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segunda-feira, 1 de janeiro de 2024

cotidianas #818 - "No ano passado..."




Atirei-me, pois, metaforicamente, pela janela do tricentésimo-sexagésimo-quinto andar do ano passado
"O suicídio de Dorothy Hale"
Frida Kahlo (1938)

Já repararam como é bom dizer "o ano passado"? É como quem já tivesse atravessado um rio, deixando tudo na outra margem...Tudo sim, tudo mesmo! Porque, embora nesse "tudo" se incluam algumas ilusões, a alma está leve, livre, numa extraodinária sensação de alívio, como só se poderiam sentir as almas desencarnadas. Mas no ano passado, como eu ia dizendo, ou mais precisamente, no último dia do ano passado deparei com um despacho da Associeted Press em que, depois de anunciado como se comemoraria nos diversos países da Europa a chegada do Ano Novo, informava-se o seguinte, que bem merece um parágrafo à parte:

"Na Itália, quando soarem os sinos à meia-noite, todo mundo atirará pelas janelas as panelas velhas e os vasos
 rachados".

Ótimo! O meu ímpeto, modesto mas sincero, foi atirar-me eu próprio pela janela, tendo apenas no bolso, à guisa de explicação para as autoridades, um recorte do referido despacho. Mas seria levar muito longe uma simples metáfora, aliás praticamente irrealizável, porque resido num andar térreo. E, por outro lado, metáforas a gente não faz para a Polícia, que só quer saber de coisas concretas. Metáforas são para aproveitar em versos...

Atirei-me, pois, metaforicamente, pela janela do tricentésimo-sexagésimo-quinto andar do ano passado.

Morri? Não. Ressuscitei. Que isto da passagem de um ano para outro é um corriqueiro fenômeno de morte e ressurreição - morte do ano velho e sua ressurreição como ano novo, morte da nossa vida velha para uma vida nova.


******************

"No ano passado..."
Mario Quintana


quarta-feira, 8 de novembro de 2023

Música da Cabeça - Programa #343

 

do poemabomba de augusto surge o mdc desta semana. reprisando nossa edição de nº 290, em que tivemos a entrevista com o poeta e músico cid campos, rodado em outubro de 2022, teremos como sempre música, poesia e ideias. soltando bombas, mas daquilo que nos mantém vivos, o programa hoje vai ao ar na concretista rádio elétrica. produção e apresentação: daniel rodrigues.


www.radioeletrica.com

quarta-feira, 18 de outubro de 2023

cotidianas #810 - "Não Se Mate"




Homem carregando a própria cabeça até o topo para deixar que role ladeira abaixo
"Homem carregando a própria cabeça até o topo
para deixar que role ladeira abaixo" - Susano Corrreia
Carlos, sossegue, o amor
é isso que você está vendo:
hoje beija, amanhã não beija,
depois de amanhã é domingo
e segunda-feira ninguém sabe
o que será.


Inútil você resistir
ou mesmo suicidar-se.
Não se mate, oh não se mate,
Reserve-se todo para
as bodas que ninguém sabe
quando virão,
se é que virão.


O amor, Carlos, você telúrico,
a noite passou em você,
e os recalques se sublimando,
lá dentro um barulho inefável,
rezas,
vitrolas,
santos que se persignam,
anúncios do melhor sabão,
barulho que ninguém sabe
de quê, praquê.


Entretanto você caminha
melancólico e vertical.
Você é a palmeira, você é o grito
que ninguém ouviu no teatro
e as luzes todas se apagam.
O amor no escuro, não, no claro,
é sempre triste, meu filho, Carlos,
mas não diga nada a ninguém,
ninguém sabe nem saberá.

********************

"Não se Mate"
(Carlos Drummond de Andrade)

terça-feira, 18 de julho de 2023

cotidianas #803 - "Gravata Colorida"

 



Quando eu tiver bastante pão
para meus filhos
para minha amada
pros meus amigos
e pros meus vizinhos
quando eu tiver
livros para ler
então eu comprarei
uma gravata colorida
larga
bonita
e darei um laço perfeito
e ficarei mostrando
a minha gravata colorida
a todos os que gostam
de gente engravatada…

*************************

"Gravata colorida"
Solano Trindade

quarta-feira, 8 de março de 2023

Música da Cabeça - Programa #309

O poeta disse que, se a gente abre uma clareza dendela, encontra uma escureza ainda muito mais bela. No Dia da Mulher, o MDC, que é feito de muitas clarezas e escurezas, é dedicado a elas. Mais que representante, Sueli Costa, a quem perdemos esta semana, é homenageada no nosso "Cabeção". E ainda tem Pato Fu, Wayne Shorter, Little Richard, Djavan  e mais. Se música e cabeça são feminino, então casa com a gente às 21h na Rádio Elétrica - que também se escreve no feminino. Produção e apresentação dela: Daniel Rodrigues
(poesia de Ricardo Aleixo e arte de Cly Reis)
#diainternacionaldamulher
#diadamulherétododia


www.radioeletrica.com 

terça-feira, 24 de janeiro de 2023

"Poesia", de Jorge Luis Borges - ed. Companhia das Letras (2017) - compilação de poemas de 1969 a 1985




"Escrever um poema
é ensaiar uma espécie de magia menor.
O instrumento dessa magia,
a linguagem, é bastante misterioso.
Nada sabemos  de sua origem.
Só sabemos que se ramifica em idiomas
e que cada um deles consta de um indefinido
e cambiante vocabulário e de um número indefinido
de possibilidades sintáticas.
Com esses inapreensíveis elementos, compus este livro."
introdução do autor
no livro "Os Conjurados"


Acabei de ler, há pouco, o robusto "Poesias" de Jorge Luis Borges, coletânea de poemas com nada menos que sete publicações do autor: "Elogio da sombra" (1969), "O Ouro dos Tigres" (1972), "A Rosa Profunda" (1975), "A Moeda de Ferro" (1976), "História da Noite", "A Cifra" (1981)

Eu apaixonado pela escrita de Borges pude me deliciar ao longo de suas mais de 600 páginas com todo aquele universo de enigmas, magia, labirintos, bravuras, reminiscências e inspiração. Poemas delineados com a pena da sabedoria de quem muito viveu, muito viu e muito estudou, e ao mesmo tempo da admissão da ignorância diante da vastidão de segredos do mundo. Paisagens fantásticas, questionamentos sobre a arte de escrever, batalhas sangrentas em guerras na Europa ou nas estâncias do pampa gaucho marcam as páginas de "Poesias". 

Organizado cronologicamente, a partir da publicação de "O Elogio da Sombra", de 1969, o livro tem, na minha visão, um crescimento gradual, chegando a um nível incrível em "A Cifra" (1981) e culminando, para mim, em "Os Conjurados", de 1985, no melhor momento de sua poesia e razão, como aliás, na maior parte das vezes é natural na vida de um escritor, mas curiosamente, no caso de Borges, exatamente em seu momento de maior limitação física, muitíssimo doente, e praticamente cego na época da publicação.

Prato cheio, aliás, transbordante, para os apreciadores da obra do escritor argentino, mais conhecido e aclamado por seus contos, mas muito valoroso também por seus poemas que, no fim das contas são enriquecidos dos mesmos elementos recorrentes que tanto apaixonaram leitores como eu.




Cly Reis



domingo, 20 de novembro de 2022

cotidianas #780 - O Preto na Camisa Amarela

 




Salve Pelé
Salve Édson
Salve Dico
O atleta do Século

Salve Pelé com P maiúsculo
Salve os 3 erres
Ronaldinho
Ronaldo
e Rivaldo

Salve o Rei do Futebol
Salve o Rei Dadá
Salve o Reizinho da Vila
Salve o Príncipe Etíope

Salve o pé de Pelé
As mãos de Barbosa
As de Dida
Os dedos quebrados de Manga

Salve o negro Pelé
O mestiço Mané
O mulato Romário
E o sarará Ademir que era negro também

Salve o preto
o crioulo
o tição
Salve o carvão

O carvão de onde se extrai o diamante
Sim! O diamante!
Salve Diamante Negro
Salve a joia da Vila
Salve a prata da casa
Salve o nosso ouro

Salve o azul do Sangue do Rei
Salve o amarelo da camisa
o verde dos gramados
Salve o preto da pele

Salve o homem de cor
Salve o preto na camisa amarela



Cly Reis

segunda-feira, 7 de novembro de 2022

cotidianas #777- "O futebol brasileiro evocado da Europa"




"Futebol" - Mário Zanini
óleo sobre tela
A bola não é a inimiga
como o touro, numa corrida;
e, embora seja um utensílio
caseiro e que se usa sem risco,
não é o utensílio impessoal,
sempre manso, de gesto usual:
é um utensílio semivivo,
de reações próprias como bicho
e que, como bicho, é mister
(mais que bicho, como mulher)
usar com malícia e atenção
dando aos pés astúcias de mão.


**********
"O futebol brasileiro evocado da Europa"
João Cabral de Melo Neto


quarta-feira, 26 de outubro de 2022

Música da Cabeça - PROGRAMA ESPECIAL Nº 290



PROGRAMA ESPECIAL DE Nº 290 COM O MÚSICO, POETA E PRODUTOR MÚSICA CID CAMPOS

ALÉM DA ENTREVISTA NO 'UMA PALAVRA', MÚSICA, INFORMAÇÃO, LETRA E MUITO MAIS.





Rádio Elétrica:
http://www.radioeletrica.com/

segunda-feira, 26 de setembro de 2022

cotidianas #771- Futebol Arte

 



Uma caneta.
Tá se desenhando,
tá se desenhando...
Deu de curva............
Queeee liiindooo!!!
Uma pintura!!!

E aí, o que só você viu?

Jogada bem desenhada
Desde o grande círculo
Ela rabiscou
O outro abriu o compasso mas não deu
A bola fez um arco-íris
desenhou uma parábola
e caiu lá no ângulo.
Daqueles de se botar numa moldura.
Coisa de artista!

*************
"Futebol Arte"
Cly Reis

quinta-feira, 18 de agosto de 2022

cotidianas #765 - "Mais solidão jamais"

 




"Solidão" - Yolanda Mohalyi
óleo sobre tela

Mais solidão jamais em agosto:
Horas que completam -, nos campos
Ardente rubro e dourado
Mas onde se encontram teus jardins de desejo?
Os lagos claros, o céu aumenta
Os campos limpos e brilhando fraco
Mas onde estão a vitória e seu facho
Do reinado que tu representas?
Onde tudo está da sorte dependendo
E o olhar trocado e os anéis invertidos
No sussurro das coisas, no perfume dos vinhos
Tu serves ao antônimo do pleno, do pensamento.


*******************
"Mais solidão jamais"
Gottfried Benn

sábado, 4 de junho de 2022

cotidianas #758 - A Morte na Esquina





Uma moto...

(Mais uma)
Aquele barulho infernal!
Por que precisam fazer todo esse escarcéu?
Será que é pra provar alguma coisa?
Carência? Baixa autoestima? Pinto pequeno?
O barulho vai se afastando mas mesmo assim é alto o suficiente para não me deixar escutar o filme.
Amaldiçôo o desgraçado.
"Que quebre a cabeça na primeira esquina."
Fico esperando o barulho da colisão...
"Um, dois, três..."
Ouço a batida... Crash!!!
(Na minha mente. Só na minha mente.)
Não  foi dessa vez.



Cly Reis

segunda-feira, 23 de maio de 2022

cotidianas #756 - A Casa de Má Reputação




"Bordel", Sergio Telles
Aquela casa
a da Dona Rosa
gozava de uma reputação,
digamos...,
não muito positiva.
Não a casa,
exatamente,
mas as atividades que se davam nela.
Não que as atividades não fossem bem realizadas -
pelo contrário -
O que os frequentadores que costumavam ir à casa da Dona Rosa,
Senhores de muito boa reputação -
Advogados, juízes, deputados,
diziam
era, exatamente,
que as moças que lá trabalhavam
eram as melhores no que faziam.
O que faziam?
Eram putas, ora.
E nisso sua reputação era das melhores!
Sua fama corria longe.
(Faziam de tudo, diziam)
Homens de outras cidades
vinham de longe só para desfrutar
das meninas da Dona Rosa.
E por mais que a má reputação corresse
entre os mesquinhos moradores
daquela cidadezinha,
Dona Rosa se orgulhava
de ter o melhor puteiro dos arredores.
O melhor mesmo era tirar proveito dessa reputação.




Cly Reis


quinta-feira, 12 de maio de 2022

cotidianas #755 - "A Sentinela"


ilustração de Dave McKean
extraída da graphic novel  "Asilo Arkham"
Entra a luz e eu me lembro; está ali.
Começa por dizer-me seu nome, que é (logo se entende)
o meu.
Volto à escravidão que durou mais de sete vezes dez anos.
Impõe-me sua memória.
Impõe-me as misérias de cada dia, a condição humana.
Sou seu velho enfermeiro; obriga-me a lavar os seus pés.
Espreita-me nos espelhos, no mogno, nos vidros das lojas.
Uma ou outra mulher o rejeitou e devo compartilhar sua
angústia.
Dita-me agora este poema, que não me agrada.
Exige-me o nebuloso aprendizado do duro anglo-saxão.
Converteu-me ao culto idolátrico de militares mortos, com os
quais talvez não pudesse trocar uma única palavra.
No último lanço de escada sinto que está a meu lado.
Está em meus passos, em minha voz.
Minuciosamente o odeio.
Percebo com prazer que quase não vê.
Estou em uma cela circular e a infinita parede se estreita.
Nenhum dos dois engana o outro, mas nós dois mentimos.
Conhecemo-nos demais, inseparável irmão.
Bebes a água de meu copo e devoras meu pão.
A porta do suicida está aberta, mas os teólogos afirmam que
na sombra ulterior do outro reino estarei eu, me esperando.

**************************

"A Sentinela"
Jorge Luis Borges

terça-feira, 19 de abril de 2022

cotidianas #751 - Poeminhas da Terra

 


ilustração: Tatiana Móes
para o livro "Poeminhas da Terra"

Casa Pra Morar

Junta sapé,
Junta taquara,
Junta vara,
Junta graveto.

Junta barro,
junta cipó,
junta piaçava,
oca, oca, oca.


***

Brincadeira

Curumim
Peteca
Curumim
Peteca
Curumim
Peteca!


Ei!
Posso brincar também?

*****************
poemas extraídos do livro "Poeminhas da Terra"
de Márcia Leite

quinta-feira, 31 de março de 2022

cotidianas #748 - "Explicação da Eternidade"

 




Nathalia Lodi
devagar, o tempo transforma tudo em tempo.

o ódio transforma-se em tempo, o amor

transforma-se em tempo, a dor transforma-se
em tempo.

os assuntos que julgámos mais profundos,
mais impossíveis, mais permanentes e imutáveis,
transformam-se devagar em tempo.

por si só, o tempo não é nada.
a idade de nada é nada.
a eternidade não existe.
no entanto, a eternidade existe.

os instantes dos teus olhos parados sobre mim eram eternos.
os instantes do teu sorriso eram eternos.
os instantes do teu corpo de luz eram eternos.

foste eterna até ao fim.

**********************

"Explicação da Eternidade"
José Luís Peixoto

quinta-feira, 17 de março de 2022

cotidianas #746 - "Agora, apodrecer"

 



"Deterioração da mente sobre a matéria"
Otto Harp (1973)

Agora, apodrecer.
Nas ruas, no suor das mãos amigas dos amigos, na pele dos espelhos...
desespero sorrido, carne de sonho público, montras enfeitadas de olhos...

...mas apodrecer.

Bolor a fingir de lua, árvores esquecidas do princípio do mundo...
"como estás, estás bem?", o telefone não toca! devorador de astros...

... mas apodrecer.

Sim, apodrecer
de pé e mecânico,
a rolar pelo mundo
nesta bola de vidro,
já sem olhos para aguçar peitos
e o sol a nascer todos os dias
no emprego burocrático de dar razão aos relógios,
cada vez mais necessários para as certidões da morte exata,

Sim, apodrecer ...

"...as mãos, a cólera, o frio, as pálpebras, o cabelo
a morte, as bandeiras, as lágrimas, a república, o sexo...

... mas apodrecer!

Sujar estrelas.

**********************

“Agora, apodrecer”
José Gomes Ferreira

sábado, 15 de janeiro de 2022

cotidianas #741 - "Labirinto"




arte: warrakloureiro
Não haverá nunca uma porta. Já estás dentro.

E o alcácer abarca o universo
E não tem anverso nem reverso
Não tem extremo muro nem secreto centro.

Não esperes que o rigor do teu caminho
Que fatalmente se bifurca em outro,
Que fatalmente se bifurca em outro,
Terá fim. É de ferro teu destino

Como o juiz. Não creias na investida
Do touro que é um homem cuja estranha
Forma plural dá horror a essa maranha

De interminável  pedra entretecida.
Não virá. Nada esperes. Nem te espera
No negro crepúsculo uma fera.


****************
"Labirinto"
Jorge Luis Borges
(tradução de Augusto de Campos)