“Wayne Shorter continua e evoluir
para explicar tudo aquilo
que as pessoas levam dentro de si.”
Herbie Hancock
Já escrevi sobre o saxofonista Wayne Shorter e o pianista e tecladista Herbie Hancock para a seção ÁLBUNS FUNDAMENTAIS mais de uma vez. De Shorter, sobre o hipnotizante "Night Dreamer",
afora "The Sidewinder", no qual integra a banda de Lee Morgan. De Hancock, falei
do suingado "Empyrean Isles" e do esplendoroso "Maiden Voyage", além de outras
menções invariavelmente merecedoras. Porém, tanto um artista quanto outro tem,
principalmente nos anos 60, vários discos (se não todos dessa época) que podem
figurar numa lista de essenciais. Suas produções, seja como band leaders ou em participações, são
extremamente ricas e fecundas. Outro trabalho dessa leva e de suma importância
tanto quanto estes ou até mais em certo aspecto é o por mim já citado neste
blog "Speak No Evil", de 1965. Aqui,
com Shorter à frente, o amigo Hancock assume o piano junto com o primoroso acompanhamento
de outros três mestres: o do baixo acústico, Ron Carter, o do trompete, Freddie Hubbard, e o da bateria, Elvin Jones. Às vésperas de finalmente assisti-los ao
vivo pela primeira vez – e os dois numa vez só! –, acho digno relembrar uma das
icônicas parcerias entre essas duas lendas vivas do jazz.
A começar pela enigmática capa de Reid Miles (para mim a melhor arte de
todos os tempos da discografia jazz norte-americana),“Speak no Evil”é puro
refinamento. Seja nas composições, nos arranjos, nas harmonias, nos estilos de
tocar. E é um dos mais felizes momentos de comunhão entre esses músicos, todos filhos
musicais de Miles Davis, porém, ainda mais, no que se refere a Shorter e
Hancock, duas figuras basais para o jazz contemporâneo que seguiriam mudando em
vários momentos a cara da música moderna. Aqui, a revolução já estava em plena combustão.
As seis composições de Shorter presentes no disco ajudaram a definir um novo
estilo dentro do jazz naqueles meados de anos 60, numa fusão da força muscular
concentrada do hard bop com os
intervalos surpreendentes e melodias muitas vezes suspensas sobre o compasso. O
resultado disso foi a cunhagem de um novo ”Birth of the Cool", uma mistura
ímpar de contenção e liberdade que criou um contraste marcante entre temas
arejados e outros de uma tensão calculadamente equilibrada.
“Witch Hunt”, com o início marcante do duo entre Shorter e Hubbard,
começa na melhor atmosfera cool, algo
sinalizado pelo piano de Hancock, que se mantém num tom moderado. O sax dá a
largada exercitando um solo de pura consciência de ritmo e variações.
Equilíbrio nas tensões e distensões. Sua exatidão remete ao piano de Thelonious
Monk. Seu som é tão amplo e perfeitamente pronunciado que mal se percebe quando
o trompete entra. Sensação que, no entanto, logo se corrige: é Hubbard quem está
no solando agora. Acelerando e intensificando, ele imprime um leve desnorteio
àquele cosmos mas, igualmente inteligente, não deixa escapar o tema. A emoção é
captada com ainda mais astúcia por Hancock, que desmancha os dedos sobre o
piano. Claro e denso ao mesmo tempo. Tudo isso desenhado pelo dedilhado
trasteado de Carter. Ao final, no último chorus,
Shorter estoura com parcimônia o agudo do sax enquanto o restante se mantém,
demonstrando mais uma vez o controle conceitual do álbum em seu casamento de
leveza e energia.
Agora é Hancock quem dá os primeiros acordes, mostrando que, mesmo num
projeto de Shorter, parceiros como ele têm participação fundamental. O pianista
determina o andamento lento e elegante de ”Fee-Fi-Fo-Fum”. Carter segura um
blues de alta capacidade de leitura melódica. Que tema charmoso! O riff, em chorus, é repetido uma vez e, quando
parece que vai se diluir, um rolo em crescendo de Jones sinaliza para Hubbard,
que já salta em uma nota aguda para depois compor um solo emotivo. Shorter
acata a mesma ideia, ora repetindo o tema, ora injetando mais respiros entre uma
frase e outra. Porém, tomado pela emotividade, há o momento em que a acentua a
seu modo, gerando ostinati típicos de
seu estilo. Após uma breve participação de quem começou tudo aquilo, Hancock, o
chorus é repetido com a mais alta
precisão, desfechando com o tradicional titilar nos pratos de ataque.
A cadência leve de ”Fee-Fi-Fo-Fum” é pega emprestada para o tema
seguinte, “Dance Cadaverous”. No entanto, não em um clima ameno mas, sim, num muito
mais denso e etéreo, trazendo ao cool
uma nova dimensão de sobriedade. Hancock dispara acordes que se dispersam dos
sopros, acima deles, enevoando o ambiente. Jones, de pura sensibilidade, usa baquetas
de madeira quase apenas nos pratos e o chipô; quando muito, na caixa. Já Carter
entrega ao ar ressonâncias estendidas. Mas é Hancock quem norteia a melodia. Nada
mais natural, então, do que ele mesmo começar solando. É de seu dedilhar e da
textura do piano que se constitui a essência fantasiosa da canção, o que Hancock
elabora em variadas cores, seja remetendo ao classicismo de um Gershwin, dando pinceladas
do atonalismo de vanguarda europeia ou se apropriando da sutiliza romântica de
Chopin. A personalidade lírica e ao mesmo tempo “cadavérica” do tema dá a
Shorter argumento suficiente para este transitar entre dissonâncias e relevos
no improviso. Música levemente perturbadora – ou seria instigantemente
deliciosa?
Mais emblemática ainda é a faixa-título, em que Shorter e Hubbard já
largam arrebatados e impecavelmente sintonizados. Eles executam um riff em tempo 4/4 no qual ainda brincam
com a extensão do acorde e o perfil sonoro, mantendo e variando a intensidade
do corpo do som até sua queda e iniciarem um novo ataque. Como se não bastasse,
o restante da banda também se esmera. Jones, bluesy por demais; Carter, preciso, preenchendo os espaços; e
Hancock: ah, Hancock! Que maestria! Se em ”Fee-Fi-Fo-Fum” e “Dance Cadaverous”
sua contribuição é claramente notada, em “Speak No Evil” ele voa. Figuras
soltas, oníricas, encadeamentos, glissandos, quase à parte do restante dos
companheiros. Nos improvisos, os solistas expandem a coloração sobre a base
modal, cada um a seu jeito: Shorter, buscando a pureza dos sons, pautado por
uma brandura inquieta; Hubbard, criativo como sempre, repetindo frases de seus
mestres; e, por fim, Hancock, ágil e impermanente, delicadamente impiedoso.
Mais uma balada doce e sensível, “Infant Eyes” se constrói a partir dos
primeiros acordes do piano, o qual chama o sax para fazer-se conhecer a
melodia. Sopros extensos e sentidos, como deve ser um bom tema romântico.
Shorter o conduz sem pressa por quase 5 min dos 6’54 da faixa, entre riff e improviso, os quais, difusos, se
diluem. Única sem solo de Hubbard, nela cabe a Hancock quebrar a fala
enfeitiçada de Shorter, o que não dura muito tempo, pois o líder, sedento por
expor o sentimento de seu sax, volta para dar os últimos acordes. “Wild Flower”,
com algo de oriental como sugere a capa, desfecha na mesma atmosfera elegante
de todo o álbum: sobriedade e coração. Repetindo a ordem, primeiro Shorter,
depois, Hubbard e, por último, Hancock, todos sob a base rítmica e harmônica
cunhada por Carter e Jones. Terminava ali a sessão registrada no Natal de 1964
nos estúdios Van Gelder, em Nova York, e posta em acetado meses depois.
A fase era tão boa que somente aquele ano de 1965 contaria com outros
três discos igualmente antológicos de Wayne Shorter: “The Soothsayer”, “Et
Cetera” e “The All Seeing Eye”. Hancock, igualmente, estava voando baixo,
compondo discos solo, trilhas, fundindo a música pop ao jazz de maneira
inseparável. A dupla voltaria a se encontrar em vários outros projetos, fosse nos
sessentistas “Adam’s Apple” e “Schizophrenia”, de Shorter, fosse compondo a
banda de Miles (“Smiles”, "In a Silent Way", “Big Fun”, “Water Babies”, entre
outros), nos discos da V.S.O.P. ou nos trabalhos de Milton Nascimento (“Native
Dancer”, “Courage”, “Raça”). A última vez que entraram juntos num estúdio foi
para o disco-duo “1 + 1”, de 1997 e, agora, afinados como são há meio século,
retomam a parceria para uma turnê que passa pelo Brasil. Nada mais pertinente,
portanto, que ouvir – ou reouvir, àqueles que conhecem – uma das obras-primas
em que ambos trabalharam juntos. Speak no
evil: only, listen.
FAIXAS:
1. Witch Hunt - 8:11
2. Fee-Fi-Fo-Fum -
5:54
3. Dance Cadaverous - 6:45
4. Speak No Evil - 8:23
5. Infant Eyes - 6:54
6. Wild Flower - 6:06
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OUÇA O DISCO
por Daniel Rodrigues
Uma delícia de texto!
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