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quinta-feira, 3 de julho de 2014

cotidianas #306 - O Cambolão



Bombonera que nada!
Quem nunca jogou no Cambolão não sabe o que é pressão.
Pressão fora e dentro de campo. Aquelas Libertadores de antigamente, sabe, sem regras, sem antidoping, com intimidações...
Sabe?
É... Aquilo só que piorado.
Um lugar escondido, sem escapatória, sem testemunhas, no meio da selva. Chamar de selva é um exagero, tá bom, mas efetivamente o Torneio do Cambolão era disputado num lugar remoto, inóspito, no meio do mato.
Quando o João, que na verdade se chamava Vinícius mas que na verdade se chamava Alcione mas não gostava do próprio nome e que por chamar os outros de João por não saber o nome dos outros era simplesmente conhecido por João, nos falou de um torneio no Parque Saint-Hilaire, em Viamão, nos pareceu interessante. A Juventus, nosso timezinho de amigos, deveria mudar de ares, disputar com outros times que não os de sempre, sair do bairro. Sim, seria legal.
Mas quando o próprio Alcione Vinícius, vulgo João, nos disse que deveríamos pegar o ônibus da linha Pinheiro, que levava a um dos bairros mais temidos da região metropolitana, e não o da empresa Viamão que deixaria em frente ao parque começamos a nos perguntar se a ideia havia sido mesmo boa. Deveríamos entrar pelos fundos do parque num campo que não fazia parte, exatamente, do complexo convencional de lazer. Hum... Não gostamos muito daquilo mas fomos.
Mas quando o Pinheirão começou a fazer voltas e mais voltas e seguir por caminhos cada vez mais esquisitos e a civilização começou a ficar para trás, começamos verdadeiramente a questionar a validade daquela pequena excursão. Contudo seguimos, e então, após percorrer um longo caminho desembarcamos. Desembarcamos no meio de um nada. Uma estrada de terra cercada de mato pelos dois lados.
E o torneio? E o campo? Onde era?
O João (Vinícius ou Alcione) nos indicava que, como era nos fundos do parque, deveríamos entrar pela cerca de arame e andar "um pouco" até o local dos jogos. Bem, a essas alturas posso assegurar que ninguém, a não ser o próprio João, ex-morador da localidade, estava se sentindo muito confortável com a situação, mas já que estávamos ali, havíamos acordado cedo e, principalmente, éramos loucos de fome por futebol, o seguiríamos mato adentro. À medida que caminhávamos e nos embrenhávamos pelas matas nosso pavor aumentava. Parecia aquelas florestas vietnamitas do Rambo ou as do Platoon. A impressão era que um amarelo saltaria sobre nós a qualquer momento, pisaríamos numa mina terrestre ou seríamos pegos numa armadilha pendurados pelos pés. Quanto mais caminhávamos, mais nosso arrependimento aumentava. O que que estávamos fazendo ali? Até que depois de minutos caminhando, que nos pareceram uma eternidade, finalmente ouvíamos ouvíamos vozes. O Parque! A civilização!!!
Engano.
Pelo contrário.
Selvagens.
O que vimos era ainda mais aterrorizante que tudo o que tínhamos passado até então. Uma pequena clareira de chão batido extremamente ondulada com uma goleira de pau em cada extremidade e invadido nas laterais por raízes das árvores que praticamente delimitavam o campo envoltas em uma nuvem que confundia poeira com uma misteriosa fumaça. E nas árvores, sobre elas e entre elas, criaturas com olhares famintos nos espreitavam como feras. Aquilo parecia o kumite d"O Grande Dragão Branco", só que no meio do mato, a cena da chegada do barco em "Apocalypse Now" só que sem água, o clipe opressivo de "Wish" dos Nine Inch Nails só que sem grades, os zumbis cercando o shopping em "Madrugada dos Mortos". O horror, o horror!
Na verdade a sensação de que aqueles meninos eram feras e que nos olhavam sequiosos por algo devia-se em grande parte ao fato de que, se não éramos "mauricinhos", naquele modestíssimo ambiente, tínhamos aparência de guris de apartamento, filhinhos de papai, o que podia fazer supor que teríamos algo de interessante em nossas bagagens de jogo. E o pior é que era verdade. Não éramos ricos, como já disse, mas gostávamos de coisas boas e as adquiríamos na medida do possível. O time tinha um bom uniforme, completo, bonito e de uma marca esportiva renomada, sem falar no fato de que a maioria dos nosso jogadores gostava de ter boas chuteiras de futebol society, caneleiras, etc. que tinham conseguido a muito custo com esforço próprio ou dos pais que, por sua vez, também não nadavam em dinheiro para dar aqueles acessórios aos filhos. E a consciência de nossas "valiosas" cargas só fazia aumentar nosso pavor.
Sufocados por um cheiro insuportável de maconha dos atletas e torcedores dos outros times que se espalhavam seminus e esfarrapados, apavorados com o cenário, deliberamos rapidamente se deveríamos ficar e jogar o torneio ou sair de fininho e dar o fora dali antes que fosse tarde. Concluímos que não teríamos como disfarçar uma saída à francesa e convencidos pelo João-Vinícius de que, apesar da aparência, não havia riscos, decidimos ficar.
Como algumas equipes não haviam comparecido e como havia menos times do que o previsto para a disputa do torneio, teríamos uma partida eliminatória que nos levaria ou não para a fase seguinte. Houve uma espécie de consenso natural: perderíamos a partida para termos um bom motivo, aí sim, para dar o fora dali o quanto antes. Não só por isso. O time adversário era tão mal encarado que imaginamos que não encararia de uma maneira muito desportiva se perdesse para aqueles "mimosinhos" ali.
Bom, na hora de nos fardarmos, chegamos a pensar em não usar o uniforme do time, mas não teríamos outra alternativa, do contrário ficando um time à moda palhacinho, No entanto, quem tinha um tênis mais velho e, assim, a opção de não expôr suas chuteiras  naquele ambiente potencialmente arriscado, optou por usa-lo, afinal, seriam só 40 minutos de apreensão e depois era dar no pé daquele lugar.
Nossa tensão era tão grande que nem vimos o tempo passar. Era simplesmente levar gols e sorrir. Mesmo que quiséssemos ganhar o jogo, provavelmente não conseguiríamos tamanho era nosso nervosismo e, por que não dizer, medo.
Se não me engano o martírio acabou em 6x0. Tudo bem. Aquilo era o de menos. Um torneio a mais, um torneio a menos não ia fazer diferença nas nossas vidas. O que temíamos era exatamente por elas: as nossas vidas. Arrumamo-nos rapidamente, recolhemos o que tínhamos que recolher e fomos saindo de forma apressada mas cuidadosa, tal a cena das crianças na escola em "Os Pássaros" de Hitchcock.
No fim das contas, fomos nos afastando suavemente, fingindo tranquilidade, percorremos o caminho pela floresta e chegamos à cerca de arame farpado. Ufa! Mas não estávamos certos de estarmos seguros. Será que não teriam se arrependido de não terem levado nada daqueles manés? Será que não teriam esperado para nos pegar desprevenidos longe do local do jogo? Será que não estariam ainda tramando um plano para que todos os times nos pegassem juntos? Será que não teriam optado por armar a tocaia naquela estrada deserta ao invés de fazê-lo no campo?
E aquele ônibus que não aparecia...
Demora, demora e o ônibus chegou. Embarcamos aliviados. Estávamos a salvo.
Era só voltar para casa e esquecer aquele pesadelo.
(Esquecer?)
Nada aconteceu. Não nos levaram nada, não nos agrediram, nem sequer nos abordaram. Aliás, provavelmente toda aquela sensação de insegurança fora fruto tão somente de um certo preconceito social de garotos de classe média em relação a um ambiente mais desfavorecido e pelo aspecto de seus moradores e frequentadores, mas esquecer aquilo é impossível. Jamais esquecerei a sensação de entrar naquele campinho no meio do mato esfumaçado com árvores apinhadas de moleques em todos os galhos.   .
O horror, o horror!
Bombonera é brincadeira perto daquilo.


Cly Reis

Um comentário:

  1. Achei esse blog sem querer na internet, mas... Assustadoramente, o tal do "João" descrito no texto bate exatamente com a descrição do meu pai.

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