E era. Devidamente selada pelo estilo marcante de tocar de
Shorter – capaz de ir do mais feroz grito dissonante à absoluta leveza lírica
–, esta sequência mágica de obras resulta, em 1966, em “Adam’s Apple”, seu 10º
álbum solo e o 7º pela Blue Note. Nesta obra, o band leader está acompanhado de
um trio afiadíssimo e com o qual tinha total entrosamento: Reggie Workman,
na bateria; Joe Chambers, ao baixo; e o fiel escudeiro Herbie Hancock, ao
piano. Experimentando aqui, reiterando características ali, “Adam’s...” é
indubitavelmente mais um dos discos clássicos de Shorter desta fase áurea, o
qual, inclusive, traz alguns de seus temas mais conhecidos.
Começando pela faixa-título, a primeira investida incisiva
de Shorter no estilo jazz-soul. Lee Morgan, Donald Byrd, Blue Mitchell e o próprio Hancock já
haviam aderido ao groove popular de James Brown, Otis Redding e Aretha Franklin,
mas Shorter, be-boper de formação, não havia se entregado completamente ainda.
“Adam’s Apple”, no entanto, é puro R&B, é o funk nas escalas jazzísticas
que tanto o próprio Shorter se valeria anos mais tarde com a sua Weather Report, banda sinônimo do fusion. São quase 6 min de pura sonoridade pop: riff que
gruda nos ouvidos; sax soando inteiro nas modulações de intensidade; piano martelando
um ritmo que faz mexer os quadris; baixo dançante; e a bateria - um detalhe à
parte - numa aula de marcação rítmica, tanto no chipô quanto na variação
caixa/tom-tom. Shorter não resistia à tentação do pop e dava uma mordiscada
graúda na maçã de Adão.
Como todo bom Shorter, não podem faltar as baladas, aquelas
as quais ele se esbalda em elegância. Em “Adam’s...”, o músico faz isso em dois
momentos: a versão de “502 Blues (Drinkin' And Drivin')”, um blues inebriado de
paixão em que dá para se sentir, literalmente, dirigindo pela noite de Nova
York enchendo a cara por um amor não correspondido; e na linda “Teru”, que retraz
propositalmente acordes de outro de seus temas românticos, a clássica “Virgo”,
de “Night Dreamer”.
Elemento fundamental para a estética de Shorter nesta e em
várias outras épocas de sua longa carreira, o piano do amigo Hancock carrega
toda uma atmosfera mágica que une classe, sensibilidade e arrojo. Essa
característica, que perpasse toda a fase da Blue Note, quase como uma
coassinatura, está fortemente presente em “El Gaucho”, uma bossa nova em que,
mais uma vez, Workman se destaca executando com muito estilo e variabilidade
timbrística o sincopado ritmo latino. Temas como este já davam a entender,
aliás, porque Shorter e Hancock, em especial entre os quatro, se entrosariam tão
bem com a música brasileira pouco tempo dali.
“Footsprint”, embora menos “pop” que a música que dá nome ao
álbum, é um dos temas mais conhecidos do vasto repertório autoral de Shorter,
compositor gravado desde muito cedo por outros jazzistas, inclusive. Talvez
seja justamente isso que tenha feito este belo tema bluesy cair nas graças de
um outro artista: Miles Davis. E quando este ícone do jazz gostava de algo, sabia-se
o destino: adquiria-se outro status. Adotada por Miles, que a gravou em seu
“Smiles”, de 1967, “Footsprint” entrou no set-list do trompetista e foi
largamente executada em turnê pela Europa e Estados Unidos naquela metade dos
anos 60 contando, inclusive, com o próprio Shorter na banda. Não podia dar em
outra coisa que não se tornar um clássico do jazz, aqui gravada pela primeira
vez.
No continuum shortesiano, não pode faltar também aquela
música que desassossega o ouvinte, como são “Night Dreamer”, do disco ao qual
dá nome, ou a enigmática “Dance Cadaverous”, de “Speak No Evil”. Aqui, é o caso
de “Chief Crazy Horse”, com sua construção harmônica modal (num show à parte de
todos, aliás) e variações de escala e compasso. Certamente a mais desafiadora
para a banda, o que, dados o entrosamento e perícia do quarteto, não foi nenhum
problema.
Como disse o crítico e editor da American Record Guide Don
Heckeman, Shorter tem o talento e a técnica para fazer tudo o que deseja, mas o
que mais o impressionava no então jovem músico era a capacidade de compor obras
coesas a partir desta plasticidade e versatilidade. Para ele, “Adam’s...” é exatamente isso: “uma conquista ainda melhor em sua totalidade, uma vez que nos fornece um
corte transversal revelador daquela que é a mais rara das qualidades: a
maturidade artística”.
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