na mesma Londres antes de voltar ao Brasil. Era uma sonoridade elétrica (ainda sem teclados), mas sem peso e distorções, que mesclava o rock aos sons brasileiros numa medida que, hegemonizada, soava como um novo jazz fusion. Um fusion essencialmente brasileiro. Não o que Airto Moreira, Hermeto Pascoal ou Eumir Deodato vinham praticando nos Estados Unidos. Era um jazz brasileiro, mas tão brasileiro, que é fácil se esquivar de chamar de jazz, ao passo que é difícil classificar somente de MPB.

O sumo desta sonoridade universalista está no disco ao vivo que Gil gravava há 50 anos com uma afiada banda num único e histórico final de semana de outubro de 1974 no Teatro da Universidade Católica de São Paulo, o conhecido Tuca – palco de diversas combativas apresentações no período da Ditadura. Gil estava num momento transitório entre o disco “Expresso 2222”, que marcou sua volta ao Brasil, e um grande projeto, a trilogia “Re” (“Refazenda”/"Refavela”/”Realce”) a qual tomaria seus próximos três anos a partir de 1975. Além disso, Gil engavetara um disco de estúdio previsto para aquela época e para o qual havia composto várias canções, renomeado “Cidade do Salvador” quando lançado posteriormente na caixa “Ensaio Geral”, de 1998, produzida pelo pesquisador musical Marcelo Froés. Nem por isso, o artista se desconectara de suas próprias buscas sonoras. Pelo contrário. Absorvido pelos estímulos da música pop e com o que captara no período internacional, Gil realiza este show onde exercita o que havia de mais arrojado em termos de arranjo, melodia, harmonia e performance de sua época. Era o Gil tropicalista, novamente, dando as cartas da “novidade que veio dar na praia” na música brasileira. 

“João Sabino”, faixa inicial, é exemplar. Inédita, assim como todas as outras cinco que compõem o disco. Ou seja: embora se trate da gravação de uma apresentação, sua estrutura é de um álbum totalmente novo, com faixas inéditas ou nunca tocadas por Gil, e não de versões ao vivo de temas conhecidos e/ou consagrados - tal como o próprio realizaria em diversos outros momentos da carreira, como os ao vivo "Refestança" (com Rita Lee, de 1980), e "Quanta Gente Veio Ver" (1998). Soma-se a isso a exímia execução, que dá a impressão de uma gravação tecnicamente perfeita como que engendrada num estúdio, da fantástica banda formada por: Gil, na voz, violão e arranjos; Aloísio Milanês, nos teclados; o "Som Imaginário” Frederiko, guitarra; Rubão Sabino, baixo elétrico; e Tutty Moreno, bateria. 

Afora isso, “João Sabino” – homenagem ao pai do baixista da banda, que está excelente na faixa – é um samba de mais de 11 min, repleto da variações e uma melodia com lances experimentais, que exige domínio dos músicos. Na letra, metalinguística, Gil equipara as “localidades” da cidade natal dos Sabino, a capixaba Cachoeiro do Itapemirim (“Pai do filho do Espirito Santo”) com religiosidade e das notas musicais (“Nessa localidade de lá/ Uma abertura de si/ Uma embocadura pra dó/ Sustenindo uma passagem pra ré/ Mi bemol/ (...) De mi pra fá/ Sustenindo, suspendendo/ Sustentando, ajudando o sol/ Nascer"”). E Gil o faz com muita improvisação no canto, incidentando passagens e brincando com as palavras e os vocalises, o que antecipa, até pela extensão do número, a grande jam que gravaria com Jorge Ben no ano seguinte no clássico “Gil & Jorge/Xangô Ogum”. Som eletrificado com alto poder de improvisação dos músicos, que sintetiza a sina bossa-novista, a tradição do samba e a influência nordestina às novas sonoridades pós-“Bitches Brew” e “A Bad Donato”. Um show.

É a vez da psicodélica “Abre o Olho”, espécie de diálogo consigo mesmo no espelho, em que Gil reflete algumas maluquices saborosas enquanto põe colírio nos olhos sob efeito da maconha. “Ele disse: ‘Abra o olho’/ Eu disse ‘aberto’, aí vi tudo longe/ Ele disse: ‘Perto’/ Eu disse: ‘Está certo’/ Ele disse: ‘Está tudinho errado’/ Eu falei: ‘Tá direito’”. Essa divagação toda para chegar na catártica (e sábia) frase do refrão: “Viva Pelé do pé preto/ Viva Zagalo da cabeça branca”. Seu violão e canto são tão intensos, sua performance é tão completa, que nem dá pra perceber que o resto da banda não está tocando.

Gravada originalmente pelo seu coautor, o amigo João Donato, no disco homônimo, “Lugar Comum” ganha aqui a única versão cantada pelo próprio Gil. Delicada e num arranjo redondo, tem a segurança dos músicos na retaguarda, entre eles Tutty, baterista dos revolucionários “Transa”, “Expresso 2222” e dos discos iniciais de Jards, entre outros. Destaque do repertório, talvez a mais sintética de todas da atmosfera empregada nesta apresentação, é “Menina Goiaba”, que bem poderia receber o subtítulo de “Pequena Sinfonia de São João”. São mais de 6 min em que Gil e banda conduzem o ouvinte em uma viagem ao Nordeste festivo e brejeiro, iniciando numa moda de viola, avançando para uma marchinha e finalizando com uma quadrilha num misto de rock e sertanejo com a formosa guitarra de Fredera. Linha melódica intrincada, mas deliciosa como uma guloseima junina, cheia de idas e vindas, transições, variações rítmicas e adornos. E que execução da banda! Jazz fusion brasileiríssimo. E para quem desistiu de lançar um álbum novo àquela época, Gil resolveu muito bem consigo mesmo a dicotomia quando diz na letra da música: “Andei também muito goiaba/ E o disco que eu prometi/ Não foi gravado, não”.

Como já havia feito (e voltaria a fazer inúmeras vezes na carreira), Gil versa Caetano com a magia que somente um irmão espiritual conseguiria. Assim como “Beira-Mar”, do seu trabalho de estreia, em 1967, agora é outra balada caetaneana trazida por Gil: “Sim, Foi Você”. Igualmente, cantada e tocada somente a voz e violão e numa sensibilidade elevada. Para fechar, outro número extenso e uma explosão de talento da banda em “Herói Das Estrelas”. Originalmente gravado pelo seu autor, Jorge Mautner – que o assina junto com o parceiro Nelson Jacobina – naquele mesmo ano num disco produzido por Gil, agora o tema recebe uma roupagem jazzística de dar inveja a qualquer compositor (ainda bem que Gil e Mautner são tão amigos). Rubão está simplesmente sensacional no baixo, assim como Tutty, com sua bateria permanentemente inventiva. Aloísio Milanês, igualmente, improvisa brilhantemente de cabo a rabo (de cometa). E o que falar do violão de Gil? Uma batuta tomada de suingue, de brasilidade, de africanidade. Perfeita para finalizar um show/disco impecável.

Quem escuta algumas das obras posteriores de Gil, talvez nem perceba o quanto este disco ao vivo teve influência. Nas duas versões de “Essa é pra Tocar no Rádio” (“Gil e Jorge” e “Refazenda”), é evidente o trato jazz que recebem, assim como “Ela”, “Lamento Sertanejo” (“Refazenda”, 1875), “Babá Alapalá”, “Samba do Avião” (“Refavela”, 1977) e “Minha Nega Na Janela” (“Antologia do Samba-Choro”, 1978), além da clara semelhança do conceito sonoro de todo “Gil e Jorge”. Gil só viraria a chave desta habilidosa condensação sonora quando fecha a trilogia "Re" no pop “Realce”, de 1978. Porém, não sem, meses antes, encerrar aquele ciclo com outro disco ao vivo, gravado no 12º Festival de Jazz de Montreux, na Suíça. A mídia internacional entendia, enfim, que aquilo era, sim, jazz. Gil, assim, voltava à Europa de onde, no início daquela década, mesmo que forçadamente, precisou se refugiar e aprendeu a ser mais universal do que já era. Igual diz a sua “Back in Bahia”: “Como se ter ido fosse necessário para voltar”.

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A caixa “Ensaio Geral”, lançada em 1998, trouxe em “Ao Vivo no Tuca”, além das faixas do vinil oficial, outras cinco inéditas garimpadas em gravações das másters originais do mesmo show e outras de estúdio da época, somente voz e violão. “Dos Pés à Cabeça”, escrita para a voz de Maria Bethânia, foi registrada por ela no espetáculo “A Cena Muda”, de 1974. Já “O Compositor me Disse” foi para a voz de Elis Regina e gravada pela Pimentinha em “Elis”, também de 1974. Proibido pela Censura de apresentar músicas novas de sua própria autoria, Chico Buarque gravaria músicas de outros compositores, entre elas, “Copo Vazio”, de Gil, em “Sinal Fechado”, do mesmo ano. No espírito do álbum original, todas as extras são cantadas pela primeira vez na voz de Gil.

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FAIXAS:
1. “João Sabino” - 11:33
2. “Abra o Olho” - 4:50
3. “Lugar Comum” (Gilberto Gil, João Donato) - 4:50
4. “Menina Goiaba” - 6:50
5. “Sim, Foi Você” (Caetano Veloso) - 5:47
6. “Herói das Estrelas” (Jorge Mautner, Nelson Jacobina) - 6:01
Faixas bônus da versão em CD:
7. “Cibernética” - 7:45
8. “Dos Pés à Cabeça” - 4:27
9. “O Compositor me Disse” - 4:01
10. “Copo Vazio” - 6:39
11. “Dia de Festa” (Rubão Sabino) - 5:05
Todas as composições de autoria de Gilberto Gil, exceto indicadas

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Daniel Rodrigues

quarta-feira, 19 de junho de 2024

Chico Buarque - "As Cidades" (1998)

 

"
O Brasil é capaz de produzir um Chico Buarque. Seu talento, seu rigor, sua elegância, sua discrição são tesouro nosso. Amo-o como amo o mundo, o nosso mundo real e único, com a complicada verdade das pessoas. Tudo está na dicção límpida de Chico."
Caetano Veloso

E Chico chega aos 80. Mais do que somente um aniversário ou uma mera contagem numérica, o fato de ser ele, Chico, a completar oito décadas de vida, diz muito sobre o Brasil. Um Brasil que, em algum momento, contrariando todas as expectativas negativas e detrações, deu certo. Uma nação colonizada, saqueada e profundamente escravagista que, naqueles anos 40 de seu nascimento, urbanizava-se a duras penas. Um mero exportador de matéria-prima, de traços rurais, que cedia ao populismo e perseguia contrários (entre eles, artistas e pretos). Uma sociedade convencida da falácia da Democracia Racial. Uma terra de revoltas e levantes, oprimida ora pela Política do Café com Leite, ora pela Política da Bombacha. Um Brasil violento, homicida, aporofóbico e injusto e de senso militarista, o mesmo que se conduziu ao poder e à barbárie por tantos tempo anos mais tarde.

Mas, no meio disso tudo, nasceu Chico. Caetano, contemporâneo, disse isso com a sapiência que a admiração lhe confere: "Quando o mundo se apaixonar totalmente pelo que ele faz, terá finalmente visto o Brasil". Do mundo, não sei. O que sei é que Chico concentra tudo que há de melhor num pais continental violento e dado à desgraça, mas, talvez por isso, pela necessidade de contrapor o que se é por destino, mágico e incomparável. Chico é isso: mágico e incomparável. Seja nas obras-primas às menores, independente da fase da carreira. Há uma regularidade sublime em sua obra, tanto na literatura, no teatro ou no cinema. 

Na música, sua praia desde a adolescência (e pensar que esse admirador de Niemeyer queria ser arquiteto...), essa regularidade se expressa numa obra tão extensa quanto coesa e profundamente simbólica. Quando se fala em resistência da MPB nos Anos de Chumbo, de quem se lembra? E junto a “Coração de Estudante”, não é sempre “Vai Passar” que vem à memória quando se revive o histórico momento das “Diretas Já!”? Chico está embrenhado em nossa história como nação nestes 80 anos que vivemos junto com ele.

Em todas as épocas, Chico, seja o da “flor da idade” ou “o velho”, traduz em sua música o que há de melhor (ou de pior, traduzido da melhor forma) em nós. “As Cidades”, seu 28º álbum de estúdio, é um dos mais perfeitos exemplos. À época, já consolidado como escritor, o autor passava a cada vez mais rarear seus discos, geralmente intercalados, agora, por algum novo livro. Afora projetos esparsos, “Paratodos”, por exemplo, trabalho musical imediatamente anterior, havia 6 anos de lançamento. Neste ínterim, lançara o segundo romance, o celebrado “Benjamin”, de 1995. Assim, havia, além de grande expectativa para o que traria em um novo álbum de música, o questionamento se ele faria jus à mitologia. “Estará agora dando mais atenção à literatura?” “O homem das canções terá perdido a capacidade de inventar preciosidades como “Mulheres de Atenas” ou “Tatuagem”?” “Chico será ainda Chico?”

Resultado: 100 mil cópias vendidas. Disco de ouro. Ele provava que, sim, ainda era Chico. “As Cidades”, com arranjos e produção de Luiz Claudio Ramos e a marcante capa de Gringo Cardia, abre com a malemolente “Carioca”, uma declaração de pertencimento: "Cidade Maravilhosa, és minha". Samba sincopado marcado no piano, é uma tradução da Rio de Janeiro nada óbvia, pois abrangente, generosa, cronista. “O pregão abre o dia/ Hoje tem baile funk/ Tem samba no Flamengo/ O reverendo/ No palanque lendo/ O Apocalipse”. Música que, aliás, daria exemplo aos trabalhos subsequentes de Chico, com aberturas ou encerramentos dedicadas à sua cidade: “Subúrbio”, em “Carioca” (2006), e “As Caravanas”, de “Caravanas” (2017).

A belíssima “Iracema Voou”, de melodia delicada e letra ainda mais, redimensiona para os tempos modernos o mito indianista de José de Alencar. Que beleza da divisão e do tempo musical dos versos: “Tem saudades do Ceará/ Mas não muita”! O bonito tango rumbado “Sonhos Sonhos São” antecede a igualmente delicada “A Ostra e o Vento”, tema escrito para a trilha sonora do filme homônimo de Walter Lima Jr. de um ano antes. Uma joia. A voz infantil de Branca Lima em duo com Chico transmite a sensibilidade desta canção, capaz de fazer referências visuais ao cenário inóspito do filme, uma ilha de marinheiros apartada do mundo, e àquilo que estes elementos trazem de significado: a ostra, o afloramento da sexualidade feminina; o barco, o destino; o peixe, a fecundidade; o vento, o erotismo e a passagem do tempo.

Belezas e delicadezas são, aliás, uma marca de Chico. “Xote da Navegação”, bem posta logo em seguida de uma música tão marítima quanto sensorial, amplifica esse sensação noutra preciosidade do disco. Parceria com o maior discípulo de Luiz Gonzaga, Dominguinhos, este xote com ares de fado lusitano retraz o Nordeste profundo, denotando, como disse certa vez Tom Zé, “quão barroca é a alma sertaneja”. “Com o nome Paciência/ Vai a minha embarcação/ Pendulando como o tempo/ E tendo igual destinação/ Pra quem anda na barcaça/ Tudo, tudo passa/ Só o tempo não”. É ou não é o que de melhor uma língua viva pode oferecer – no caso, o nosso tão desvalorizado Português? Como com a faixa “Carioca”, “Xote...” serve de espelho para os próximos trabalhos que Chico faria, quando põe, a aproximadamente esta mesma etapa do repertório, o baião “Ode aos Ratos” (do disco “Carioca”), "Tipo um Baião" (de "Chico", 2011) e “Massarandupió” (de “Caravanas”).

Outra parceria histórica é com o violinista e compositor Guinga na ardente “Você, Você”, típica melodia guinguiana, de inusitados intervalos e formações de acordes, vocalises e complexa harmonia. Na letra exímia de Chico, ele manda versos interrogativos como: “Que roupa você veste, que anéis?/ Por quem você se troca?/ Que bicho feroz são seus cabelos/ Que à noite você solta?”

Se estamos falando de obras-primas, então vem outra: “Assentamento”. Extraída do projeto “Terra”, produzido por Chico juntamente com o fotógrafo Sebastião Salgado, em 1997, é certamente uma das mais preciosas canções de todo o cancioneiro buarquiano. Resgatando a atmosfera de músicas antigas suas como “Fantasia” e “O Cio da Terra”, que carregam a temática das lutas fundiárias no Brasil, bem como a literatura de Guimarães Rosa, de quem declama os versos iniciais (“Quando eu morrer, que me enterrem na beira do chapadão/ contente com minha terra/ cansado de tanta guerra/ crescido de coração”), “Assentamento” é um canto político e de esperança ao Movimento Sem-Terra. “Vamos ver a campina quando flora/ A piracema, rios contravim/ Binho, Bel, Bia, Quim/ Vamos embora”. A luta continua, companheiros.

vídeo de "Assentamento" do DVD "As Cidades Ao Vivo"

Dois belos sambas: “Injuriado”, em dueto com a irmã e referência no meio dos bambas Cristina Buarque, e outra antiga: “Aquela Mulher”, do repertório do filme “Ópera do Malandro”, de 1985, mas que, cantada à época pelo ator Edson Celulari e, logo depois, por Paulinho da Viola, nunca havia sido registrada na voz do seu próprio criador.

Mais uma fineza de música, “Cecília”, parceria com Ramos, antecede o final triunfal no chão onde Chico pisa com tanta emoção: a Estação Primeira de Mangueira. “Chão de Esmeraldas”, criada por ele e Hermínio Belo de Carvalho para o então recente projeto “Chico Buarque da Mangueira”, a música parece não só ter expressado o carinho de Chico pela escola como, pé quente em terreno brilhante, antevisto a vitória da Verde e Rosa após 11 anos no Carnaval de 1998 com Chico como tema.

Motivos para desacreditar no Brasil nestes ¾ de século não são poucos. Suicídio de Getúlio, Serra Pelada, Ditadura, facções criminosas, hiperinflação, RioCentro, roubo da taça, colarinho branco, Collor, Eldorado dos Carajás, Anões do Orçamento, Carandiru, Golpe de Dilma, Lava-Jato, Extrema-Direita, 8 de Janeiro... E o que falar de Marielle, Edson Luiz, Amarildo, Mãe Bernadete, Herzog, Stuart Angel, Chico Mendes?... Não é fácil ser brasileiro.

Mas Chico é sempre Chico. É sempre uma qualidade acima da média, a qualidade potencial de um povo. Por causa dele, “todas as nossas fantasias de autodesqualificação se anulam”, diz Caetano. Chico é a Seleção de 70, as formas de Brasília, o oxigênio da Mata Atlântica, a batida de João, o traço de Tarsila, a sintaxe do Português, o baião de Gonzaga, o batuque do terreiro, a cintura da mulata. Chico materializa aquilo que podemos ser. E como é bom ser cidadão de um povo que tem como compatriota Francisco Buarque de Hollanda! Ou pode chamá-lo somente pelo apelido, que ele é gente como a gente. Essa gente.

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FAIXAS:
1. "Carioca" - 2:43
2. "Iracema Voou" - 2:58
3. "Sonhos Sonhos São" - 3:15
4. "A Ostra E O Vento" - 3:29
5. "Xote De Navegação" (Chico Buarque, Dominguinhos) - 2:30
6. "Você, Você" (Chico Buarque, Guinga) - 2:52
7. "Assentamento" - 3:43
8. "Injuriado" - 2:29
9. "Aquela Mulher" - 2:22
10. "Cecília" (Chico Buarque, Luiz Cláudio Ramos) - 4:03
11. "Chão De Esmeraldas" (Chico Buarque, Hermínio Bello de Carvalho) - 4:03
Todas as canções de autoria de Chico Buarque, exceto indicadas

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Daniel Rodrigues

segunda-feira, 27 de maio de 2024

Philip Glass - "Symphony Nº 4 'Heroes'” ou "'Heroes' Symphony - by Philip Glass from the Music of David Bowie & Brian Eno” (1997)



As várias capas e edições de "Heroes" pelos selos
Point Music, Orange Mountain, Universal e Decca
  
“A influência contínua destas obras, ‘Low’ e ‘Heroes’, garantiu a sua estatura como parte dos novos ‘clássicos’ do nosso tempo. Assim como os compositores do passado recorreram à música do seu tempo para criar novas obras, o trabalho de Bowie e Eno tornou-se uma inspiração e ponto de partida para uma série de sinfonias de minha autoria”.
 
Philip Glass

Chegados os anos 90, Philip Glass já era uma lenda digna da idolatria. Ligado à música de vanguarda da Costa Leste norte-americana, pela qual surgiu nos anos 60, o autor das “Glassworks” e de peças revolucionárias como “Music in Twelve Parts”, “Koyaanisqatsi” e "Metamorphosis" já havia ultrapassado a linha entre erudito e popular fazia muito tempo, desde suas trilhas sonoras marcantes para o cinema quanto por sua aproximação com o rock e a world music. Porém, afeito a desafios, Glass deu-se conta de um gap em sua já extensa obra àquela época: por incrível que parecesse, faltava-lhe ainda a composição de uma sinfonia. Sim, Glass havia escrito óperas, concertos, corais, peças para câmara e teatro, prelúdios, partitas, balês, sonatas, trilhas sonoras e toda categoria musical que se possa imaginar. Menos sinfonia, justamente o gênero que tanto consagraria os grandes nomes da música clássica, aquele pelo qual os fariam mundialmente conhecidos, como Beethoven (5ª e ), Mahler (Trágica), Mozart (41ª ou Júpiter), Berlioz (Fantástica) e Shostakovich (8ª).

Glass precisava preencher essa lacuna. No entanto, dada a importância deste tipo de obra para um autor do gabarito dele, entendia que precisava ser algo especial. O “coelho da cartola” foi, mais uma vez, a versatilidade e o ecletismo: usar o rock como base para isso. Igual ao que compositores clássicos antigos faziam ao se referenciarem na obra de seus ídolos, só que de uma forma bem inovadora. Sobre temas do clássico disco “Low”, de David Bowie, de 1977, gravado na Alemanha e cuja batuta de Brian Eno mereceu-lhe créditos de coautoria, Glass elaborou sua primeira sinfonia em 1992. Um sucesso de crítica e, principalmente, junto aos próprios Bowie e Eno, que adoraram a homenagem, O mais legal da rica versão de Glass para as faixas do Lado B de “Low”, as de caráter mais ambient e avant-garde do álbum, foi que ele não criou uma ópera-rock, dando somente um teor erudito a sonoridades pop mas, sim, extraindo o que havia de “erudito” de cada música, de cada detalhe, fosse na instrumentalização, no redesenho sonoro ou mesmo na escolha de quais faixas usar.

Caminho aberto para as sinfonias, e Glass, então, não parou mais. Escreveu, nos anos subsequentes, as de nº 2 (1994) e nº 3 (1995) - formando, atualmente, 14 peças neste celebrado formato. Porém, a talvez melhor de sua carreira seja a que veio logo a seguir, em 1997: a “Sinfonia nº 4” ou simplesmente “Heroes”. Animado com a primeira experiência sinfônica e encorajado pelos próprios autores, Glass repete a dose de se inspirar noutro álbum célebre de Bowie/Eno: “Heroes”, de 1978, que forma, junto com "Low" e “Lodger”, de 1979, a famosa trilogia alemã que redefiniu o futuro da música pop com sua ousada combinação de influências da world music, da vanguarda experimental e do rock.

A experiência das sinfonias anteriores - bem como dos trabalhos com grande orquestra, como as óperas - foi, contudo, fundamental para que Glass chegasse à sua quarta empreitada neste tipo de obra mais equipado musical, formal e esteticamente. Glass sabia exatamente como fruir os sons e arranjos das canções originais para criar uma peça ainda mais singular. Ele utiliza flautins, clarinetes baixos, metais (trompete, trombone, trombone baixo, trompa e tuba), percussões (tambor lateral, tambor tenor, bumbo, pandeiro, pratos, triângulo, vibrafone, tam-tam, castanholas e carrilhão), harpa, celeste e cordas (violino, viola, violoncelo e contrabaixo).

O melhor exemplo é o tema-título, o "1º Movimento". Quem escuta os acordes orquestrados de Glass dificilmente identifica a música de Bowie, aquele glitter rock potente e dramático. Aliás, talvez a única característica mais visível que ele tenha mantido nos quase 10 minutos que se transcorrem (em detrimento dos aproximadamente 3min30' da versão comercial de Bowie ou, no melhor dos casos, dos pouco mais de 6min da versão estendida) seja a dramaticidade, tendo em vista que a transforma num adagio instrumental cheio de idas e vindas, volumes e variações de intensidade, Mas, principalmente: o veterano minimalista deu uma personalidade única à música, recriando-a. O entendimento de Glass sobre o que ele ouve em “Heroes” é tão singular quanto genial, coisa de quem tem ouvido absoluto ou uma outra percepção sobre as coisas: uma audição além daquilo que os reles mortais alcançam. 

A “Heroes” de Glass, por sinal, é mais colorida do que a séria expressividade dada pelo autor da canção. E não se ceda à tentação de cogitar que a “Heroes” sinfônica é meramente uma orquestração do tema que a originou, como se fosse possível encaixar uma sobre a outra. É, sim, uma outra “Heroes” - ou melhor, a mesma, só que sentida de outra forma. E embora as dessemelhança, por incrível que pareça, há ainda um fio de identificação, como que a "alma" da criação tivesse se mantido. A se pensar em outros trabalhos da música erudita dos anos 90, década pouco densa em obras significativas nesse campo em relação a suas antecessoras, “Heroes, Moviment I” é comparável a outras três marcantes obras: “Kristallnacht”, de John Zorn, "Food Gathering in Post-Industrial America, 1992", de Frank Zappa, e “Blu”, de Ryuichi Sakamoto.

Na sequência, “Abdulmajid”, de um arranjo primoroso, pega emprestada com suavidade a atmosfera árabe deste b-side de “Heroes”, uma world music bastante eletrônica em sua concepção primal, próximo ao som de Jon Hassell e Terry Riley. Ela ganha, agora, um conjunto de cordas em variações de 5 e 7 tempos, castanholas e uma percussão cintilante de sinos, esta última, executora do “riff”. Assim como o movimento inicial, este andante é prova da tarefa nada óbvia a que Glass se propôs, uma vez que seria, por exemplo, muito mais fácil arranjar para orquestra o tema de feições orientais (e já instrumental) “Moss Garden”, uma das faixas de “Heroes” de Bowie que não aproveitou. Já “Sense of Doubt”, originalmente instrumental, é provavelmente a que menos trabalho lhe deu em adaptar, visto que sua estrutura melódica forjada nos sintetizadores já intui o som da orquestra.

Para “Sons of the Silent Age”, mais uma das originalmente cantadas assim como “Heroes”, Glass suprime as vozes e dá a roupagem mais clássica de todas do repertório. Elegante, explora bastante os sopros doces em contraste com os registros graves de tuba e trombone baixo. Pode-se dizer um balê glassiano, que traz as repetições circulares de cordas e sopros, as quais dão a sensação hipnótica peculiar de sua música, mas ao mesmo tempo bastante renascentista, fazendo remeter a outros mestres formadores de sua musicalidade como Bach e Mozart.

Outra que Glass consegue unir a originalidade de seu olhar sobre a obra alheia e o frescor daquilo em que se baseia é “Neuköln”, a música que os ingleses Bowie e Eno compuseram em homenagem a um dos bairros de Berlim no período em que se refugiaram na capital alemã para produzir “Low/Heroes/Lodger”. Nesta, o compositor norte-americano se esbalda sobre a ideia-base, a de uma peça eletroacústica que conjuga sintetizadores, guitarras e frases arábicas de um áspero sax alto tirada do atonalismo de Cage e La Monte Young, admirados por Eno. Sabedor de todos estes caminhos como poucos, tanto dos antecessores quanto dos contemporâneos, Glass reúne as pulsões sonoras distintas e promove uma reunião de tempos e intenções, redimensionando a própria música. Ele não deixa de aproveitar nenhuma nota, nenhum som para atribuir a “Movement V - Neuköln” um caráter particularmente épico. 

Encerrando, outra na qual Glass mostra o quanto suas antenas são capazes de sintetizar mundos. Homenagem de Bowie e Eno aos pais do pop eletrônico, a banda alemã Kraftwerk, ‘V2 Schneider” (referência ao sobrenome de um dos fundadores e principais compositores dos “homens-máquina”, Florian Schneider) ganha uma retextura de Glass à sonoridade high-tech em um corpo sonoro tradicional e secular. Conforme diz o crítico musical especializado em música clássica Richard Whitehouse, “V2 Schneider” abre com movimentos rítmicos animados em metais e percussão, cordas e sopros trocando temas à medida que a música ganha em incisividade. “O movimento rítmico solidifica-se num ostinato pulsante, ao longo do qual a atividade ganha intensidade textural e dinâmica, construindo um pico de que é encimado pelo vigoroso acorde de encerramento, arredondando assim toda a obra com um efeito decisivo”, completa. Ao traduzir Bowie/Eno, Glass retraduzia o kratrock alemão presenciado in loco pela dupla britânica e, por tabela, todos os que inventaram a música eletrônica, como o “germaníssimo” Karlheinz Stockhausen e a turma da Música Nova de Darmstadt dos anos 50.

Em 1971, dois jovens músicos de aparência kitsch interessados em arte para além do rock assistiam empolgados à estreia em Londres de “Music in Changing Parts”, obra da primeira fase de Glass. Esses jovens eram David Jones e Brian de La Salle Eno, já artistas consagrados, mas nem por isso incapazes de admirar um de seus heróis na música. Tamanha reverência parece ter, de alguma forma, influído para que esse “herói” concretizasse, mesmo que apenas mais de três décadas depois, a autoexigência de compor sinfonias tendo como objeto exatamente aqueles dois rapazes fãs de tanto tempo. Sucessor de “Low” na fase alemã de Bowie, “Heroes” fazia-se, agora sinfônico, igualmente sucessor, mas na carreira de Glass - que ainda concluiria a veneração à trilogia berlinense com “Symphony Nº 12  - Lodger”, de 2022. Criadores e criaturas se intercambiam e se referenciam mutuamente. Como dizem os versos da música que dá nome a ambas as obras, a de Bowie/Eno e a de Glass, “Nós podemos ser heróis”. Todos são.

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Como ocorre com obras do catálogo ligado à música clássica, “Heroes Symphony” ganhou mais de uma edição. Em pelo menos duas delas, a peça vem acompanhada no CD de outras duas também orquestrais: o "Concerto para Violino", de 1987 (edição Deutsche Grammophon/Decca, de 2014), e outra em conjunto com “Low Symphony” (Universal, 2003). 

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FAIXAS:
1. “Movement I - Heroes” (David Bowie/Brian Eno) - 9:28
2. “Movement II - Abdulmajid” (Bowie/Eno) - 9:24
3. “Movement III - Sense of Doubt” (Bowie) - 7:29
4. “Movement IV - Sons of the Silent Age” (Bowie) - 8:37
5. “Movement V - Neukoln” (Bowie/Eno) - 7:58
6. “Movement VI - V2 Schneider” (Bowie) - 7:17

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OUÇA O DISCO:


Daniel Rodrigues

quinta-feira, 16 de maio de 2024

Danilo Caymmi - "Cheiro Verde" (1977)

 

“Você gravava, vendia, corria atrás, ia pra rua. Fizemos três mil cópias e conseguimos vender todas. Mas agora, nesta era digital, esse disco ficou parado. Ele foi se valorizando com o tempo, o que é muito gratificante”. 
Danilo Caymmi

Danilo é o menos badalado entre os Caymmi. No que diz respeito a seu pai, Dorival, poucos se equiparam ao gênio deste Buda Nagô, um dos maiores nomes da música brasileira de todos os tempos. Seu irmão mais velho, Dori, gabaritado maestro de reconhecimento internacional, trabalhou com alguns dos mais prestigiados músicos do seu tempo, como os conterrâneos Tom Jobim, João Gilberto e Elis Regina e os estrangeiros Dionne Warwick, Quincy Jones e Toots Thielemans. Nana, a irmã, é nome inconteste entre as maiores vozes da MPB. Até mesmo a filha Alice, cultuada pelo público mais jovem, ganha mais holofotes do que ele. A figura modesta talvez explique. A mãe Stella Maris, mineira, sentenciou certa vez que, entre os filhos, Nana cantava, Dori arranjava e Danilo tocava flauta. Porém, Danilo é, certamente, muito mais do que uma retaguarda, visto que é o mais catalisador da família em termos musicais. Caçula, talvez justamente por ter vindo por último ele consiga recolher características de cada um: de Dorival, traz nas veias a sofisticação das canções praieiras; do irmão mais velho, a versatilidade e a musicalidade profunda; de Nana, o timbre inconfundível dos Caymmi e o apuro vocal; da filha, a modernidade musical intercambiada desde que ela estava no berço.

“Cheiro Verde”, seu álbum de estreia, de 1977, é um exemplo claro desta multiplicidade simbiótica de Danilo. Cantor, flautista, compositor e violonista, traz em sua música uma impressionante diversidade de estilos, que vão da bossa nova ao baião, passando pelo samba jazz e a soul. Com um time de grandes músicos, tal Cristóvão Bastos, Maurício Maestro e Fernando Laporace, o disco traz a mais alta qualidade melodia e harmonia quanto letrística e instrumental, ao nível do "alto escalão" da MPB, como Tom, Arthur Verocai, Ivan Lins, Waltel Branco, Antonio Adolfo, Tânia Maria, Edu Lobo. Ao nível dos Caymmi.

Afinal, Danilo, mesmo debutando como artista solo, não era nenhum novato. Flautista profissional desde os 16, o futuro arquiteto que abandonou a faculdade para seguir a vida musical já em 1968 participava do II Festival Internacional da Canção Popular. Levou o terceiro lugar com a clássica “Andança”, parceria com Edmundo Souto e Paulinho Tapajós, defendida por Beth Carvalho. No ano seguinte, venceu o Festival de Juiz de Fora com a canção “Casaco Marrom”, parceria com Renato Corrêa e Gutemberg Guarabyra, interpretada por Evinha. Bastante próximo dos colegas mineiros, de quem tem forte influência musical, já havia integrado a banda de Tom, Joyce, Milton Nascimento, Som Imaginário, Martinho da Vila, Quarteto em Cy, entre outros, além de assinar, juntamente com Beto Guedes, Novelli e Toninho Horta, um dos melhores discos de toda a década de 70.

Em “Cheiro…”, portanto, Danilo chegava pronto como que perfumado para uma festa. A primeira nota do frasco, “Mineiro”, é exemplar nisso: bossa nova com dissonâncias e harmonia típicas dos autores de grande domínio composicional. A letra de Ronaldo Bastos é uma homenagem de dois cariocas aos amigos do Clube da Esquina: “Vou por aí levando um coração mineiro, pois é”. Ainda, as participações especiais de Airto Moreira na bateria, Helvius Vilela no piano e Gegê na percussão. Com Bastos, também assina “Codajás”, que Nana gravara um ano antes. De tom ao mesmo tempo blueseiro e sambístico, traz o belo canto de Danilo soltando agudos difíceis a qualquer cantor, ainda mais a alguém de uma família cujo timbre tende sempre ao barítono. Fora isso, Danilo a aperfeiçoa ainda mais com um jazzístico solo de flauta, que encerra o número.

Com a então esposa Ana Terra, excelente musicista carioca e responsável também pela produção, compõe maior parte do repertório, como o samba “Pé sem Cabeça”, típica música do período da ditadura no Brasil - gravada posteriormente, claro, pela combativa Elis. Com cara de tema romântico, na verdade, denuncia o regime e os horrores cometidos contra os opositores: “Você me fez sofrer/ Ninguém me faz sofrer assim/ O que era tanta beleza num pé sem cabeça você transformou”. É dos dois também a brejeira e lúdica “Juliana”, de acordes jobinianos, e a subsequente “Aperta Outro”, samba cheio de suingue com toque do trombone de Edson Maciel e o baixo do parceiro Novelli. 

Ainda mais gingada é “Racha Cartola”, ode à boemia mas, igualmente, à preocupação do boêmio quando volta para casa. “Como explicar?”, pergunta-se lembrando que terá de encarar a esposa esperando-o irritada. A sincopada “Botina”, dele e de outro mineiro, Nelson Ângelo, traz novamente a atmosfera de Minas (“Velha porteira, cidade interior/ Uma voz de lavanderia, um batuque e um sabor”), referenciando, mais uma vez - além do próprio coautor -, à turma liderada por Milton Nascimento. Aliás, o gênio de Três Pontas empresta sua voz inconfundível em “Lua Do Meio-Dia”, outra com Ana e das mais belas e engenhosas melodias do disco, com sua estrutura dissonante e complexas divisões.

Em época de Abertura Política, mas de manutenção da repressão, Danilo ousa e encaminha o final do álbum com mais um tema bastante provocativo: “Vivo ou Morto”. Dele e de João Carlos Pádua, não tem como não relacionar os versos deste baião tristonho às mortes de presos políticos promovidas nos Anos de Chumbo: “Debaixo das 9 pedras/ Ele vive muito bem/… Ele respira e fala pelas bocas do inferno/…Debaixo das 9 bocas/ Ele nem mesmo se cala/ Debaixo das 9 botas/ Ele dá voltas na sala”. Para encerrar mesmo, então, a sinestésica faixa-título, quinta dele com Ana entre as 10 faixas de todo o trabalho. E que bela canção! Com a atmosfera da música “ecológica” que Tom inauguraria no início dos anos 70, quando começou a se voltar às questões do Planeta, Danilo parecia antever sua entrada anos depois, em 1984, na Banda Nova, conjunto que passaria a acompanhar o Maestro Soberano até o final de sua vida.

Desde então, Danilo seguiria intercalando uma afirmada carreira solo com participações como instrumentista em trabalhos de outros, reuniões com a família no palco e gravações e shows na Banda Nova. Lançou 10 álbuns como front man, alcançando, em 1990, grande sucesso com “O Bem e o Mal”, tema da minissérie “Riacho Doce”, da Globo. No entanto, “Cheiro Verde” permanece um marco na sua obra não apenas por ser o primeiro ato de um músico que soube aproveitar seu gene privilegiado, mas pela qualidade indiscutível que guarda até hoje. Tanto é que, lançado independentemente em 1977, teve, em 2002, sua tiragem licenciada na Inglaterra, tornando-se cult entre os jovens na Europa. Somente no ano passado, teve relançamento no Brasil para a alegria dos fãs e apreciadores. Pelo visto, esse aroma inconfundível e encantador não se dissipou mesmo tantos anos depois.

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FAIXAS:
1. “Mineiro” (Danilo Caymmi/ Ronaldo Bastos) - 3:25
2. “Pé Sem Cabeça” (Caymmi/ Ana Terra) - 2:45
3. “Codajás” (Caymmi/ Bastos) - 3:05
4. “Juliana” (Caymmi/ Terra) - 2:44
5. “Aperta Outro” (Caymmi/ Terra) - 2:54
6. “Racha Cartola” (Caymmi/ João Carlos Pádua) - 2:55
7. “Botina” (Caymmi/ Nelson Angelo) - 2:37
8. “Lua Do Meio-Dia” (Caymmi/ Terra) - 2:16
9. “Vivo Ou Morto” (Caymmi/ Pádua) - 3:07
10. “Cheiro Verde” (Caymmi/ Terra) - 4:15

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OUÇA O DISCO:

Danilo Caymmi - "Cheiro Verde"


Daniel Rodrigues


segunda-feira, 29 de janeiro de 2024

Ivan Lins - "Modo Livre" (1974)

 

"Mas elas [as músicas] começaram a ficar mais políticas a partir de 1973, por aí, quando a gente sentiu mesmo a barra pesar com o Médici, e aí elas realmente assumiram o aspecto político. Até por uma questão pessoal mesmo, eu tive problemas, tive que fazer terapia, me revoltei contra a família, contra o governo, contra TV Globo e editoras, gravadoras." 
Ivan Lins

Há motivos para que a grandeza de Ivan Lins não seja ainda totalmente reconhecida ainda hoje. Isso remonta aos tempos da Ditadura Militar no Brasil, período não só crucial para o artista como aquele em que este melhor desenvolveu a sua música. O pivô desse dissabor? A esquerda. Assim como calhou recair sobre as cabeças de gente como Elis Regina e Wilson Simonal julgamentos pesados de que estariam favorecendo os milicos em razão de episódios até hoje mal explicados, com Ivan Lins a patrulha política também não perdoou. Nem a convivência constante com "malditos" como Gonzaguinha e Aldir Blanc, jovens universitários dos tempos da faculdade de Engenharia Química na Federal do Rio de Janeiro, aliviaram-lhe a pecha de alienado ou entreguista quando sua ufanista "Meu Amor É Meu País" conquistara o segundo lugar no Festival Internacional da Canção, em 1970 - música que integraria seu disco de estreia, "Agora", de um ano depois. 

Para piorar: a mesma música foi adotada pela Varig, àquela época um orgulho nacional do mesmo patamar que Petrobras, como tema oficial dos voos internacionais da companhia. Mas tudo que é ruim pode piorar. A coisa azedava de vez quando se olhava para a genealogia de Ivan, que era filho de Geraldo Lins. Almirante Geraldo Lins. Se havia ranço, isso fazia com que os pelos dos detratores se ouriçassem.

Acontece que, assim como vaiaram a velada canção de exílio "Sabiá" no FIC de 1968 por esperarem de Chico Buarque, um de seus autores junto com Tom Jobim, uma canção tirada direto do Livro Vermelho de Mao, "Meu Amor É Meu País" também passou longe de ser compreendida. Nacionalista? Sim, mas com certa melancolia, como que captando a maravilha de pertencer àquela nação recentemente tricampeã mundial, mas de uma sociedade profundamente dividida e infeliz. Metáforas como: "Não importa qual seja a dor/ Nem as pedras que eu vou pisar" soaram deveras fracas para demonstrar que aquilo não se tratava de propaganda para o governo linha-dura de Médici e, sim, um ensaio para os inúmeros versos contundentes contra a Ditadura que Ivan musicaria pouco tempo dali. 

O “cancelamento” por parte da esquerda, compreensível dado o contexto sufocante da Ditadura, funcionou. Mesmo com o sucesso de sua de "Madalena" na voz de Elis, parceria com Ronaldo Monteiro de Souza, em 1971, Ivan precisou, naquele momento, recolher-se para se reinventar. "Quem Sou Eu?" perguntava a si mesmo no disco de 1972. O questionamento veio com ação: rompeu o contrato com a gravadora Phillips e assinou com a RCA Victor, brigou com a Globo, onde apresentou por um tempo com Elis o programa Som Livre Exportação, e se desentendeu até em casa. Chutou o (necessário) balde. A auto-resposta veio dois anos depois e, parafraseando outro título de álbum seu, acionando o "Modo Livre". Como uma autoproclamação. Liberto tanto da esquerda quanto da direita, Ivan encontra na rebuscada musicalidade, no elaborado arranjo de Arthur Verocai e nas letras políticas o caminho que era seu. 

Ivan achou, depois do autoexílio existencial, o discurso e a forma de dizê-lo em letra e música, formando aquele que é certamente o mais corajoso e desafiador cancioneiro de toda a MPB a favor da liberdade de seu país, liberdade que havia sido sequestrada há exatamente 10 anos desde o Golpe Militar de 1964. Ninguém na música popular brasileira ousou dizer tantas verdades ao regime e de forma tão incisiva, seja em palavras tristes e desesperadas, seja em figuras de linguagem repletas de duplos sentidos que, às vezes, de tão inteligentemente invocadas, pareciam literais. Talvez por isso passavam ilesas do carimbo da censura. "Nunca tive problemas com a censura, sou um privilegiado. Só lamento que ela ainda exista", disse em entrevista à revista da USP em 1978. Enquanto Chico, o amigo Gonzaguinha, Milton Nascimento e até Odair José enfrentavam dificuldades com o SCDP, Ivan aproveitava a descendência familiar para lançar mais do que um disco, mas um projeto modulado pela liberdade de expressão que duraria anos. 

Parceiro de outras canções e autor de outros gritos contra a Ditadura (como “Pesadelo”, “Minha Missão” e “Aviso aos Navegantes”), Paulo César Pinheiro assina com Ivan o samba de abertura: "Rei do Carnaval". Óbvio que o “rei” a que se referiam não era o momo e que o “carnaval” se revestia de cinismo para denunciar o cenário nada festivo de então. “O rei chegou/ Mas pra nosso desespero/ O rei mandou/ E era a voz do rei guerreiro”. Que começo! Um marco da “virada de chave” na vida e na obra de Ivan. Até mesmo o jeito de cantar é influenciado pelo “projeto Modo Livre”, uma vez que havia ficado pra trás a impostação da voz dos primeiros trabalhos para um canto mais natural e, sendo redundante, livre. Ivan percebera que sua voz afinada e de timbre doce estava menos para Toni Tornado e mais para Caetano Veloso.

Estava dada a mensagem inicial: Ivan não ia se calar. Havia decidido que diria o que precisava. Tanto é que, na sequência, emenda com um clássico do seu repertório, sucesso um ano antes na voz da cantora e compositora Claudya: “Deixa eu Dizer”. Bastante conhecida do público de hoje por conta do sample de Marcelo D2 para a sua “Desabafo”, de 2008, é outra parceria com Ronaldo Monteiro das seis que têm no disco. Quem não conhece os versos: “Deixa, deixa, deixa/ Eu dizer o que penso dessa vida/ Preciso demais desabafar”? Porém, na voz do seu autor, este samba-canção ganha outra potência, pois carregada de teor político. “E você não tem direito/ De calar a minha boca/ Afinal me dói no peito/ Uma dor que não é pouca”. Que coragem de dizer isso em plenos Anos de Chumbo!

Não somente nas letras, mas a própria sonoridade de Ivan se encorpa a partir de “Modo Livre”. Filho musical da bossa-nova, pianista harmônico como seu ídolo Tom, Ivan, experenciado na música desde a adolescência, une com talento único o samba, o jazz e a soul music, sempre com um refinamento próprio dos grandes. Tanto que sua música encontra semelhanças com a da turma do Clube da Esquina, em especial a de Toninho Horta e de seu outro ídolo, Milton. Com essa amplitude de referências Ivan musica a brejeira “Avarandado”, de Caetano, dando cores mais cintilantes à bossa-nova quase silenciosa que João Gilberto fizera no seu disco de um ano antes. 

“Tens no meu sorriso tua agonia.” Com uma sentença forte como esta, Ivan inicia "Tens (Calmaria)", aviso aos militares que eles podem ter “no quarto um cão vigia” e a “valentia”, mas que, resistente, “só na minha morte então terás tua calmaria”. Com o apoio luxuoso da MPB-4 a partir da segunda metade, esta fantasia se torna um samba-canção, cadenciado no ritmo de um bumbo triste. E isso, como diz a música seguinte, “Não tem Perdão”. Clara referência às torturas promovidas pela Ditadura, esta bossa-nova espelha a arte da capa do disco, em que o músico está com o corpo inteiramente submerso na água e só com a cabeça para fora e um olhar de soslaio que parece humilhado. “Não vou deixar/ Nem você nem ninguém/ Me envolver/ Me arrastar e me rasgar/ E espalhar/ Meus retalhos pelo mundo afora”. Quanto esforço de Ronaldo Monteiro para dar duplo sentido e fazer com que esses versos passem a ideia de se tratar apenas de um amor dissolvido.

“Modo Livre” representa ainda outro marco na carreira de Ivan e na história da música popular brasileira moderna, que é o seu encontro com Vitor Martins. Letrista da maioria de suas composições e com quem escreveria diversos clássicos da MPB a partir de então, como “Aos Nossos Filhos” (1978), “Começar de Novo” (1979) e “Novo Tempo” (1980), é deles, no disco, "Abre Alas". E nada melhor que começar uma parceria com um sucesso. Regravada por diversos artistas nacionais e internacionais, entre eles Sarah Vaughan, George Robert, Quarteto em Cy e Tânia Maria, este samba tem na força do refrão (“Abre alas pra minha folia/ Já está chegando a hora”) sua marca. Porém, nem por isso deixa de, assim como o repertório todo, cutucar os repressores: “A vida não era assim, não era assim/ Não corra o risco de ficar alegre/ Pra nunca chorar”.

O ritmo é de bossa-nova, mas a melodia vocal alta contrasta com a harmonia refinada, provocando uma verdadeira dissonância. Também pudera para uma música que se chama “Chega”. Novamente recorrendo a um suposto caso de amor para denunciar os crimes de tortura, Ivan canta versos como: “Chega/ Você não vê que eu estou sofrendo?/ Você não vê que eu já estou sabendo?/ Até onde vai esse seu desejo”. E continua de forma autoavaliativa, que responde tanto aos militares quanto ao Partidão: “Chega, preciso estar com pessoas/ Falar coisas ruins e coisas boas/ Botar meu coração na mesa/ As pessoas tem que gostar de mim/ Como eu sou e não como você quer que eu seja”.

Com lindo arranjo de Verocai, “Espero”, a qual contém na letra o termo que dá título ao disco (“E mergulhando em meu peito/ Um modo livre que foi desfeito/ Com o tempo”) não dá respiro no grito libertário e denunciativo a que o artista se propôs. Canta um tempo que aguarda ansiosamente que chegue, ou seja: que o pesadelo da Ditadura acabe. O fantástico samba-jazz “Essa Maré” (“Eu que queria e só queria/ Ser feliz, feliz um pouco/ E já não posso mais”) tem na flauta do trio Celso, Copinha e Jorginho um alívio para tanto padecer. O que não alivia é a jobiniana “Desejo”, de pura melancolia: ”Quando você/ Por ai me encontrar/ Esqueça do fim, venha/ E faça de mim desejo/ Seus risos, seus ais/ Nas noites, no cais”.

Ivan encerra o álbum como começou: com metáforas. Desta vez, ele pega sambas antigos e os ressignifica, trazendo-os para a realidade dura de então. Caso de “General da Banda”, clássico na voz de Blecaute, em 1949, “A Fonte Secou”, sucesso com Monsueto em 1954, e “Recordar”, esta, gravada por Gilberto Mendes em 1955. Versos como “Eu não sou água/ Pra me tratares assim”, ou “Chegou o general da banda”, aparamentes inocentes, ganham novos sentidos na sua voz. Ivan não precisa nem recorrer às próprias palavras para dizer o que estava implícito. 

Seja por desatenção ou ignorância dos censores, a música fortemente denunciadora de Ivan não se limitou apenas a este disco, mas a uma série irrepreensível produzida ao longo de 6 anos. Não se estranhe que "Chama Acesa", de 1976, "Somos Todos Iguais Nesta Noite", 1977, "Nos Dias De Hoje", 1978, e "A Noite", 1979, apareçam aqui como álbuns fundamentais à medida que, como “Modo Livre” em 2024, completem 50 anos de lançamento. Afinal, são obras marcantes em proposta e qualidade de um dos maiores nomes da música brasileira, reconhecido internacionalmente pela crítica e por gente do calibre de Ella Fitzgerald, George Benson, Ed Motta, Quincy Jones e Barbra Streisend, mesmo alguns que (ainda) lhe torçam o nariz em terras tupiniquins. 

O tempo se passou e Ivan, como não poderia deixar de acontecer, distendeu a corda a partir dos anos 80 de Diretas Já!. A tal "chama", que intitula o disco sucessor de "Modo Livre", havia, se não apagado, naturalmente diminuído. Porém, o que ele fez naquela segunda metade de anos 70, um dos períodos mais sombrios para o Brasil enquanto nação, está gravado na história da música brasileira como um ato guerrilheiro. Foi como se o artista, "entre espadas e rodas de fogo”, pegasse em armas e tomasse para si aquela batalha em nome do povo, de seus irmãos, a qual tivera em "Modo Livre" o primeiro tiro disparado. 

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FAIXAS:
1. "Rei do Carnaval" (Ivan Lins, Paulo César Pinheiro) - 2:31
2. "Deixa Eu Dizer" (Ivan Lins, Ronaldo Monteiro) - 3:12
3. "Avarandado" (Caetano Veloso) - 3:15
4. "Tens (Calmaria)" (Ivan Lins, Ronaldo Monteiro) - 3:03
5. "Não Tem Perdão" (Ivan Lins, Ronaldo Monteiro) - 3:45
6. "Abre Alas" (Ivan Lins, Vitor Martins) - 3:12
7. "Chega" (Ivan Lins) - 3:27
8. "Espero" (Ivan Lins, Ronaldo Monteiro) - 2:23
9. "Essa Maré" (Ivan Lins, Ronaldo Monteiro) - 2:14
10. "Desejo" (Ivan Lins, Ronaldo Monteiro) - 2:19
11. Potpourri - 2:32
11a. "General Da Banda" (José Alcides, Sátiro de Melo, Tancredo Silva)
11b. "A Fonte Secou” (Marcléo, Monsueto Menezes, Tufic Lauar)
11c. "Recordar" (Adolfo Macedo, Aldacir Louro, Aluisio Marins)

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OUÇA O DISCO:
Ivan Lins - "Modo Livre"


Daniel Rodrigues