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sábado, 2 de junho de 2018

"Esculpir o Tempo", de Andrei Tarkovski - ed. Martins Fontes (1990)



"Qual é a essência do trabalho de um diretor?
 Poderíamos defini-la como 'esculpir o tempo'.
 Assim como o escultor toma um bloco de mármore e,
guiado pela visão interior de sua futura obra,
 elimina tudo que não faz parte dela
- do mesmo modo, o cineasta, a partir de um 'bloco de tempo'
constituído por uma enorme e sólida quantidade de fatos vivos,
corta e rejeita tudo aquilo que não necessita,
 deixando apenas o que deverá ser elemento do futuro filme,
o que mostrará ser um componente essencial
da imagem cinematográfica."
Andrei Tarkovski




Grande admirador que sou da obra de Andrei Tarkovski, fiquei imediatamente interessado no livro "Esculpir o Tempo", de autoria do próprio cineasta, assim que o descobri. Escrito no período em que as atividades profissionais do cineasta russo estavam suspensas e entre intervalos de filmagens, "Esculpir o Tempo" repassa praticamente toda a produção cinematográfica do diretor trazendo curiosidades, informações, reflexões e revelações acerca de toda sua obra, fotos de filmes, trechos de roteiros, análises de obras de outros cineastas como Bresson, Bergman e Kurosawa, além de belíssimos poemas de seu pai, Arseni Tarkovski.
Além da expectativa por ver revelados pormenores e particularidades de uma filmografia tão rica, tinha especial curiosidade pelos símbolos recorrentes em seus filmes como água, cavalos, vento, no que acabei, de certa forma, vendo frustradas minhas intenções de saciá-la mas ao mesmo tempo me sentindo valorizado na condição de espectador, por conta da naturalidade com que o diretor trata tais elementos, não atribuindo-lhes senão, na maior parte das vezes, nenhuma característica que não suas próprias belezas e fascínios naturais ("A chuva, o fogo, a água, a neve, o orvalho, o vento forte - tudo isso faz parte do cenário material em que vivemos; eu diria mesmo da verdade de nossas vidas (...) Não estou tentando me esquivar à minha plateia, ou tentando ocultar do espectador alguma intenção secreta particular: estou recriando meu mundo com detalhes que me parecem expressar com mais exatidão e plenitude o sentido indefinível da nossa existência."). Mas ainda assim, dando margem a possíveis interpretações, Tarkovski mostra-se extremamente generoso e respeitoso com compreensões diversas que seus espectadores curiosos e interessados possam vir a ter em relação não só destes elementos como de seus filmes em si ("O autor não pode esperar que sua obra seja entendida de uma forma específica e de acordo com a percepção que tem dela. Tudo o que pode fazer é apresentar sua própria imagem do mundo, para que as pessoas possam olhar esse mundo através dos seus olhos e se deixem impregnar por seus sentimentos, dúvidas e ideias."); e ao contrário, severo em relação àqueles pretensiosos, levianos ou preguiçosos que não buscam significados e conteúdo dentro de sua obra. Tal postura tão aberta em relação à interpretação, que poderia sinalizar para alguém mais precipitado uma forma de defesa de um artista perdido que na verdade não tivesse, nem ele próprio, uma ideia clara sobre o que colocara na tela, é facilmente rebatida pela clareza com que suas concepções artísticas e conceituais são descritas no livro e a coerência entre estes conceitos e sua produção.
A maneira como Tarkovski vê cinema, vê a arte, como encara seus compromissos enquanto cineasta, enquanto homem e o que pretende transmitir, é algo fascinante e só valoriza ainda mais sua obra ("Um artista que não tenta buscar a verdade absoluta, que ignora os objetivos universais em nome de coisas secundárias, não passa de um oportunista."; "O poeta pensa por imagens, com as quais, ao contrário do público ele pode expressar sua visão do mundo. É óbvio que a arte não pode ensinar nada a ninguém, uma vez que em quatro mil anos, a humanidade não aprendeu nada."). Suas concepções, suas pretensões artísticas, seu perfeccionismo, seu amor à arte são tão verdadeiros e admiráveis que chegam a deixar um cinéfilo, fã de seu trabalho, envergonhado por assistir a tanta porcaria que ainda temos coragem de chamar de filmes. Mas... a gente não tem vergonha na cara mesmo e acaba indo ver "Vingadores: Guerra Infinita" e ainda sai achando tudo muito bom. Perdão, Tarkovski, perdão.



Cly Reis

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