quarta-feira, 30 de março de 2016
Wayne Shorter - “Speak no Evil” (1965)
sexta-feira, 5 de novembro de 2021
Wayne Shorter - "Adam's Apple" (1966)
E era. Devidamente selada pelo estilo marcante de tocar de
Shorter – capaz de ir do mais feroz grito dissonante à absoluta leveza lírica
–, esta sequência mágica de obras resulta, em 1966, em “Adam’s Apple”, seu 10º
álbum solo e o 7º pela Blue Note. Nesta obra, o band leader está acompanhado de
um trio afiadíssimo e com o qual tinha total entrosamento: Reggie Workman,
na bateria; Joe Chambers, ao baixo; e o fiel escudeiro Herbie Hancock, ao
piano. Experimentando aqui, reiterando características ali, “Adam’s...” é
indubitavelmente mais um dos discos clássicos de Shorter desta fase áurea, o
qual, inclusive, traz alguns de seus temas mais conhecidos.
Começando pela faixa-título, a primeira investida incisiva
de Shorter no estilo jazz-soul. Lee Morgan, Donald Byrd, Blue Mitchell e o próprio Hancock já
haviam aderido ao groove popular de James Brown, Otis Redding e Aretha Franklin,
mas Shorter, be-boper de formação, não havia se entregado completamente ainda.
“Adam’s Apple”, no entanto, é puro R&B, é o funk nas escalas jazzísticas
que tanto o próprio Shorter se valeria anos mais tarde com a sua Weather Report, banda sinônimo do fusion. São quase 6 min de pura sonoridade pop: riff que
gruda nos ouvidos; sax soando inteiro nas modulações de intensidade; piano martelando
um ritmo que faz mexer os quadris; baixo dançante; e a bateria - um detalhe à
parte - numa aula de marcação rítmica, tanto no chipô quanto na variação
caixa/tom-tom. Shorter não resistia à tentação do pop e dava uma mordiscada
graúda na maçã de Adão.
Como todo bom Shorter, não podem faltar as baladas, aquelas
as quais ele se esbalda em elegância. Em “Adam’s...”, o músico faz isso em dois
momentos: a versão de “502 Blues (Drinkin' And Drivin')”, um blues inebriado de
paixão em que dá para se sentir, literalmente, dirigindo pela noite de Nova
York enchendo a cara por um amor não correspondido; e na linda “Teru”, que retraz
propositalmente acordes de outro de seus temas românticos, a clássica “Virgo”,
de “Night Dreamer”.
Elemento fundamental para a estética de Shorter nesta e em
várias outras épocas de sua longa carreira, o piano do amigo Hancock carrega
toda uma atmosfera mágica que une classe, sensibilidade e arrojo. Essa
característica, que perpasse toda a fase da Blue Note, quase como uma
coassinatura, está fortemente presente em “El Gaucho”, uma bossa nova em que,
mais uma vez, Workman se destaca executando com muito estilo e variabilidade
timbrística o sincopado ritmo latino. Temas como este já davam a entender,
aliás, porque Shorter e Hancock, em especial entre os quatro, se entrosariam tão
bem com a música brasileira pouco tempo dali.
“Footsprint”, embora menos “pop” que a música que dá nome ao
álbum, é um dos temas mais conhecidos do vasto repertório autoral de Shorter,
compositor gravado desde muito cedo por outros jazzistas, inclusive. Talvez
seja justamente isso que tenha feito este belo tema bluesy cair nas graças de
um outro artista: Miles Davis. E quando este ícone do jazz gostava de algo, sabia-se
o destino: adquiria-se outro status. Adotada por Miles, que a gravou em seu
“Smiles”, de 1967, “Footsprint” entrou no set-list do trompetista e foi
largamente executada em turnê pela Europa e Estados Unidos naquela metade dos
anos 60 contando, inclusive, com o próprio Shorter na banda. Não podia dar em
outra coisa que não se tornar um clássico do jazz, aqui gravada pela primeira
vez.
No continuum shortesiano, não pode faltar também aquela
música que desassossega o ouvinte, como são “Night Dreamer”, do disco ao qual
dá nome, ou a enigmática “Dance Cadaverous”, de “Speak No Evil”. Aqui, é o caso
de “Chief Crazy Horse”, com sua construção harmônica modal (num show à parte de
todos, aliás) e variações de escala e compasso. Certamente a mais desafiadora
para a banda, o que, dados o entrosamento e perícia do quarteto, não foi nenhum
problema.
Como disse o crítico e editor da American Record Guide Don
Heckeman, Shorter tem o talento e a técnica para fazer tudo o que deseja, mas o
que mais o impressionava no então jovem músico era a capacidade de compor obras
coesas a partir desta plasticidade e versatilidade. Para ele, “Adam’s...” é exatamente isso: “uma conquista ainda melhor em sua totalidade, uma vez que nos fornece um
corte transversal revelador daquela que é a mais rara das qualidades: a
maturidade artística”.
FAIXAS:
OUÇA O DISCO:
quinta-feira, 7 de novembro de 2019
Wayne Shorter - “Schizophrenia” (1967)
Wayne Shorter nunca foi homem de pouco trabalho. Se hoje, aos 86 anos, ainda se mantém ativo, com disco lançado recentemente e não raro fazendo shows pelo mundo, nos anos 60, na flor da idade, seu ânimo era irrefreável. Além de compor as bandas de Herbie Hancock, Lee Morgan, Miles Davis, Grachan Moncur III, Art Blakey, Tony Williams, Lou Donaldson e outros, tinha gás e criatividade suficientes para tocar mais de um projeto solo ao mesmo tempo. Entre 1964 e 65, por exemplo, ele lançava nada menos que seis discos: "JuJu", "Night Dreamer", "The All Seeing Eye", “The Collector”, "Et Cetera" e "The Soothsayer". Em 1966, outros dois: "Adam's Apple", "Speak No Evil". Todos marcos do jazz. Na esteira desta fase abençoada, Shorter trouxe “Schizophrenia”, que se não é tão celebrado quanto alguns de seus antecessores, guarda igualmente as mesmas qualidades: o jazz vigoroso, a melodia penetrante e um punhado de sutilezas muito peculiares de seu autor, certamente uma das mais lendárias figuras da música moderna.
O deleite começa com “Tom Thumb”, um rhytm & blues cheio de latinidade e clara homenagem a Tom Jobim e à bossa nova em que dois acordes dissonantes, tal qual o mais famoso gênero musical brasileiro legou à música moderna, se entrecruzam para formar a melodia central. Tudo começa na elegante base de baixo de Ron Carter, mestre do instrumento e sabedor como poucos do fraseado do samba. Já Shorter e James Spaulding estão arrepiantes cada um com seu saxofone, tenor e alto, respectivamente. Ainda, um Joe Chambers incrível no gingado da bateria e o parceiro Hancock, outro manifesto admirador da música brasileira, fazendo os teclados batucarem. Das melhores faixas de abertura de um disco de Shorter – e olha que têm várias de alto gabarito.
Toda a luminosidade colorida do ritmo latino se converte na enigmática e nebulosa “Go”. Shorter e Spalding soltam literalmente os primeiros sopros, dando a entender que a canção irá se direcionar para determinado lado. Ledo engano, pois os ventos levam a melodia, propositalmente complexa e fugidia, para outras paragens. Primeiro, sobe, depois forma chorus, entra em consonância, desce novamente e nunca estabelece um verdadeiro ritmo, um compasso que a defina. O band-leader e autor da música a domina com altivez e abstratismo, enquanto Spaulding, audaz, amplia essa atmosfera ao atacar agora com a flauta. Mas é mesmo Hancock que se esbalda. Para quem escreveu temas oníricos como “Maiden Voyage”, esse é o tipo de situação para deitar e rolar. Além da base sabiamente modal, que solo brilhante de piano ele extrai!
Dá a se entender que a turma resolveu manter o clima fantástico de “Go”, mas após uma rápida intro de chorus dos sopros, a bateria surge em um crescendo para que todos entrem de vez no hard-bop pulsante da faixa-título em que ninguém deixa por menos em intensidade. A flauta de Spaulding rouba a cena em “Kryptonite”, faixa escrita por ele. Entretanto, não menos engenhosa é a concepção dada por Shorter, que aplica glissandos e variações de volume a seu sax. A bateria potente nas baquetas de Chambers segura, igualmente, um Hancock inventivo tanto na base da mão direita quanto na fluência da esquerda. Carter não fica para trás, tirando do grave do baixo a densidade certa.
Sabe aquele olhar peculiar que Shorter lança sobre sua música a que se referiu anteriormente? Dois deles estão em “Miyako”: a melodiosidade romântica e o toque do Oriente. Budista, o músico era casado à época com a musa inspiradora que dá título à canção, a qual ele já havia dedicado, um ano antes, em “Speak no Evil”, a música “Infant Eyes” e a própria capa daquele mesmo álbum. Resultado: uma balada linda, sensível, algo exótica, com destaque para os saxofones, que se completam mesmo em solos simultâneos. Como era de praxe à sequência de discos da época, o último número trazia uma harmonia mais complexa, o que acontece com “Playground” que, como se supõe, é um parque de diversões para os músicos soltarem a imaginação e destreza.
A se imaginar o trabalhão que deu fazer discos tão incríveis como “Schizophrenia” em tão pouco tempo renderia, ao menos, umas férias, certo? Errado em se tratando de Wayne Shorter, que logo em seguida emendaria mais discos solo, a fundação da banda referência do jazz fusion, a Weather Report, a parceria com Milton Nascimento e por aí vai. Até hoje não tem como parar esse fenômeno da natureza chamado Wayne Shorter. E nem há por que.
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FAIXAS
1. Tom Thumb - 6:15
2. Go - 4:52
3. Schizophrenia - 6:59
4. Kryptonite (James Spaulding) - 6:25
5. Miyako - 5:55
6. Playground - 6:20
Todas as composições de autoria de Wayne Shorter, exceto indicada
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sábado, 8 de janeiro de 2022
83 anos da Blue Note - Os 10 discos preferidos
Mas, claro, o principal é a música em si. Musicalmente falando, a gravadora em diferentes épocas reuniu em seu elenco nomes como Horace Silver, Herbie Nichols, Lou Donaldson, Clifford Brown, Jimmy Smith, Kenny Burrell, Jackie McLean, Freddie Hubbard, Donald Byrd, Wynton Marsalis, Andrew Hill, Eric Dolphy, Cecil Taylor, Hank Mobley, Lee Morgan, Sonny Clark, Kenny Dorham, Sonny Rollins e tantos outros. Há, inclusive, os que lhe tiveram passagem rápida, mas que, mesmo assim, não passaram despercebidos, como Miles Davis, nos primeiros anos de vida do selo, ou Cannonball Adderley e John Coltrane, que em seus únicos exemplares Blue Note, no final dos anos 50, deixaram marcas indeléveis na história do jazz.
Pode-se dizer sem medo que pela Blue Note passaram bem dizer todos os maiores músicos do jazz. Se escapou um que outro – Charles Mingus, Chet Baker, Albert Ayler, Ahmad Jamal – é muito. Outros, mesmo que tenham andando por outras editoras musicais, tiveram, inegavelmente, alguns de seus melhores anos sob essa assinatura, tal Wayne Shorter, Dexter Gordon e McCoyTyner.
domingo, 2 de agosto de 2015
Feira do Vinil – Groovaholic – Porto Alegre/RS (4/7/2015)
Nós na adorável tarde no Grovaholic
foto: Juliano Oster
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Eu à cata dos LP's
foto: Leocádia Costa
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segunda-feira, 4 de novembro de 2024
Wayne Shorter - "Etcetera" (1980)
Acima, a capa criada em 1965 com arte de Patrick Roques e foto de Francis Wolff, e, abaixo, a arte para o lançamento póstumo, em 1980 |
Após montar um pequeno estúdio na casa dos pais, na metade dos anos 40, foi na década seguinte que ele passa a realizar as gravações para o selo Vox Records. Um de seus amigos do meio do jazz, o saxofonista Gil Mellé, apresentou-o, em 1953, a Alfred Lion, cabeça da Blue Note Records. Em 1959, muda, então, o Van Gelder Studio para o lendário endereço na Englewood Cliffs, onde assina, por diversas gravadoras como Prestige, Verve, A&M, CTI e, claro, a própria Blue Note, centenas de trabalhos, grande parte deles clássicos absolutos da história da música moderna, como “Maiden Voyage”, de Herbie Hancock, “A Love Supreme”, de Coltrane, ”Walkin'”, de Miles, e “Song for my Father”, de Horace Silver.
São tantas realizações de Van Gelder, que seria impossível resumir em apenas uma. No entanto, “Etcetera”, do saxofonista e compositor Wayne Shorter, é certamente uma dessas extraordinárias joias modeladas por Van Gelder. Gravado na fase áurea de Shorter pela Blue Note, em meados dos anos 60, embora tenha permanecido inédito até 1980, traz na banda Hancock, ao piano; Joe Chambers, bateria, e Cecil McBee, baixo. Há muito considerado um dos melhores álbuns de estúdio do artista, “Etcetera” tem cinco composições de autoria de Shorter, com exceção de “Barracudas” de Gil Evans, um extenso tema modal com atuação especialmente destacável para um possuído Hancock em estado de graça.
A faixa-título, no entanto, encarrega-se de abrir o álbum dando as cartas: jazz modal pós-bop capaz de hipnotizar o ouvinte. Misto de tensão e enigma, “Etcetera” tem incursões esparsas do piano e do sax, que mantém um diálogo o tempo todo. Sustentado pelo chipô e variações tam-tam/caixa de Chambers (que, aliás, encerra a faixa com um excelente solo, cuja espontaneidade Van Gelder soube ressaltar), é mais uma prova do quanto Shorter entende de como abrir bem um disco, assim como os imediatamente anterior “JuJu”, na faixa homônima e também de 1965, e posterior, “Speak no Evil”, de 1966, com a fenomenal “Witch Hunt”.
Balada como só os mestres do jazz sabem compor e executar, “Penelope” é mais do que cativante: é estonteante. Quanta sensualidade no sax de Shorter! E que leveza do piano até bem pouco de notas carregadas por Hancock na faixa anterior. Aqui, ele equilibra o tempo cadenciado do compasso, enquanto McBee se encarrega de apenas conduzir a saudável lentidão, como um sono prazeroso. Chambers quase se cala, não fosse os leves chispados das escovinhas na caixa da bateria.
“Indian Song”, na sequência, ocupa o lugar especial no cancioneiro de Shorter como uma de suas composições mais intensamente hipnotizantes. Dividida em duas partes, carrega a atmosfera oriental que o músico expressava com frequência desde que se identificou com essa cultura, no início daquela década. "Mahjong", de “JuJu”, e "Charcoal Blues", de “Night Dreamer”, não deixam mentir. “Indian...” também evoca as tradicionais faixas de encerramento de discos de Shorter, invariavelmente a mais rebuscada dos álbuns, tal “Playground” (de “Schizophrenia”), "Armageddon" (de “Night...”) e “Mephistopheles” (“The All Seeing Eye”),
O encontro de Van Gelder com os músicos do jazz é, certamente, um dos maiores acontecimentos da história da música moderna. A técnica, como em raros outros momentos, unia-se de forma amalgamada a uma grande profusão de expressões do mais alto nível musical proporcionadas pelo jazz a partir dos anos 40 nos Estados Unidos. Shorter, foi um desses beneficiados: sua arte maior pode, por obra deste talentoso engenheiro de som com sensibilidade de artista chamado Rudy Van Gelder, ser transmitida com precisão diante daquilo que criou.
FAIXAS:
2. “Penelope” - 6:44
3. “Toy Tune” -7:31
4. “Barracudas (General Assembly)” (Gil Evans) - 11:06
5. “Indian Song” - 11:37
Todas as composições de autoria de Wayne Shorter, exceto indicada
OUÇA O DISCO:
segunda-feira, 3 de setembro de 2018
Wayne Shorter - "JuJu" (1965)
A cultuada banda formada pelo pianista McCoy Tyner, o baterista Elvin Jones e contrabaixista Jimmy Garrison ficou conhecida como o trio que acompanhou John Coltrane no seu período áureo por quase cinco anos. Mas, na prática, embora o êxito desse encontro e o longo período de parceria com o saxofonista autor de “A Love Supreme”, as coisas não eram assim tão exclusivas. Se e a afinidade musical fazia com que ganhassem essa marca junto a Coltrane, a mesma qualidade lhes garantia sucesso em outros projetos. Afinal, o período, primeira metade dos anos 60, era o de maior fertilidade do jazz pós-bop e, além do mais, os músicos da época conviviam e se trocavam sadiamente. Tanto que, praticamente a mesma banda, com ocasionais substituições, é responsável por discos como “Matador”, do guitarrista Grant Green (1964), “McCoy Tyner Plays Ellington”, de Tyner (1963), e outro magnífico álbum da época: “JuJu”, em que o grupo apoia outro mestre do sax alto: Wayne Shorter.
Com o mesmo vigor e brilhantismo que os faz ostentar a aura de melhor quarteto de todos os tempos do jazz, Tyner e Jones, desta feita acompanhados por outra fera do baixo, Reggie Workman, montam o palco ideal para a exibição de Shorter em “JuJu”. Numa estrutura parecida com seu disco imediatamente anterior, a obra-prima “Night Dreamer” (1964), que contava com esse mesmo time de músicos, “JuJu” inicia, assim como na abertura do outro disco, com uma intensa faixa-título. Trata-se de um bop modal em que ninguém fica para trás, nem band leader nem seus acompanhantes. O trio da “cozinha” não poupa, esbanjando inventividade nas variações sobre a escala. Tyner solta ataques abertos nas teclas brancas; Jones, polirrítmico, engendra um compasso 3/6 cheio de variantes; Workman, por sua vez, desliza os dedos em impulsos constantes sobre as cordas. Mas tudo, claro, a serviço do sopro de Shorter. Majestoso. Altivo. Carregado. Inspirado nos ritos religiosos da África ancestral (o ritual “voodoo” é a versão para “juju” no Haiti), é ele quem – com exceção do solo de Jones no meio do número – preenche do início ao fim a faixa unindo lirismo e ferocidade, disciplina e instinto.
O toque fugidio e aparentemente impreciso da abertura de “Deluge”, o tema seguinte, revela, assim que a melodia se define, que aqueles acordes eram, sim, sua assinatura. Jazz elegante e bluesy, tem um dos mais bonitos riffs criados por Shorter, exímio melodista autor de boa parte de seu próprio repertório e cujas músicas foram gravadas por vários outros artistas, de Miles Davis a Chick Corea. Assim como "Oriental Folk Song", também uma segunda faixa, no caso, no referencial “Night...”, “Deluge” guarda certo exotismo e mistério. Por contar apenas com o sax de Shorter como metal, assim como ocorre em todo o disco, a canção traz a marca forte do seu autor, que tem liberdade para desenvolver os improvisos sem “dividir” o tempo/espaço com outro solista (como em “Night...”, onde o trompete de Lee Morgan faz o segundo sopro). É Shorter brilhando livre com o rico amparo da estelar banda.
Caso da romântica “House of Jade", daquelas baladas dilacerantes de Shorter tal qual “Virgo”, igualmente terceiro número do disco anterior e cujo sentimentalismo é tão arrebatador quanto. Tyner está especialmente clássico, mostrando o quanto ele e outro genial pianista contemporâneo seu, Herbie Hancock, dialogavam. Nota-se Gershwin e Rachmaninoff no seu dedilhar onírico e inteligente, sabendo preencher o espectro sonoro com delicada precisão. Jones, capaz de oscilar da intempestividade à doçura, arrasta e bate a escovinha de leve, quando não solta a baqueta com mais intensidade nos pratos e na caixa. Workman, por sua vez, impecável ao extrair um blues triste do baixo, quase choroso. E Shorter, então?! Quanta beleza! Sopradas lânguidas, macias mas bem pronunciadas, variando das mais inventivas formas o tema central. A 3min30’, uma ligeira guinada para um blues mais embalado, quando se acelera levemente o compasso. Não o suficiente, contudo, para tirar-lhe o caráter lírico. Tyner, a pouco menos de 5min, ensaia um breve solo para, então, Shorter retornar e fechar com a mesma carga sentimental que rege “House of Jade".
Caso também de "Mahjong". Nesta, é a bateria que dá o tom, abrindo a faixa com variações de tan-tan e prato num ritmo sincopado, exótico. Tyner entra com um 3/2 modal como é sua especialidade. Aí, novamente, aparece a lindeza do riff de Shorter, em que as sonoridades orientais, tanto da Índia quanto do Extremo Oriente, se revelam mais presentes, igual o fez em "Charcoal Blues" de “Night...”. Após a abertura, Tyner, num dos momentos mais célebres do disco, engendra um solo de mão direita intrincado, enquanto sustenta com a esquerda a base. Parecem dois pianistas tocando – mas não é. Para responder a tal maravilha no mesmo nível, Shorter volta à carga para hipnotizar o ouvinte. Encadeamentos sobre uma escala de apenas 5 notas se dão em profusão, os quais vão se intensificando em figuras ora dissonantes, ora espirais. Totalmente a ver com a inspiração do tema, uma vez que o “mahjong”, um jogo de mesa de origem chinesa, tem peças que envolvem, justamente, imagens circulares.
A embalada “Yes or Not” já diz a que veio quando o sax Shorter larga soltando o riff. Depois, são quase 6min só de improviso, em que ele explora com agilidade escalas de tons inteiros formando relações diversas. No embalo, Tyner improvisa com igual desenvoltura valendo-se das mesmas premissas construtivas.
A talvez menos “espelhada” em relação a “Night...” seja, justamente, a música que encerra o álbum. Enquanto "Armageddon" finaliza aquele disco carregando na atmosfera avant-garde com dissonâncias e arroubos, a charmosa "Twelve More Bars to Go" é, como o próprio título diz, um passeio fagueiro pelas ruas de Nova York atrás de (mais 12) bares para se tomar um bourbon e ouvir um jazz. Bonito detalhe são os lances em que Shorter, na empolgação do improviso, acaba afastando o bocal do sax do microfone, gerando redução no volume da captação. O engenheiro de som, Rudy Van Gelder, com a habilidade e sensibilidade incomum que tinha, sabiamente não “corrige” a diferença nem durante a execução e nem depois. O que para muitos seria uma falha, nas mãos de Van Gelder vira um acerto divino.
Até mesmo a sonoridade límpida e equalizada dada por Van Gelder e a mais uma vez impecável arte de Reid Miles se repetem de “Night...” para “JuJu”, mostrando o quanto Shorter acertara neste conceito de obra, sua primeira pelo renomado selo Blue Note, o qual carrega toda a bagagem do hard-bop e que serviria de modelo para outros trabalhos igualmente inesquecíveis do artista logo em seguida, como “Speak no Evil”, “Etcetera” (ambos de 1965) e “Schizophrenia” (1967). No entanto, “JuJu”, tão mítico quanto estes, é, acima de tudo, um álbum único, haja vista todas essas suas qualidades, que o fazem chegar, bem dizer, à perfeição.
segunda-feira, 5 de setembro de 2022
V.S.O.P. - “Five Stars” (1979)
No jazz? Tão improvável quanto. Para formar um timaço de melhores, só se fosse no Japão! E não é que este milagre aconteceu? E, pasme-se: não foi nos Estados Unidos, berço do jazz, mas, sim, na Terra do Sol Nascente. O feito raro tem um responsável: Herbie Hancock. Além de ser um dos integrantes deste “dream team”, foi ele quem catalisou as intenções e teve a ideia de, junto com o empresário David Rubinson, formar a “The Quintet”. Mas uma reunião tão especial não poderia chamar-se de outro jeito que não de algo que transmitisse bem essa ideia. A criativa solução foi dar o nome ao grupo de V.S.O.P., sigla que significa, na linguagem etilista, "Very Special One Time Performance", ou seja, a classificação dada à bebida conhaque envelhecida de alta qualidade.
Para isso, Hancock chamou, claro, só os melhores. Amigos músicos tão brilhantes quanto ele: Ron Carter, para o baixo; Tony Williams, para a bateria; Wayne Shorter, no sax; e Freddie Hubbard, ao trompete. Todos “all stars”, todos band leaders, todos lendas do jazz, que tocaram com outras lendas como Charlie Parker, Dizzie Gillespie, Miles Davis, Tom Jobim e Art Blakey. Todos senhores de obras que revolucionaram o jazz e a música moderna. Estavam todos ali, milagrosamente juntos. Seja por currículo ou por talento, a V.S.O.P. era o verdadeiro “dream team” do jazz.
Para materializar essa conjugação tão estelar, Rubinson promoveu um histórico show em San Diego, em 1977, que foi registrado no álbum “The Quintet”. O projeto deu tão certo, que deu vontade de também produzirem algo em estúdio. Foi aí que a turma foi parar no Japão, onde já eram individualmente aclamados. Foi a conexão que faltava: além de realizarem um novo disco ao vivo naquele mesmo ano, “Tempest in the Colosseum”, que encerrava a turnê, a turma, principalmente Hancock, acabou ficando lá pelo outro lado do mundo. Somente em 1979, dos seis discos que o pianista lança naquele ano, entre projetos solo ou acompanhados, quatro são gravados em Tóquio e lançados pelo selo Sony Japan. Um deles é justamente o colossal “Five Stars”, da V.S.O.P., único trabalho de estúdio da banda e cujo título não poderia ser mais adequado.
Coube ao engenheiro japonês Tomoo Suzuki comandar as mágicas gravações de 29 de julho daquele ano, nos estúdios CBS/Sony, em Tóquio. Mesmo experiente e calejado, por incrível que pareça o que o quinteto traz é de um frescor surpreendente e até tocante, não fosse, principalmente e acima de tudo, empolgante. Donos dos melhores currículos do jazz, eles tocam com a graça de jovens iniciantes. É surpreendente e comovente o misto coração e habilidade que estes cinco amigos, senhores do mais alto nível da música internacional, entregam na exuberante faixa de abertura, “Skagly”. São 10 minutos que é fácil duvidar que qualquer criatura que goste de música queira que em algum momento acabe.
Sob a energia funk que todos conhecem e dominam, a faixa é um verdadeiro show de cada um dos participantes. Trata-se de um tema tão rico, que merece uma apreciação pormenorizada. A começar pelo autor, Hubbard. É ele quem dá as costuras altamente sofisticadas de fusion e hard bop do chorus. É ele quem estica as notas para os tons agudos, bem a seu estilo. É ele quem, com mérito, começa solando com a técnica invejável de quem tem seu nome gravado em álbuns como “Empyrean Isles”, de Hancock, “Free Jazz”, de Ornette Coleman, ou “Out to Lunch”, de Eric Dolphy. Carter: o único que não “sola”. Mas para quê? Afinal, o que o maior baixista da história do jazz faz é milagre. Quem conseguiria extrair tanta sonoridade, tanta personalidade do baixo acústico? Carter, que dispensara o baixo elétrico fazia tempo, prova por A mais B o porquê de sua escolha. Em “Skagly”, suas deliciosas ondulações e sua timbrística característica, aquela do quinteto mágico de Miles Davis e da sonoridade de Gil Scott-Heron, estão mais do que palpáveis: são uma caixa de ritmo. Só podia vir de quem já fez samba-jazz com Tom, Hermeto Pascoal e Airto Moreira.
Hancock: sabem aquelas notas que saltitam do piano em “Cantaloupe Island” e “Blid Man, Blind Man”? E a noção de ritmo repleta de groove e blues de quem contribuiu para a construção da sonoridade de gente como Miles, Shorter, Milton Nascimento, Lee Morgan e Joni Mitchell? De quem faz a improvável ligação entre Gershwin a hip hop? Pois é: Hancock em “Skagly” é tudo isso. Falemos, então, de Shorter. Bem, o que dizer de Shorter? A genialidade em forma de saxofone, a estirpe de Coltrane, a mente fusion da Weather Report, o buda do jazz, o solista incansavelmente criativo e hábil, o autor das obras-primas “Juju”, “Night Dreamer”, “Speak no Evil”? Pouco tem a se dizer e muito a aplaudir. Por fim, Williams. Este não ficou por último à toa, pois sua performance na faixa de abertura (nossa, isso, ainda é “apenas” a abertura do disco!) é, mesmo para os que sabem se tratar do, provavelmente, mais influente baterista da história do jazz, assombrosa. O que é I-S-S-O? Williams dá, literalmente, um show do início ao fim do tema, sem que isso, porém, se torne maçante ou confuso. Pelo contrário! É ele quem segura no punho o ritmo funk de cabo a rabo, mas não deixa de esmerilhar nas quebras e descidas. Quantas variações de rolos, polirritmia, mudanças de timbres! Conhecido por sua categoria nas baquetas, como as que executa em clássicos como “Maiden Voyage”, de Hancock, “Refuge”, de Andrew Hill, ou “Shhh”, de Miles, e inúmeros outros, aqui ele não economiza na explosão.
Bastaria falar apenas sobre a faixa de abertura, mas esses cinco jovens tarimbados não deixariam o ânimo cair jamais. Tanto que, na sequência, vem o sofisticado jazz bluesy “Finger Painting”, com lances modais e bopers fluindo naturalmente entre si, coisa de quem toca jazz de olhos fechados. O baixo de Carter escalona sons ondulados enquanto Shorter e Hubbard se encarregam de lançar frases em colorações medianas, Williams privilegia o tintilar dos pratos e chipô e Hancock mantém o clima onírico em notas claras e prolongadas. Em “Mutants On The Beach”, a terceira, hard-bop mais clássico e não menos gracioso, Carter novamente “carrega” no baixo, dando agora aos sopros maior amplitude para voaram com apoio do ritmo embalado marcado por Williams e Hancock. O pianista, aliás, confere dissonâncias perfeitas em seu improviso, ligando o anterior, de Hubbard, com o seguinte, de Shorter. Mas Williams estava chispando fogo como um dragão japonês, e manda ver num magnífico solo para terminar a música.
Sabe o gol de Carlos Aberto para a Seleção Brasileira sobre a Itália na final da Copa de 70? Ou a trinca “Golden Slumbers/Carry That Weight/The End” para encerrar o último disco dos Beatles, “Abbey Road”? É esta sensação que deixa “Circle”, a que finaliza o disco do “dream team” V.S.O.P. Quanta perfeição! Enigmática, é um misto de “In a Silent Way”, de Miles, com “Maiden Voyage”, com “Psalm”, de Coltrane, e mantra oriental. A melodia espiral, cadenciada pelo baixo já tradicionalmente assim de Carter, dá literalmente uma sensação de circularidade, absorvendo quem escuta numa atmosfera de vertigem. Ainda bem que se trata da menor faixa das quatro, pois se não os ouvintes entrariam em transe – se é que não entram.
Depois deste álbum japonês, a V.S.O.P. lançaria ainda apenas mais um disco também ao vivo como os dois primeiros antes de se dissolver ou transformar-se em outros projetos, visto que os integrantes seguiram contribuindo uns para os outros em vários momentos. Porém, embora a formação do grupo tenha se dado ainda nos Estados Unidos para um show quase comemorativo de músicos “envelhecidos de alta qualidade”, foi no Japão que este prosseguiu e onde se concretizou o histórico registro do quinteto em estúdio – feito que, infelizmente, nunca mais se repetirá uma vez que Hubbard faleceu em 2008. Contudo, é normal que “times dos sonhos” não permaneçam por muito tempo mesmo. A conjunção de fatores para que esse milagre ocorra é tão improvável que os deuses podem resolver que ela ocorra quando e onde menos se espera. No Japão, por exemplo.
FAIXAS:
OUÇA O DISCO:
Daniel Rodrigues