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quinta-feira, 7 de novembro de 2019

Wayne Shorter - “Schizophrenia” (1967)



"Toda personalidade musical, quando atinge a maturidade, é capaz de se dividir em muitas direções. Compare a complexidade rítmica e melódica de 'Playground', a faixa final, com o rhitym-and-blues-quase-objetivo de 'Tom Thumb', a de abertura. Não muito tempo atrás na história do jazz, teria sido difícil encontrar um compositor capaz de produzir duas obras de natureza tão díspares."
Leonard Feather, no texto original da contracapa do disco

Wayne Shorter nunca foi homem de pouco trabalho. Se hoje, aos 86 anos, ainda se mantém ativo, com disco lançado recentemente e não raro fazendo shows pelo mundo, nos anos 60, na flor da idade, seu ânimo era irrefreável. Além de compor as bandas de Herbie Hancock, Lee Morgan, Miles Davis, Grachan Moncur III, Art Blakey, Tony Williams, Lou Donaldson e outros, tinha gás e criatividade suficientes para tocar mais de um projeto solo ao mesmo tempo. Entre 1964 e 65, por exemplo, ele lançava nada menos que seis discos: "JuJu", "Night Dreamer", "The All Seeing Eye", “The Collector”, "Et Cetera" e "The Soothsayer". Em 1966, outros dois: "Adam's Apple", "Speak No Evil". Todos marcos do jazz. Na esteira desta fase abençoada, Shorter trouxe “Schizophrenia”, que se não é tão celebrado quanto alguns de seus antecessores, guarda igualmente as mesmas qualidades: o jazz vigoroso, a melodia penetrante e um punhado de sutilezas muito peculiares de seu autor, certamente uma das mais lendárias figuras da música moderna.

O deleite começa com “Tom Thumb”, um rhytm & blues cheio de latinidade e clara homenagem a Tom Jobim e à bossa nova em que dois acordes dissonantes, tal qual o mais famoso gênero musical brasileiro legou à música moderna, se entrecruzam para formar a melodia central. Tudo começa na elegante base de baixo de Ron Carter, mestre do instrumento e sabedor como poucos do fraseado do samba. Já Shorter e James Spaulding estão arrepiantes cada um com seu saxofone, tenor e alto, respectivamente. Ainda, um Joe Chambers incrível no gingado da bateria e o parceiro Hancock, outro manifesto admirador da música brasileira, fazendo os teclados batucarem. Das melhores faixas de abertura de um disco de Shorter – e olha que têm várias de alto gabarito.

Toda a luminosidade colorida do ritmo latino se converte na enigmática e nebulosa “Go”. Shorter e Spalding soltam literalmente os primeiros sopros, dando a entender que a canção irá se direcionar para determinado lado. Ledo engano, pois os ventos levam a melodia, propositalmente complexa e fugidia, para outras paragens. Primeiro, sobe, depois forma chorus, entra em consonância, desce novamente e nunca estabelece um verdadeiro ritmo, um compasso que a defina. O band-leader e autor da música a domina com altivez e abstratismo, enquanto Spaulding, audaz, amplia essa atmosfera ao atacar agora com a flauta. Mas é mesmo Hancock que se esbalda. Para quem escreveu temas oníricos como “Maiden Voyage”, esse é o tipo de situação para deitar e rolar. Além da base sabiamente modal, que solo brilhante de piano ele extrai!

Dá a se entender que a turma resolveu manter o clima fantástico de “Go”, mas após uma rápida intro de chorus dos sopros, a bateria surge em um crescendo para que todos entrem de vez no hard-bop pulsante da faixa-título em que ninguém deixa por menos em intensidade. A flauta de Spaulding rouba a cena em “Kryptonite”, faixa escrita por ele. Entretanto, não menos engenhosa é a concepção dada por Shorter, que aplica glissandos e variações de volume a seu sax. A bateria potente nas baquetas de Chambers segura, igualmente, um Hancock inventivo tanto na base da mão direita quanto na fluência da esquerda. Carter não fica para trás, tirando do grave do baixo a densidade certa.

Sabe aquele olhar peculiar que Shorter lança sobre sua música a que se referiu anteriormente? Dois deles estão em “Miyako”: a melodiosidade romântica e o toque do Oriente. Budista, o músico era casado à época com a musa inspiradora que dá título à canção, a qual ele já havia dedicado, um ano antes, em “Speak no Evil”, a música “Infant Eyes” e a própria capa daquele mesmo álbum. Resultado: uma balada linda, sensível, algo exótica, com destaque para os saxofones, que se completam mesmo em solos simultâneos. Como era de praxe à sequência de discos da época, o último número trazia uma harmonia mais complexa, o que acontece com “Playground” que, como se supõe, é um parque de diversões para os músicos soltarem a imaginação e destreza.

A se imaginar o trabalhão que deu fazer discos tão incríveis como “Schizophrenia” em tão pouco tempo renderia, ao menos, umas férias, certo? Errado em se tratando de Wayne Shorter, que logo em seguida emendaria mais discos solo, a fundação da banda referência do jazz fusion, a Weather Report, a parceria com Milton Nascimento e por aí vai. Até hoje não tem como parar esse fenômeno da natureza chamado Wayne Shorter. E nem há por que.

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FAIXAS
1. Tom Thumb - 6:15
2. Go - 4:52
3. Schizophrenia - 6:59
4. Kryptonite (James Spaulding) - 6:25
5. Miyako - 5:55
6. Playground - 6:20
Todas as composições de autoria de Wayne Shorter, exceto indicada

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OUÇA O DISCO
Wayne Shorter - “Schizophrenia”

Daniel Rodrigues

segunda-feira, 3 de setembro de 2018

Wayne Shorter - "JuJu" (1965)



“Quando escrevi a música 'JuJu', 
estava pensando na África. 
Sua estrutura é um pouco reminiscente da simplicidade de um canto africano”. 
Wayne Shorter


A cultuada banda formada pelo pianista McCoy Tyner, o baterista Elvin Jones e contrabaixista Jimmy Garrison ficou conhecida como o trio que acompanhou John Coltrane no seu período áureo por quase cinco anos. Mas, na prática, embora o êxito desse encontro e o longo período de parceria com o saxofonista autor de “A Love Supreme”, as coisas não eram assim tão exclusivas. Se e a afinidade musical fazia com que ganhassem essa marca junto a Coltrane, a mesma qualidade lhes garantia sucesso em outros projetos. Afinal, o período, primeira metade dos anos 60, era o de maior fertilidade do jazz pós-bop e, além do mais, os músicos da época conviviam e se trocavam sadiamente. Tanto que, praticamente a mesma banda, com ocasionais substituições, é responsável por discos como “Matador”, do guitarrista Grant Green (1964), “McCoy Tyner Plays Ellington”, de Tyner (1963), e outro magnífico álbum da época: “JuJu”, em que o grupo apoia outro mestre do sax alto: Wayne Shorter.

Com o mesmo vigor e brilhantismo que os faz ostentar a aura de melhor quarteto de todos os tempos do jazz, Tyner e Jones, desta feita acompanhados por outra fera do baixo, Reggie Workman, montam o palco ideal para a exibição de Shorter em “JuJu”. Numa estrutura parecida com seu disco imediatamente anterior, a obra-prima “Night Dreamer” (1964), que contava com esse mesmo time de músicos, “JuJu” inicia, assim como na abertura do outro disco, com uma intensa faixa-título. Trata-se de um bop modal em que ninguém fica para trás, nem band leader nem seus acompanhantes. O trio da “cozinha” não poupa, esbanjando inventividade nas variações sobre a escala. Tyner solta ataques abertos nas teclas brancas; Jones, polirrítmico, engendra um compasso 3/6 cheio de variantes; Workman, por sua vez, desliza os dedos em impulsos constantes sobre as cordas. Mas tudo, claro, a serviço do sopro de Shorter. Majestoso. Altivo. Carregado. Inspirado nos ritos religiosos da África ancestral (o ritual “voodoo” é a versão para “juju” no Haiti), é ele quem – com exceção do solo de Jones no meio do número – preenche do início ao fim a faixa unindo lirismo e ferocidade, disciplina e instinto.

O toque fugidio e aparentemente impreciso da abertura de “Deluge”, o tema seguinte, revela, assim que a melodia se define, que aqueles acordes eram, sim, sua assinatura. Jazz elegante e bluesy, tem um dos mais bonitos riffs criados por Shorter, exímio melodista autor de boa parte de seu próprio repertório e cujas músicas foram gravadas por vários outros artistas, de Miles Davis a Chick Corea. Assim como "Oriental Folk Song", também uma segunda faixa, no caso, no referencial “Night...”, “Deluge” guarda certo exotismo e mistério. Por contar apenas com o sax de Shorter como metal, assim como ocorre em todo o disco, a canção traz a marca forte do seu autor, que tem liberdade para desenvolver os improvisos sem “dividir” o tempo/espaço com outro solista (como em “Night...”, onde o trompete de Lee Morgan faz o segundo sopro). É Shorter brilhando livre com o rico amparo da estelar banda.

Caso da romântica “House of Jade", daquelas baladas dilacerantes de Shorter tal qual “Virgo”, igualmente terceiro número do disco anterior e cujo sentimentalismo é tão arrebatador quanto. Tyner está especialmente clássico, mostrando o quanto ele e outro genial pianista contemporâneo seu, Herbie Hancock, dialogavam. Nota-se Gershwin e Rachmaninoff no seu dedilhar onírico e inteligente, sabendo preencher o espectro sonoro com delicada precisão. Jones, capaz de oscilar da intempestividade à doçura, arrasta e bate a escovinha de leve, quando não solta a baqueta com mais intensidade nos pratos e na caixa. Workman, por sua vez, impecável ao extrair um blues triste do baixo, quase choroso. E Shorter, então?! Quanta beleza! Sopradas lânguidas, macias mas bem pronunciadas, variando das mais inventivas formas o tema central. A 3min30’, uma ligeira guinada para um blues mais embalado, quando se acelera levemente o compasso. Não o suficiente, contudo, para tirar-lhe o caráter lírico. Tyner, a pouco menos de 5min, ensaia um breve solo para, então, Shorter retornar e fechar com a mesma carga sentimental que rege “House of Jade".

Caso também de "Mahjong". Nesta, é a bateria que dá o tom, abrindo a faixa com variações de tan-tan e prato num ritmo sincopado, exótico. Tyner entra com um 3/2 modal como é sua especialidade. Aí, novamente, aparece a lindeza do riff de Shorter, em que as sonoridades orientais, tanto da Índia quanto do Extremo Oriente, se revelam mais presentes, igual o fez em "Charcoal Blues" de “Night...”. Após a abertura, Tyner, num dos momentos mais célebres do disco, engendra um solo de mão direita intrincado, enquanto sustenta com a esquerda a base. Parecem dois pianistas tocando – mas não é. Para responder a tal maravilha no mesmo nível, Shorter volta à carga para hipnotizar o ouvinte. Encadeamentos sobre uma escala de apenas 5 notas se dão em profusão, os quais vão se intensificando em figuras ora dissonantes, ora espirais. Totalmente a ver com a inspiração do tema, uma vez que o “mahjong”, um jogo de mesa de origem chinesa, tem peças que envolvem, justamente, imagens circulares.

A embalada “Yes or Not” já diz a que veio quando o sax Shorter larga soltando o riff. Depois, são quase 6min só de improviso, em que ele explora com agilidade escalas de tons inteiros formando relações diversas. No embalo, Tyner improvisa com igual desenvoltura valendo-se das mesmas premissas construtivas.

A talvez menos “espelhada” em relação a “Night...” seja, justamente, a música que encerra o álbum. Enquanto "Armageddon" finaliza aquele disco carregando na atmosfera avant-garde com dissonâncias e arroubos, a charmosa "Twelve More Bars to Go" é, como o próprio título diz, um passeio fagueiro pelas ruas de Nova York atrás de (mais 12) bares para se tomar um bourbon e ouvir um jazz. Bonito detalhe são os lances em que Shorter, na empolgação do improviso, acaba afastando o bocal do sax do microfone, gerando redução no volume da captação. O engenheiro de som, Rudy Van Gelder, com a habilidade e sensibilidade incomum que tinha, sabiamente não “corrige” a diferença nem durante a execução e nem depois. O que para muitos seria uma falha, nas mãos de Van Gelder vira um acerto divino.

Até mesmo a sonoridade límpida e equalizada dada por Van Gelder e a mais uma vez impecável arte de Reid Miles se repetem de “Night...” para “JuJu”, mostrando o quanto Shorter acertara neste conceito de obra, sua primeira pelo renomado selo Blue Note, o qual carrega toda a bagagem do hard-bop e que serviria de modelo para outros trabalhos igualmente inesquecíveis do artista logo em seguida, como “Speak no Evil”, “Etcetera” (ambos de 1965) e “Schizophrenia” (1967). No entanto, “JuJu”, tão mítico quanto estes, é, acima de tudo, um álbum único, haja vista todas essas suas qualidades, que o fazem chegar, bem dizer, à perfeição.

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FAIXAS:
1. "JuJu" - 8:28
2. "Deluge" - 6:49
3. "House Of Jade" - 6:49
4. "Mahjong" - 7:40
5. "Yes Or No" - 6:35
6. "Twelve More Bars To Go" - 5:26
Todas as composições de autoria de Wayne Shorter

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OUÇA O DISCO:

Daniel Rodrigues

quarta-feira, 30 de março de 2016

Wayne Shorter - “Speak no Evil” (1965)



“Wayne Shorter continua e evoluir
para explicar tudo aquilo
que as pessoas levam dentro de si.”
Herbie Hancock




Já escrevi sobre o saxofonista Wayne Shorter e o pianista e tecladista Herbie Hancock para a seção ÁLBUNS FUNDAMENTAIS mais de uma vez. De Shorter, sobre o hipnotizante "Night Dreamer", afora "The Sidewinder", no qual integra a banda de Lee Morgan. De Hancock, falei do suingado "Empyrean Isles" e do esplendoroso "Maiden Voyage", além de outras menções invariavelmente merecedoras. Porém, tanto um artista quanto outro tem, principalmente nos anos 60, vários discos (se não todos dessa época) que podem figurar numa lista de essenciais. Suas produções, seja como band leaders ou em participações, são extremamente ricas e fecundas. Outro trabalho dessa leva e de suma importância tanto quanto estes ou até mais em certo aspecto é o por mim já citado neste blog "Speak No Evil", de 1965. Aqui, com Shorter à frente, o amigo Hancock assume o piano junto com o primoroso acompanhamento de outros três mestres: o do baixo acústico, Ron Carter, o do trompete, Freddie Hubbard, e o da bateria, Elvin Jones. Às vésperas de finalmente assisti-los ao vivo pela primeira vez – e os dois numa vez só! –, acho digno relembrar uma das icônicas parcerias entre essas duas lendas vivas do jazz.

A começar pela enigmática capa de Reid Miles (para mim a melhor arte de todos os tempos da discografia jazz norte-americana),“Speak no Evil”é puro refinamento. Seja nas composições, nos arranjos, nas harmonias, nos estilos de tocar. E é um dos mais felizes momentos de comunhão entre esses músicos, todos filhos musicais de Miles Davis, porém, ainda mais, no que se refere a Shorter e Hancock, duas figuras basais para o jazz contemporâneo que seguiriam mudando em vários momentos a cara da música moderna. Aqui, a revolução já estava em plena combustão. As seis composições de Shorter presentes no disco ajudaram a definir um novo estilo dentro do jazz naqueles meados de anos 60, numa fusão da força muscular concentrada do hard bop com os intervalos surpreendentes e melodias muitas vezes suspensas sobre o compasso. O resultado disso foi a cunhagem de um novo ”Birth of the Cool", uma mistura ímpar de contenção e liberdade que criou um contraste marcante entre temas arejados e outros de uma tensão calculadamente equilibrada.

“Witch Hunt”, com o início marcante do duo entre Shorter e Hubbard, começa na melhor atmosfera cool, algo sinalizado pelo piano de Hancock, que se mantém num tom moderado. O sax dá a largada exercitando um solo de pura consciência de ritmo e variações. Equilíbrio nas tensões e distensões. Sua exatidão remete ao piano de Thelonious Monk. Seu som é tão amplo e perfeitamente pronunciado que mal se percebe quando o trompete entra. Sensação que, no entanto, logo se corrige: é Hubbard quem está no solando agora. Acelerando e intensificando, ele imprime um leve desnorteio àquele cosmos mas, igualmente inteligente, não deixa escapar o tema. A emoção é captada com ainda mais astúcia por Hancock, que desmancha os dedos sobre o piano. Claro e denso ao mesmo tempo. Tudo isso desenhado pelo dedilhado trasteado de Carter. Ao final, no último chorus, Shorter estoura com parcimônia o agudo do sax enquanto o restante se mantém, demonstrando mais uma vez o controle conceitual do álbum em seu casamento de leveza e energia.

Agora é Hancock quem dá os primeiros acordes, mostrando que, mesmo num projeto de Shorter, parceiros como ele têm participação fundamental. O pianista determina o andamento lento e elegante de ”Fee-Fi-Fo-Fum”. Carter segura um blues de alta capacidade de leitura melódica. Que tema charmoso! O riff, em chorus, é repetido uma vez e, quando parece que vai se diluir, um rolo em crescendo de Jones sinaliza para Hubbard, que já salta em uma nota aguda para depois compor um solo emotivo. Shorter acata a mesma ideia, ora repetindo o tema, ora injetando mais respiros entre uma frase e outra. Porém, tomado pela emotividade, há o momento em que a acentua a seu modo, gerando ostinati típicos de seu estilo. Após uma breve participação de quem começou tudo aquilo, Hancock, o chorus é repetido com a mais alta precisão, desfechando com o tradicional titilar nos pratos de ataque.

A cadência leve de ”Fee-Fi-Fo-Fum” é pega emprestada para o tema seguinte, “Dance Cadaverous”. No entanto, não em um clima ameno mas, sim, num muito mais denso e etéreo, trazendo ao cool uma nova dimensão de sobriedade. Hancock dispara acordes que se dispersam dos sopros, acima deles, enevoando o ambiente. Jones, de pura sensibilidade, usa baquetas de madeira quase apenas nos pratos e o chipô; quando muito, na caixa. Já Carter entrega ao ar ressonâncias estendidas. Mas é Hancock quem norteia a melodia. Nada mais natural, então, do que ele mesmo começar solando. É de seu dedilhar e da textura do piano que se constitui a essência fantasiosa da canção, o que Hancock elabora em variadas cores, seja remetendo ao classicismo de um Gershwin, dando pinceladas do atonalismo de vanguarda europeia ou se apropriando da sutiliza romântica de Chopin. A personalidade lírica e ao mesmo tempo “cadavérica” do tema dá a Shorter argumento suficiente para este transitar entre dissonâncias e relevos no improviso. Música levemente perturbadora – ou seria instigantemente deliciosa?

Mais emblemática ainda é a faixa-título, em que Shorter e Hubbard já largam arrebatados e impecavelmente sintonizados. Eles executam um riff em tempo 4/4 no qual ainda brincam com a extensão do acorde e o perfil sonoro, mantendo e variando a intensidade do corpo do som até sua queda e iniciarem um novo ataque. Como se não bastasse, o restante da banda também se esmera. Jones, bluesy por demais; Carter, preciso, preenchendo os espaços; e Hancock: ah, Hancock! Que maestria! Se em ”Fee-Fi-Fo-Fum” e “Dance Cadaverous” sua contribuição é claramente notada, em “Speak No Evil” ele voa. Figuras soltas, oníricas, encadeamentos, glissandos, quase à parte do restante dos companheiros. Nos improvisos, os solistas expandem a coloração sobre a base modal, cada um a seu jeito: Shorter, buscando a pureza dos sons, pautado por uma brandura inquieta; Hubbard, criativo como sempre, repetindo frases de seus mestres; e, por fim, Hancock, ágil e impermanente, delicadamente impiedoso.

Mais uma balada doce e sensível, “Infant Eyes” se constrói a partir dos primeiros acordes do piano, o qual chama o sax para fazer-se conhecer a melodia. Sopros extensos e sentidos, como deve ser um bom tema romântico. Shorter o conduz sem pressa por quase 5 min dos 6’54 da faixa, entre riff e improviso, os quais, difusos, se diluem. Única sem solo de Hubbard, nela cabe a Hancock quebrar a fala enfeitiçada de Shorter, o que não dura muito tempo, pois o líder, sedento por expor o sentimento de seu sax, volta para dar os últimos acordes. “Wild Flower”, com algo de oriental como sugere a capa, desfecha na mesma atmosfera elegante de todo o álbum: sobriedade e coração. Repetindo a ordem, primeiro Shorter, depois, Hubbard e, por último, Hancock, todos sob a base rítmica e harmônica cunhada por Carter e Jones. Terminava ali a sessão registrada no Natal de 1964 nos estúdios Van Gelder, em Nova York, e posta em acetado meses depois.

A fase era tão boa que somente aquele ano de 1965 contaria com outros três discos igualmente antológicos de Wayne Shorter: “The Soothsayer”, “Et Cetera” e “The All Seeing Eye”. Hancock, igualmente, estava voando baixo, compondo discos solo, trilhas, fundindo a música pop ao jazz de maneira inseparável. A dupla voltaria a se encontrar em vários outros projetos, fosse nos sessentistas “Adam’s Apple” e “Schizophrenia”, de Shorter, fosse compondo a banda de Miles (“Smiles”, "In a Silent Way", “Big Fun”, “Water Babies”, entre outros), nos discos da V.S.O.P. ou nos trabalhos de Milton Nascimento (“Native Dancer”, “Courage”, “Raça”). A última vez que entraram juntos num estúdio foi para o disco-duo “1 + 1”, de 1997 e, agora, afinados como são há meio século, retomam a parceria para uma turnê que passa pelo Brasil. Nada mais pertinente, portanto, que ouvir – ou reouvir, àqueles que conhecem – uma das obras-primas em que ambos trabalharam juntos. Speak no evil: only, listen.
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FAIXAS:
1. Witch Hunt - 8:11
2. Fee-Fi-Fo-Fum - 5:54               
3. Dance Cadaverous - 6:45
4. Speak No Evil - 8:23
5. Infant Eyes - 6:54       
6. Wild Flower - 6:06

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OUÇA O DISCO





sexta-feira, 5 de novembro de 2021

Wayne Shorter - "Adam's Apple" (1966)

 

“’Adam’s Apple’, a faixa-título, representa à sua maneira uma espécie de jazz contemporâneo universal e o ímpeto da dance music combinados, uma atualização do blues mais familiar e um veículo para as divertidas jornadas às paradas de sucesso”. 
Don Heckeman, do texto da contracapa original do disco

Parecia interminável a inspiração de Wayne Shorter naqueles idos de anos 60. Não que o lendário saxofonista e compositor norte-americano não tivesse também representativa produção já nos anos 50, principalmente na The Jazz Massangers de Art Blakey na qual foi revelado, ou nas décadas que se seguiram dos anos 70 em diante. Ocorre que, principalmente no intervalo entre 1964 e 1970, anos em que esteve sob o selo Blue Note rodeado do que de melhor havia em capital humano e técnico, a obra do jovem Shorter, então na faixa dos 30 anos, dá a impressão de ter entrado num looping criativo. Foram vários discos dignos de perfeição, que pareciam encadear-se e lançados em curtos espaços de tempo entre um e outro -- não raro, num mesmo ano como “Night Dreamer”, “JuJu” e “Speak No Evil”, os três de 1964, ou “The Soothsayer”, “Et Cetera” e “The All Seeing Eye”, todos de um ano depois. Mudavam os integrantes, adicionavam-se elementos sonoros, experimentavam-se formatos, e a qualidade mantinha-se, como se fosse tudo a continuidade de uma mesma coisa.

E era. Devidamente selada pelo estilo marcante de tocar de Shorter – capaz de ir do mais feroz grito dissonante à absoluta leveza lírica –, esta sequência mágica de obras resulta, em 1966, em “Adam’s Apple”, seu 10º álbum solo e o 7º pela Blue Note. Nesta obra, o band leader está acompanhado de um trio afiadíssimo e com o qual tinha total entrosamento: Reggie Workman, na bateria; Joe Chambers, ao baixo; e o fiel escudeiro Herbie Hancock, ao piano. Experimentando aqui, reiterando características ali, “Adam’s...” é indubitavelmente mais um dos discos clássicos de Shorter desta fase áurea, o qual, inclusive, traz alguns de seus temas mais conhecidos.

Começando pela faixa-título, a primeira investida incisiva de Shorter no estilo jazz-soul. Lee Morgan, Donald Byrd, Blue Mitchell e o próprio Hancock já haviam aderido ao groove popular de James Brown, Otis Redding e Aretha Franklin, mas Shorter, be-boper de formação, não havia se entregado completamente ainda. “Adam’s Apple”, no entanto, é puro R&B, é o funk nas escalas jazzísticas que tanto o próprio Shorter se valeria anos mais tarde com a sua Weather Report, banda sinônimo do fusion. São quase 6 min de pura sonoridade pop: riff que gruda nos ouvidos; sax soando inteiro nas modulações de intensidade; piano martelando um ritmo que faz mexer os quadris; baixo dançante; e a bateria - um detalhe à parte - numa aula de marcação rítmica, tanto no chipô quanto na variação caixa/tom-tom. Shorter não resistia à tentação do pop e dava uma mordiscada graúda na maçã de Adão.

Como todo bom Shorter, não podem faltar as baladas, aquelas as quais ele se esbalda em elegância. Em “Adam’s...”, o músico faz isso em dois momentos: a versão de “502 Blues (Drinkin' And Drivin')”, um blues inebriado de paixão em que dá para se sentir, literalmente, dirigindo pela noite de Nova York enchendo a cara por um amor não correspondido; e na linda “Teru”, que retraz propositalmente acordes de outro de seus temas românticos, a clássica “Virgo”, de “Night Dreamer”.

Elemento fundamental para a estética de Shorter nesta e em várias outras épocas de sua longa carreira, o piano do amigo Hancock carrega toda uma atmosfera mágica que une classe, sensibilidade e arrojo. Essa característica, que perpasse toda a fase da Blue Note, quase como uma coassinatura, está fortemente presente em “El Gaucho”, uma bossa nova em que, mais uma vez, Workman se destaca executando com muito estilo e variabilidade timbrística o sincopado ritmo latino. Temas como este já davam a entender, aliás, porque Shorter e Hancock, em especial entre os quatro, se entrosariam tão bem com a música brasileira pouco tempo dali.

“Footsprint”, embora menos “pop” que a música que dá nome ao álbum, é um dos temas mais conhecidos do vasto repertório autoral de Shorter, compositor gravado desde muito cedo por outros jazzistas, inclusive. Talvez seja justamente isso que tenha feito este belo tema bluesy cair nas graças de um outro artista: Miles Davis. E quando este ícone do jazz gostava de algo, sabia-se o destino: adquiria-se outro status. Adotada por Miles, que a gravou em seu “Smiles”, de 1967, “Footsprint” entrou no set-list do trompetista e foi largamente executada em turnê pela Europa e Estados Unidos naquela metade dos anos 60 contando, inclusive, com o próprio Shorter na banda. Não podia dar em outra coisa que não se tornar um clássico do jazz, aqui gravada pela primeira vez.

No continuum shortesiano, não pode faltar também aquela música que desassossega o ouvinte, como são “Night Dreamer”, do disco ao qual dá nome, ou a enigmática “Dance Cadaverous”, de “Speak No Evil”. Aqui, é o caso de “Chief Crazy Horse”, com sua construção harmônica modal (num show à parte de todos, aliás) e variações de escala e compasso. Certamente a mais desafiadora para a banda, o que, dados o entrosamento e perícia do quarteto, não foi nenhum problema.

Como disse o crítico e editor da American Record Guide Don Heckeman, Shorter tem o talento e a técnica para fazer tudo o que deseja, mas o que mais o impressionava no então jovem músico era a capacidade de compor obras coesas a partir desta plasticidade e versatilidade. Para ele, “Adam’s...” é exatamente isso: “uma conquista ainda melhor em sua totalidade, uma vez que nos fornece um corte transversal revelador daquela que é a mais rara das qualidades: a maturidade artística”.

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FAIXAS:
1. "Adam's Apple" – 6:49
2. "502 Blues (Drinkin' and Drivin')" (Jimmy Rowles) – 6:34
3. "El Gaucho" – 6:30
4. "Footprints" – 7:29
5. "Teru" – 6:12
6. "Chief Crazy Horse" – 7:34
7. "The Collector"* (Herbie Hancock) – 6:54 
Todas as composições de autoria de Wayne Shorter, exceto indicadas
*Faixa bônus do relançamento em CD

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OUÇA O DISCO:

Daniel Rodrigues

terça-feira, 28 de maio de 2013

Wayne Shorter - "Night Dreamer" (1963)



“Este disco é um marco para mim,
pois veio em um momento em que eu
 estava entrando em uma nova fase como autor.
E também eu sabia que
 em meu primeiro álbum para a Blue Note
eu teria que dizer algo substancial.”
Wayne Shorter,
no texto do encarte original


São inúmeros os discípulos de Miles Davis no universo do jazz. A lista vai de mestres geniais como Chick Corea, Herbie Hancock, Sonny Rollins, John McLaughlin e John Coltrane – para mim, o maior deles. Mas talvez o mais fiel aluno tenha sido outro genial jazzista: o saxofonista Wayne Shorter, lenda viva da música mundial. De estilo arrojado tanto nos improvisos quanto nas harmonias, Shorter começou na cena em 1959 na banda bebop de Art Blakey, a The Jazz Messengers, pela qual não só ajudou a gravar álbuns memoráveis, como, hábil e líder, tornou-se logo o diretor musical do grupo. Além disso, como todos da sua geração, foi fortemente influenciado pelo jazz em escalas do “divisor de águas” "Kind of Blue", de Miles (1959), passando, tempo depois, a formar o aclamado “segundo grande quinteto” do mestre, juntamente com Hancock, Ron Carter e Tony Williams. Tudo isso deu embasamento para Shorter, valendo-se de todas estas referências, gravar, em 1963, seu grande trabalho: o encantador “Night Dreamer”, onde se nota um compositor maduro e criativo, além de um instrumentista virtuoso.

Depois de três LP’s pelo selo Vee-Jay, onde ainda se percebe um artista em busca de identidade própria, “Night Dreamer”, seu primeiro pela mais cultuada gravadora do jazz, a Blue Note, é o acerto da medida: cool, sofisticado, intenso, coeso. Tudo favorecendo: a técnica de estúdio Rudy Van Gelder, a produção caprichada de Alfred Lion e esplêndida arte, na foto borrada de Francis Wolff e o design de Reid Miles. Campo preparado para um disco impecável. Como o título sugere, começa numa atmosfera de sonho com a arrebatadora faixa-título, em que o piano de McCoy Tyner anuncia, em acordes ondulantes e oníricos, a beleza da melodia modal que se forma a seguir com o restante da banda (e que banda!): Lee Morgan (trompete), Reggie Workman (baixo) e Elvin Jones (bateria). O chorus, sobre o andamento cadenciado e bluesy de Jones e dos dois tempos de quatro do piano, desenha um riff pegajoso que, entre leves ascendências e declives, surpreende pelas dissonâncias sem, contudo, se afastar do coração do ouvinte. Espiral como um sonho, volta, no fim da série, para o acorde inicial. A mesma ideia circular serve de concepção para os improvisos, momento em que Shorter dá um verdadeiro show de tempos, variações e groove. Há claras inspirações no fraseado econômico e certeiro de Miles, inclusive na repetição da famosa frase de trompete que antecede o solo histórico de Coltrane em "Freddie Freeloader", do “Kind of Blue”, que Morgan pronuncia rapidamente mas com exatidão, numa visível homenagem. No final, ao invés de toda a banda tencionar para cair junta, o mais comum à época, Shorter subverte, desfechando-a em pleno solo ascendente, em ritmo aberto.

Os anos como cérebro da The Jazz Messengers deram à Shorter a cancha de produzir adaptações tão primorosas como a de "Oriental Folk Song", uma canção tradicional chinesa em que o músico recria o tema original timbrística e harmonicamente, compondo um jazz novamente complexo em construção, mas orgânico a quem ouve. A introdução em tons orientais abre espaço para uma segunda e intermediária parte com o chorus de tempos longos e articulados. Porém, a música progride ainda mais, e uma terceira sequência atinge outra envergadura, subindo a gradação em uma interpretação vigorosa de toda a banda.

“Virgo”, uma das mais lindas baladas do cancioneiro jazz, vem em seguida, e aqui Shorter novamente arrebenta, mas não da forma carregada como nas primeiras faixas, mas, sim, em solos lânguidos e perfeitamente pronunciados. Sem pressa e repleta de sussurros, pausas e desvelos; sensual como uma transa apaixonada madrugada adentro. É tão incrível que, mesmo empunhando um saxofone tenor, há momentos em que parece estar tocando um sax alto, tamanho rebuscamento que extrai das notas graves e na modulação que atinge com o instrumento. Para arrematar, um breve solo enlevado à capela, só sax e ouvidos. Perfeita.

Embalada e não menos saborosa, “Black Nile” vem com toda a banda em altíssimo nível de performance. É, seguramente, a mais “agitada” do disco, que só veio a acelerar-se um pouco mais já na sua segunda metade. No entanto, o tom suave que perfaz o álbum é novamente demarcado em "Charcoal Blues", em que o saxofonista exercita pequenas variações sobre o riff, numa simplicidade mais uma vez com ares de Miles Davis, inclusive pelo visível apreço pelo blues. Nesta, McCoy Tyner merece atenção especial na manutenção da base e, principalmente, em seu solo.

Nada mais perfeito para terminar uma noite de fantasia do que com o próprio “Armageddon". Considerada por Shorter como o ponto focal do álbum, contém como mensagem a força da dualidade do ser humano na última batalha entre o bem e o mal. Por isso, as notas reflexivas e densas, mas nem por isso menos belas. Nela, sonho passa a significar utopia, alucinação. “A minha definição do julgamento final é um período de esclarecimento total que vai descobrir o que somos e por que estamos aqui", disse o compositor sobre esta obra. Não sei se um dia chegaremos a isso, mestre Shorter, mas certamente sua música nos eleva a um ponto que, mesmo que apenas como meros sonhadores de uma noite qualquer, talvez consigamos revelar algo tão profundo de nós mesmos.

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Corrijo em tempo um erro desta resenha: “Night Dreamer” não é O grande trabalho de Wayne Shorter, mas, sim, seu PRIMEIRO grande trabalho. Em plena atividade mesmo prestes a completar 80 anos, o músico lançou este ano um novo CD, o elogiado “Without A Net”. Mas para alguém dono de uma obra tão extensa e marcante, eleger apenas um disco como o melhor é tarefa impossível. Basta lembrar-se de outros grandes discos solo, como ”Ju-Ju” (1964), “Speak no Evil” e “The Soothsayer” (ambos de 1965), os trabalhos com uma das pioneiras do jazz-fusion, a Wheater Report, nos anos 70, ou as parcerias, como os que gravou com Milton Nascimento, Carlos Santana e Joni Mitchell.

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FAIXAS:
1. Night Dreamer - 7:15
2. Oriental Folk Song - 6:50
3. Virgo - 7:00
4. Virgo (alternate take 14) – 7:03
5. Black Nile - 6:25
6 Charcoal Blues - 6:50
7. Armageddon - 6:20

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Ouvir:



segunda-feira, 4 de abril de 2016

Herbie Hancock e Wayne Shorter - Brasil Jazz Fest - Vivo Rio - Rio de Janeiro (01/04/2016)



A permanente reinvenção
por Daniel Rodrigues

As lendas vivas do jazz apaludidas de pé pelo Vivo Rio.
foto: Leocádia Costa
No final do longo documentário “Jazz”, que soma mais de 12 horas de registros e documentação, Ken Burns, seu realizador, lança o questionamento de que rumos o jazz tomaria no futuro. Entre promessas e incertezas, um dos argumentos era o de que o estilo sempre soube se reinventar, e que seus artífices têm gravado em seu espírito essa incumbência. Não que se trate da criação de um novo gênero no jazz, mas o que se viu no Vivo Rio na noite do último dia 1º de abril foi, certamente, fruto dessa alma inquieta e pulsante dos verdadeiros jazzistas. Herbie Hancock e Wayne Shorter, justamente dois dos músicos mais revolucionários do jazz e da música moderna do século XX, subiram ao palco para justificar que o estilo ainda tem muito, mas muito fôlego em ternos de criação e improviso.

Em apenas sete números, presenciou-se dois músicos completamente absorvidos por sua arte. Mesmo num espaço amplo e lotado (não apenas de fãs, mas infelizmente também de protoadmiradores que, claro, não tiveram paciência para apreciar o que estava acontecendo), Hancock e Shorter exibiram uma apresentação intimista. Altamente concentrados em cada nota, em cada ataque, em cada hesitação para, aí sim, entrar no tempo certo que sua emoção diz. Hancock, mais vivaz, era quem comandava a harmonia, fosse em seu piano de cauda, em seu teclado Korg ou no sintetizador, do qual extraía climas em loops e efeitos não raro desconcertantes. Shorter, um pouco fechado no início (intimidado não é o mais adequado ou provável), soltou-se de tal forma que foi ele quem, por outro lado, conduziu a emoção do público em vários momentos. Os improvisos são econômicos e nunca extensos; às vezes, quase lacônicos. Há quem possa lhe atribuir à idade avançada e a inevitável perda de capacidade pulmonar (82 anos, enquanto Hancock, mesmo também vovô, tem sete a menos), mas a sensação nítida que me ficou foi a de um Shorter ainda mais dominador dos tempos e das figuras sonoras que cria. Muitas vezes, foi possível ver Miles Davis no palco, o mestre que ensinou à dupla a arte do essencial – embora ambos tenham aprendido também a intempestividade do free-jazz.

Aliás, uma reelaboração do free-jazz talvez seja uma definição possível para o show apresentado pelos jazzistas norte-americanos. Entretanto, a classificação não é assim tão simplória, visto que não deixaram de lado as vivências do fusion, da música clássica, da vanguarda erudita e, por que não, do próprio jazz que lhes formou, o hard bop e o modal, que tanto dominam. Em meio a improvisos e construções baseadas nessa premissa, houve momentos de viagens cósmicas, motivados pelo piano e teclado transcendentes de Hancock, e da mais fina delicadeza, seja no dedilhado sensível ou nas frases budistas do sax soprano de Shorter. Uma montanha-russa de emoções.

O que se viu foi, de fato, duas entidades, duas velhas entidades da música em pleno exercício de liberdade, como amadores cheios de vida. Propondo um conteúdo denso e hermético, com altas cargas de musicalidade, Hancock e Shorter tiveram a jovial e admirável coragem de inovar. Com aplausos garantidos somente pelo que representam, eles podiam muito bem tocar para a galera apenas os clássicos, quando muito intercalando algum tema mais “difícil” para facilitar a deglutição do público. Não. Eles seguiram o caminho de seus corações e da arte que tanto respeitam e militam. Entraram e fizeram aquilo que se propunham, que faz sentido para eles. E se fizer sentido para alguém do público, que bom: intenção atingida. No meu caso, foi mais do que plenamente. A honestidade deles era tanta que até mesmos no meio de solos engendrados ali, no calor do improviso, era possível identificar seus estilos, seus modos e até referenciar a alguns temas do passado em que tocaram juntos, como “The All Seeing Eye”, composição de Shorter de 1965, na abertura do show.

O bis não poderia ter sido melhor: no mesmo clima free, a dupla lançou "Encontros e Despedidas", de Fernando Brant e Milton Nascimento – este último, na plateia prestigiando os amigos como já o vi fazendo. O riff da canção se funde ao próprio solo do saxofone, diluindo-se nos acordes e no andamento. Se por um lado esse número foi o único respiro àqueles que esperavam standarts cantaroláveis para contar aos amigos que ouviram a música que conheceram no Youtube, o clássico da MPB (e do jazz moderno mundial) fechou com a mesma dignidade de toda a apresentação: com densidão e alma. Herbie Hancock e Wayne Shorter nos presentearam com uma celebração do jazz em seu estado essencial: o da permanente reinvenção.

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Enterprise de sons e timbres
por Paulo Moreira

Herbie manipulando os teclados e sntetizadores.
foto: Leocádia Costa
Foi um começo de luxo! O Vivo Rio esteve completamente lotado para ver a abertura do Brasil Jazz Fest com Herbie Hancock e Wayne Shorter. O zum-zum vinha de São Paulo: eles não tocam nenhum hit. Nem "Cantaloupe Island", nem "Footprints". Nem música reconhecível. "É só viagem...". Por mais de 70 minutos – e com direito a DOIS bis – Herbie & Wayne transportaram a plateia para um outro universo. Um outro estágio. Basicamente fazendo uso de um piano e um sax soprano - e intervenções esporádicas de um teclado - os veteranos músicos mostraram que a idade avançada (Herbie tem 75 anos e Wayne 82!) não é sinônimo de acomodação. Ambos tiveram a coragem de apostar no desconhecido e nas habilidades técnicas e de feeling para nos carregar a outro patamar sensitivo-musical.

Percebendo o convite, os presentes embarcaram nesta Enterprise de sons e timbres e se deixou viajar no cosmos musical sem precisar de gasolina. Até mesmo as eventuais explorações do teclado foram digeridas pelo público. Em certo momento, Herbie & Wayne me lembraram outra parceria de piano e sax soprano que também se utilizou do free-jazz como base nas improvisações: Mal Waldron & Steve Lacy, que tocaram no início dos anos 2000 no falecido e saudoso Chivas Jazz Festival.

Como bônus, Wayne troca de palheta em pleno palco e ataca de "Encontros e Despedidas", de Milton Nascimento, que estava na plateia, brincando com a melodia e fazendo um jogo de gato-e-rato com citações de músicas do repertório do amigo brasileiro. A reação do público foi tão carinhosa que Hancock, ao final, espantado, perguntou se tinha sido divertido. Claro que foi, seu Herbert. Quem esteve lá compreendeu que grandes instrumentistas e criadores estão sempre de olho no futuro. Mesmo tendo uma bagagem de 50 e tantos anos de serviços prestados à música dos Séculos XX e XXI.

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A Magia da Música
por Cly Reis


Hancock e Shorter em pleno improviso.
foto: Leocádia Costa
Um daqueles momentos sublimes que se vive poucas vezes na vida. A oportunidade de presenciar a apresentação de dois gênios da humanidade justificando plenamente toda a expectativa que se cria quando se fala em verdadeiras lendas da música reunidas em um palco. E digo gênios sem medo de pecar pelo exagero porque tudo o que desfilaram na noite gloriosa no palco do Vivo Rio não foi nada menos que genialidade. Numa apresentação memorável Wayne Shorter empunhando seu saxofone e Herbie Hancock comandando seu piano e eventualmente um teclado, exibiram técnica, criatividade e ousadia em números longos inspirados e cheios de improvisações quase impensáveis para nós pobres mortais. Podem ter decepcionado um pouco aos que já tivessem ido com alguma preconcepção do espetáculo e com expectativas prontas de repertório, uma vez que não tocaram seus clássicos ou suas obras mais badaladas, mas tenho certeza que todos que perceberam o verdadeiro espírito do show e que deixaram suas sensibilidades os guiarem não só não tiveram nenhum tipo de desapontamento, como, pelo contrário, ficaram gratos pela opção da dupla. Alguns foram embora cedo, é verdade, e lamento por eles, não penas por não terem entendimento para o que estava ocorrendo ali mas também pelo que perderam pois nós que ficamos pudemos nos regozijar com aquela magia que pairava no ar a ponto de quase abandonarmos nossos corpos levados pela música.
Uma noite mágica em que dois gigantes da música nos proporcionaram momentos de prazer e elevação espiritual e, em meio a este universo atualmente tão saturado de coisas pobres, repetitivas, insignificantes e descartáveis, fizeram o favor de nos lembrar porque a música é, antes de mais nada, arte.


sábado, 8 de janeiro de 2022

83 anos da Blue Note - Os 10 discos preferidos

Entre as gravadoras, o nome Blue Note é certamente o mais mencionado entre todos aqui no blog quando falamos de música. Mais do que qualquer outro selo do jazz, como Atlantic, Impulse!, Columbia ou ECM, ou mesmo da música pop, como Motown, Chess, Factory e DefJam, a Blue Note Records já foi destacada em nossas postagens em pelo menos um cem número de vezes, aparecendo em diversos de nossos ÁLBUNS FUNDAMENTAIS como informação essencial para, inclusive, a essencialidade das próprias obras. Não à toa. O selo nova-iorquino, que completou 83 anos de fundação esta semana, feito encabeçado pelos produtores musicais Alfred Lion e Max Margulis nos idos de 1939, transformou-se, no transcorrer das décadas, num sinônimo de jazz moderno de alta qualidade e bom gosto.

O conceito, aliás, já está impregnado nas caprichadas e conceituais artes dos discos, como nas capas emblemáticas de Reid Miles, as fotos de Francis Wolff e, por vezes, a participação de designers convidados, como Burt Goldblatt, Jerome Kuhl e, nos anos 50, um então jovem artista visual de Pittsburgh chamado Andy Wahrol. Tudo encapsulado pela mais fina qualidade sonora e técnica, geralmente gerenciada pelas hábeis mãos do engenheiro de som Rudy Van Gelder em seus mágicos estúdios Englewood Cliffs, em New Jersey, outro emblema de qualidade associado à marca Blue Noite.

Mas, claro, o principal é a música em si. Musicalmente falando, a gravadora em diferentes épocas reuniu em seu elenco nomes como Horace Silver, Herbie Nichols, Lou Donaldson, Clifford Brown, Jimmy Smith, Kenny Burrell, Jackie McLean, Freddie Hubbard, Donald Byrd, Wynton Marsalis, Andrew Hill, Eric Dolphy, Cecil Taylor, Hank Mobley, Lee Morgan, Sonny Clark, Kenny Dorham, Sonny Rollins e tantos outros. Há, inclusive, os que lhe tiveram passagem rápida, mas que, mesmo assim, não passaram despercebidos, como Miles Davis, nos primeiros anos de vida do selo, ou Cannonball Adderley e John Coltrane, que em seus únicos exemplares Blue Note, no final dos anos 50, deixaram marcas indeléveis na história do jazz.

Pode-se dizer sem medo que pela Blue Note passaram bem dizer todos os maiores músicos do jazz. Se escapou um que outro – Charles Mingus, Chet Baker, Albert Ayler, Ahmad Jamal – é muito. Outros, mesmo que tenham andando por outras editoras musicais, tiveram, inegavelmente, alguns de seus melhores anos sob essa assinatura, tal Wayne Shorter, Dexter Gordon e McCoyTyner.

Tanta riqueza que a gente não poderia deixar passar a data sem, ao menos, destacar alguma lista como gostamos de fazer aqui. Melhor, então: destacamos cinco delas! Para isso, chamamos nossos amigos jornalistas – e profundos conhecedores de jazz – Márcio Pinheiro e Paulo Moreira, contumazes colaboradores do blog, para darem, juntamente conosco, Cly e eu, suas listagens de 10 discos preferidos da Blue Note Records. Ainda, para completar, puxamos uma seleção feita pelo site de música britânico JazzFuel, em matéria escrita pelo jornalista especializado em jazz Charles Waring no ano passado. A recomendação, então, é a seguinte: não compare uma lista com outra e, sim, aproveite para ouvir ou reouvir o máximo possível de tudo que cada uma traz. Garantia de que as mais harmoniosas notas azuis vão entrar em sua cabeça.


Márcio Pinheiro
Jornalista

2 - Eric Dolphy - "Out to Lunch" (1964)
3 - Grant Green - "The Latin Bit" (1962)
4 - Herbie Hancock - "Takin' Off" (1962)
6 - Joe Henderson - "Mode for Joe" (1966)
7 - John Coltrane - "Blue Train" (1958)
9 - Ron Carter - "The Golden Striker" (2002)
10 - Sonny Rollins - "Newk's Time" (1959)



Paulo Moreira
Jornalista

1 - Thelonious Monk - "Genius Of Modern Music Vols. 1 e 2" (1951/52) 
3 - Eric Dolphy - "Out to Lunch"
4 - John Coltrane - "Blue Train"
5 - Bud Powell - "The Amazing Bud Powell Vol. 1 e 2" (1949/51)
6 - Art Blakey And The Jazz Messengers - "Moanin'" (1959)
8 - Sonny Clark - "Cool Struttin'" (1958)
10 - Grant Green - "The Complete Quartets With Sonny Clark" (1997)
Mais Três Discos Bônus: 
11 - Freddie Hubbard & Woody Shaw - "The Freddie Hubbard And Woody Shaw Sessions" (1995)
12 - Hank Mobley - "The Turnaround" (1965)
13 - James Newton - "The African Flower" (1985)


Cly Reis
Arquiteto, cartunista e blogueiro

1. Cannonball Aderley - "Sonethin' Else"
3. Horace Silver - "Song for My Father"
4. Lee Morgan - "The Sidewinder"
8. Wayne Shorter - "Speak No Evil"
9. Herbie Hancock - "Maiden Voyage" 


Daniel Rodrigues
Jornalista, radialista e blogueiro

1 - Herbie Hancock – "Maiden Voyage" (foto)
2 - Cannonball Adderley - "Somethin Else"
3 - Lee Morgan - "The Sidewinder"
4 - Wayne Shorter - "Night Dreamer"
5 - Grant Green - "Matador"
6 - McCoy Tyner - "Extensions"
7 - Horace Silver - "Song for my Father"
8 - John Coltrane - "Blue Train"
9 - Dexter Gordon - "Go"
10 - Cecil Taylor - "Unit Structures" (1965)


Charles Waring
Jornalista da JazzFuel

1 - Bud Powell – "The Amazing Bud Powell (Vol 1)" (1949)
2 - Clifford Brown – "Memorial Album" (1956)
3 - Sonny Rollins – "A Night At The Village Vanguard" (1957)
4 - John Coltrane – "Blue Train"
5 - Art Blakey and The Jazz Massangers – "Moanin’" 
6 - Kenny Burrell – "Midnight Blue" (1963)
7 - Horace Silver – "Song For My Father" 
8 - Lee Morgan – "The Sidewinder" 
9 - Eric Dolphy – "Out to Lunch"
10 - Herbie Hancock – "Maiden Voyage" 

 Daniel Rodrigues

sexta-feira, 1 de abril de 2016

Herbie Hancock e Wayne Shorter - Brazil Jazz Fest




Shorter e Hancock
(foto: divulgação oficial evento)
Horas antes de ter o privilégio de assistir os gênios da raça Herbie Hancock e Wayne Shorter juntos, é normal a qualquer fã começar a se perguntar: “o que será que eles vão tocar?” “Será que vai rolar alguma de "Speak No Evil"? “Ou de ‘Adam’s Apple’”, trabalhos em que tocaram juntos. Como quando vou ao cinema assistir a algum filme que ainda não vi, gosto de não me informar muito a respeito. Sou movido pela expectativa e por alguma informação genérica a respeito. O resto é a emoção da surpresa. Assim é com os grandes shows que irei ver: não quero saber nada do set list antes: o barato mesmo é ouvi-las no momento mágico da hora. Em se tratando de Shorter e Hancock, compositores, instrumentistas e, acima de tudo referências da música moderna em vários níveis, a expectativa do que será visto é imensa neste show que apresentarão durante o Brasil Jazz Fest, cuja edição carioca os receberá no dia 1° de abril.
Ouvi por cima de que eles tocam algo da fase em que compuseram o segundo quinteto de Miles Davis, nos anos 60. Igualmente, creio que selecionem clássicos de um e de outro para tocarem juntos, que isso ambos têm aos montes, até porque há como norteador o disco que gravaram neste mesmo formato de duo em 1997, chamado exatamente “1 + 1”.
Não importa. O que importa mesmo é que, assim como outros shows históricos que já vi, este será mais um deles. E a considerar que, assim como João Donato, que vi pela primeira vez em 2014 quando este tinha 80 anos, com Shorter e Hancock, aliado ao fato de ainda serem estrangeiros, a ocasião é semelhante, visto que o primeiro tem já 82 e o segundo faltam apenas cinco anos para chegar nas oito décadas. Ou seja: oportunidade rara e, provavelmente, única enquanto esses dois gênios ainda pisam sobre o planeta azul. Se a emoção não me congelar, volto aqui para contar a todos como foi depois do show. 




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show: Herbie Hancock e Wayne Shorter
31° Brazil Jazz Fest
local: Vivo Rio

(Av. Infante Dom Henrique, 85 – Parque do Flamengo)
data: 1º de abril, sexta, 21h

quinta-feira, 19 de agosto de 2021

Lee Morgan - “The Gigolo” (1965)

 

“Eu fiquei com raiva por ela ter feito aquilo com um amigo meu e alguém que contribuiu tanto em sua vida curta à nossa música, mas também senti compaixão, porque aquela era a mulher que havia lhe tirado da lama e tornou possível ele voltar a ser artista.” 
Paul West, baixista de jazz e amigo de Lee Morgan

Como no rock, a história do jazz também é marcada por astros que tiveram uma passagem muito breve sobre o palco da vida. Se é comum lembrar-se de Jim Morrison, Janis Joplin, Kurt Cobain e Amy Winehouse, no gênero mais norte-americano de todos não é muito diferente. Eric Dolphy, Albert Ayler (mortos aos 34 anos), Wynton Kelly (40), John Coltrane (41) e Django Reinhardt (43) são exemplos de músicos de jazz que tiveram suas trilhas abreviadas seja por questões de saúde, seja por alguma tragédia, caso este de outro grande nome do jazz: Lee Morgan. O enfant terrible do trompete, que, aos 17 anos, já assombrava Nova York com seu virtuosismo e confiança, foi assassinado quando tinha apenas 33 por um tiro desferido propositalmente pela própria esposa. Morgan, assim, viveria pouco mais de uma década após sua estreia. Tempo suficiente, contudo, para gravar 20 álbuns próprios, vários deles memoráveis e sem os quais é impossível contar a trajetória do jazz moderno, como “The Cooker” (1958), “Search For The New Land” (1966) e “Live At The Lighthouse” (1971). Além destes, outro indispensável trabalho de Morgan deste período mágico é “The Gigolo”, de 1965.

Tal um roqueiro, a vida intempestiva de Morgan refletia-se na sua arte para bem e para mal. Junto à genialidade, convivia a dependência de heroína, tristemente comum entre os músicos de jazz da época. Em meados dos anos 60, já alçado a grande talento do seu instrumento depois de Miles Davis, Morgan quase sucumbiu às drogas. Quem o salvou foi aquela que pode ser considerada seu “bálsamo maligno”: a esposa Helen, que anos mais tarde, ironicamente, seria também sua algoz. Mulher negra, independente e de vida difícil, foi ela, para quem tinha 13 anos de diferença, que recolheu da sarjeta o jovem Morgan. Afeiçoaram-se e casaram-se, o que não quer dizer, no entanto, que tenham vivido às mil maravilhas. Entre o amor e o ódio, a convivência entre os dois, abastecida por momentos bons mas também por ciúmes e traições, oscilava, o que aparecia na música de Morgan conforme a situação. “The Gigolo”, desta fase, não poupa em ironia, visto que faz uma sarcástica referência à conturbada e dúbia relação dele com Helen, que mais do que somente amante, também lhe era empresária e quase uma mãe adotiva. Um relacionamento tão controverso, que parecia por vezes que ele aproveitava-se dela como um gigolô.

Graças a ela, porém, Morgan entrava nos estúdios Van Gelder, em New Jersey, em 1º de julho daquele ano de cara e pulmões limpos e com um supergrupo formado por Bob Cranshaw (baixo), Billy Higgins (bateria), Harold Mabern Jr. (piano) e Wayne Shorter (sax tenor). A boa fase fica explícita no memorável tema de abertura: “Yes I Can, No You Can't”. Um animado e suingado jazz-funk, fusão a qual Morgan já havia sido um dos precursores desde “The Sidewinder”, de um ano antes, gravada posteriormente, inclusive, pelo pai da soul, James Brown. Modernidade, porém, sem perder a elegância bop aprendida nos night clubs nova-iorquinos desde os anos 50 em bandas como a Orquestra Dizzy Gillespie, a Hank Mobley Quintet e a Jazz Massangers, nas quais tocou antes de alçar seu próprio voo. Shorter, virtuoso, abre os trabalhos de solo, seguido pelo próprio Morgan, que tem a “cozinha” mais eficiente da sua carreira em operação: um incrível Higgins não poupando pratos, rolos e batidas firmes marcando o ritmo; Mabern Jr., reverenciando o blues nos teclados; e Cranshaw, outro craque, fazendo o baixo mexer os quadris.

Escrita por Shorter – que dificilmente não deixa sua marca com alguma composição própria em trabalhos dos colegas, compositor profícuo que é – é o saxofonista que improvisa por cerca de 3 min dos pouco mais de 5 da faixa. Mabern Jr. também participa para, somente quase ao final, Morgan, generoso e com espírito de grupo, não ofuscar o parceiro e apenas dividir com ele um duo entre sax e trompete. Saborosa, daquelas de acompanhar estalando os dedos, “Speedball” vem na sequência, com seu riff encantador e seus detalhes de leve quebra das frases. O band leader, nesta, toma a frente no solo: limpo, bem pronunciado, engendrado com a máxima integridade de um músico em boa forma física e mental. 

Muito bem apropriada por Morgan, a música de Styne e Cahn, que dá título ao álbum, carrega complexidades harmônicas muito distintas, inclusive um toque hispânico pouco visto no trabalho do trompetista até então, talvez o que menos tenha aderido de sua geração a esta tendência, que fez a cabeça dos jazzistas a partir da segunda metade dos anos 50. Modal intenso, "The Gigolo" é daquelas que tiram o ouvinte do chão. E que solo de Morgan! Em tom alto, ele exercita tudo o que sabe (viradas, ataques, escalonamentos, vibratos), enquanto o grupo talentosamente mantém por trás uma base quase tão solística quanto. Shorter também se esmera no improviso, elevando ainda mais a atmosfera emotiva, algo que ele sabe muito bem fazer. Após mais um chorus, Morgan volta para, aí sim, arrebentar tudo de vez.

Mesmo não sendo um rocker, Morgan tinha muito do espírito jovem destes, pois também sabia quebrar padrões. É o que ele faz com sutileza com “You Go To My Head”, uma tradicional balada, que ganha, na versão do criativo e subversor trompetista, um tom mais inconstante e lírico como ele próprio o era em vida. Sem perder o romantismo, Morgan e sua trupe dão ao número um improvável clima cadenciado, boper, que redimensiona o charme desse standart. Como Coltrane fez com “My Favourite Things”, transformando um singelo tema infanto-juvenil em um jazz modal arrebatador, Morgan aplica a mesma inventividade ao capturar para si o cerne do tema da dupla Gillespie e Coots e recriá-lo. Um final de disco com o tamanho da revolução que Morgan legou ao jazz.

Ceifada prematuramente por um acontecimento trágico, assim como a de vários ídolos do rock, a vida de Lee Morgan guarda essa dubiedade muitas vezes típica dos grandes: uma capacidade que parecia infinita, não fosse a implacável finitude material. Como nos romances ou na mitologia, vida e morte, beleza e terror, amor e ódio se entrelaçam para deixar para sempre algo maior do que o convencional. Como lembra Shorter, falando com carinho do colega e parceiro: “Quando gravávamos, sempre havia a ideia de que aquilo duraria para sempre, de que o que escolhemos perdurará”.

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FAIXAS:
1. “Yes I Can, No You Can't” (Lee Morgan) - 7:23
2. “Trapped” (Wayne Shorter) - 5:57
3. “Speedball” (Morgan) - 5:29
4. “The Gigolo” (Jule Styne, Sammy Cahn) - 11:01
5. “You Go To My Head” (Haven Gillespie, J. Fred Coots) - 7:20

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OUÇA O DISCO:

Daniel Rodrigues