“Este disco é
um marco para mim,
pois veio em um momento em que eu
estava entrando em uma
nova fase como autor.
E também eu sabia que
em meu primeiro álbum para a Blue
Note
eu teria que dizer algo substancial.”
Wayne Shorter,
no texto do
encarte original
São inúmeros os discípulos de Miles Davis no
universo do jazz. A lista vai de mestres geniais como Chick Corea, Herbie
Hancock, Sonny Rollins, John McLaughlin e John Coltrane – para mim, o
maior deles. Mas talvez o mais fiel aluno tenha sido outro genial jazzista: o
saxofonista Wayne Shorter, lenda viva da música mundial. De estilo arrojado
tanto nos improvisos quanto nas harmonias, Shorter começou na cena em 1959 na
banda bebop de Art Blakey, a The Jazz Messengers, pela qual não só ajudou a
gravar álbuns memoráveis, como, hábil e líder, tornou-se logo o diretor musical
do grupo. Além disso, como todos da sua geração, foi fortemente influenciado
pelo jazz em escalas do “divisor de águas” "Kind of Blue", de Miles (1959),
passando, tempo depois, a formar o aclamado “segundo grande quinteto” do
mestre, juntamente com Hancock, Ron Carter e
Tony Williams. Tudo isso deu embasamento para Shorter, valendo-se de
todas estas referências, gravar, em 1963, seu grande trabalho: o encantador
“Night Dreamer”, onde se nota um compositor maduro e criativo, além de um
instrumentista virtuoso.
Depois de três LP’s pelo selo Vee-Jay, onde ainda
se percebe um artista em busca de identidade própria, “Night Dreamer”, seu
primeiro pela mais cultuada gravadora do jazz, a Blue Note, é o acerto da
medida: cool, sofisticado, intenso, coeso. Tudo favorecendo: a técnica de
estúdio Rudy Van Gelder, a produção caprichada de Alfred Lion e esplêndida
arte, na foto borrada de Francis Wolff e o design de Reid Miles. Campo
preparado para um disco impecável. Como o título sugere, começa numa atmosfera
de sonho com a arrebatadora faixa-título, em que o piano de McCoy Tyner
anuncia, em acordes ondulantes e oníricos, a beleza da melodia modal que se
forma a seguir com o restante da banda (e que banda!): Lee Morgan (trompete),
Reggie Workman (baixo) e Elvin Jones (bateria). O chorus, sobre o andamento
cadenciado e bluesy de Jones e dos dois tempos de quatro do piano, desenha um
riff pegajoso que, entre leves ascendências e declives, surpreende pelas
dissonâncias sem, contudo, se afastar do coração do ouvinte. Espiral como um
sonho, volta, no fim da série, para o acorde inicial. A mesma ideia circular
serve de concepção para os improvisos, momento em que Shorter dá um verdadeiro show
de tempos, variações e groove. Há claras inspirações no fraseado econômico e
certeiro de Miles, inclusive na repetição da famosa frase de trompete que
antecede o solo histórico de Coltrane em "Freddie Freeloader", do “Kind
of Blue”, que Morgan pronuncia rapidamente mas com exatidão, numa visível
homenagem. No final, ao invés de toda a banda tencionar para cair junta, o mais
comum à época, Shorter subverte, desfechando-a em pleno solo ascendente, em
ritmo aberto.
Os anos como cérebro da The Jazz Messengers deram à
Shorter a cancha de produzir adaptações tão primorosas como a de "Oriental Folk
Song", uma canção tradicional chinesa em que o músico recria o tema
original timbrística e harmonicamente, compondo um jazz novamente complexo em construção,
mas orgânico a quem ouve. A introdução em tons orientais abre espaço para uma
segunda e intermediária parte com o chorus de tempos longos e articulados.
Porém, a música progride ainda mais, e uma terceira sequência atinge outra
envergadura, subindo a gradação em uma interpretação vigorosa de toda a banda.
“Virgo”, uma das mais lindas baladas do cancioneiro
jazz, vem em seguida, e aqui Shorter novamente arrebenta, mas não da forma
carregada como nas primeiras faixas, mas, sim, em solos lânguidos e
perfeitamente pronunciados. Sem pressa e repleta de sussurros, pausas e
desvelos; sensual como uma transa apaixonada madrugada adentro. É tão incrível
que, mesmo empunhando um saxofone tenor, há momentos em que parece estar
tocando um sax alto, tamanho rebuscamento que extrai das notas graves e na
modulação que atinge com o instrumento. Para arrematar, um breve solo enlevado
à capela, só sax e ouvidos. Perfeita.
Embalada e não menos saborosa, “Black Nile” vem com
toda a banda em altíssimo nível de performance. É, seguramente, a mais
“agitada” do disco, que só veio a acelerar-se um pouco mais já na sua segunda
metade. No entanto, o tom suave que perfaz o álbum é novamente demarcado em "Charcoal Blues",
em que o saxofonista exercita pequenas variações sobre o riff, numa
simplicidade mais uma vez com ares de Miles Davis, inclusive pelo visível
apreço pelo blues. Nesta, McCoy Tyner merece atenção especial na
manutenção da base e, principalmente, em seu solo.
Nada mais perfeito para terminar uma noite de fantasia
do que com o próprio “Armageddon". Considerada por Shorter como o ponto
focal do álbum, contém como mensagem a força da dualidade do ser humano na
última batalha entre o bem e o mal. Por isso, as notas reflexivas e densas, mas
nem por isso menos belas. Nela, sonho passa a significar utopia, alucinação. “A
minha definição do julgamento final é um período de esclarecimento total que
vai descobrir o que somos e por que estamos aqui", disse o compositor
sobre esta obra. Não sei se um dia chegaremos a isso, mestre Shorter, mas
certamente sua música nos eleva a um ponto que, mesmo que apenas como meros
sonhadores de uma noite qualquer, talvez consigamos revelar algo tão profundo
de nós mesmos.
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Corrijo em tempo um erro desta resenha: “Night
Dreamer” não é O grande trabalho de Wayne Shorter, mas, sim, seu PRIMEIRO
grande trabalho. Em plena atividade mesmo prestes a completar 80 anos, o músico
lançou este ano um novo CD, o elogiado “Without A Net”. Mas para alguém dono de
uma obra tão extensa e marcante, eleger apenas um disco como o melhor é tarefa
impossível. Basta lembrar-se de outros grandes discos solo, como ”Ju-Ju”
(1964), “Speak no Evil” e “The Soothsayer” (ambos de 1965), os trabalhos com
uma das pioneiras do jazz-fusion, a Wheater Report, nos anos 70, ou as
parcerias, como os que gravou com Milton Nascimento, Carlos Santana e Joni
Mitchell.
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FAIXAS:
1.
Night Dreamer - 7:15
2.
Oriental Folk Song - 6:50
3.
Virgo - 7:00
4.
Virgo (alternate take 14) – 7:03
5.
Black Nile - 6:25
6
Charcoal Blues - 6:50
7.
Armageddon - 6:20
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Ouvir:
por Daniel Rodrigues
Discípulo de Miles? Pelo detalhe, pelo minimalismo, pela inusitado? Puxa! Já me agrada em cheio.
ResponderExcluirMais uma dica preciosa para minhas aquisições de jazz.
Excelente texto,matou a pau.
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