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domingo, 10 de março de 2024

cotidianas #823 - A Volta do Anjo Exterminador

 



"Tá gravando?
...
Hm, hm...
Estamos aqui na casa onde foi rodado o filme "O Anjo Exterminador", em 1962.
No clássico de Luis Buñuel, um grupo de pessoas, convidadas para uma festa de aristocracia, depois de ingressar na casa onde acontece a recepção, não consegue sair dela. Nada os impede, não há portas trancadas, nada fechando-lhes a passagem, mas, simplesmente, não conseguem deixar a casa. É como se uma força invisível, algo inexplicável os mantivesse dentro. E é exatamente aqui que estamos hoje para vocês, no nosso "O Fabuloso Mundo de Amélia Bolaños", o canal dos cinéfilos loucos por relíquias, raridades e curiosidades do mundo do cinema.
Olha só..., vem aqui, vem comigo... Aqui é a sala onde ficavam os convidados, aqui, um pouco adiante é aquele cantinho onde alguns se acomodaram pra dormir, aqui é... O que que foi?
Por que parou de gravar?
Polícia?
Guarda tudo, guarda tudo. Desliga a câmera, guarda isso, vai.
Guarda logo, Julito.
Vamos sair logo daqui.
Por ali, por ali...
Ali, a porta, vai.
Anda, Julito, vai.
Como assim, acha melhor a gente ficar? Vão nos prender! Vai logo.
...
Anda, sai.
Ah, sai da frente, Julito, deixa que eu vou na frente.
...
Sei lá. Talvez seja melhor a gente esperar um pouco mais. Quem sabe a polícia nem percebe que a gente tá aqui e vai embora.
Ah, agora você quer sair?
Então por que não sai?
Como assim não consegue?
Sai logo, Julito. Sai logo.
Será que...?
Não é possível!!!
Ai, meu Deus!
Julito, faz alguma coisa.

Ali, ali, a polícia chegou. Graças a Deus.
Policial, policial, nos ajuda! Nos tira daqui.
...
É, é o que nós queremos, sair. Não conseguimos.
...
Eu já disse, a gente sairia se pudesse mas não conseguimos.
Não, não entra aqui. Não entra."


*************


"Central, câmbio...
Pode repetir, 65?
...
Um bando de jovens invadiu um imóvel abandonado?... É isso? Câmbio.

...

A orientação é para que os retire do imóvel e retorne para a Central. Câmbio.

Não conseguem sair? Você também não consegue? Câmbio.

Eles estão lhe impedindo de alguma maneira, 65? Estão armados? Obstruíram os acessos, as aberturas? Câmbio.

...

Qual a sua localização, 65?

...

Rua da Providência..., sim, sei.
Ok. Aguarde reforços. Estamos enviando uma unidade para o local. Câmbio e desligo."


*************

Dez horas já haviam se passado desde que a unidade de reforço chegara. Agora já eram sete pessoas dentro da casa.
Os sinos da catedral da Cidade do México badalavam para a missa das seis.




conto de Cly Reis
inspirado no filme "O Anjo Extermandor"
de Luis Buñuel

terça-feira, 13 de fevereiro de 2024

cotidianas #821 - "Quem cai na dança não se 'alembra' de mais nada"

 



Assim se costuma dizer, e é bem certo. Ora, eu lhe conto: uma vez um capitão soube que muitos praças de sua companhia estavam num cateretê ferrado, longe do quartel, bebendo, dançando, brigando, pintando os sete demônios.

Chamou a ordenança e mandou buscar a soldadesca. Mas, o camarada em lá chegando, vendo que o pagode estava mesmo bom, com cada cabocla xodó, de trazer água na boca, e com um violeiro que botar no verso e no ponteá não havia outro − esqueceu-se da ordem, e caiu também na dança.

O capitão cansado de esperar e vendo que nem os praças, nem o ordenança voltavam, chamou o cabo e o mandou atrás do pessoal. Mas, o cabo foi, e aconteceu a mesma coisa: caiu na dança, e também não voltou. O capitão já estava ardendo de raiva. E vai daí, mandou o furriel. Mas o furriel fez o mesmo: caiu na dança, e era um dia...

O capitão queimava. Estava mesmo para arrancar as barbas de bode. E mandou o sargento, com ordem de trazer todo aquele povo na chincha.

Mas, o sargento não era de ferro... e vendo tanta mulata de pega pra saí, entrou na roda: Eta! Rapaziada boa!

O capitão, brabo que nem cobra na hora da queimada, chispou o alferes em busca da negrada.

Mas o alferes − que havia de fazer? Era dos tais que não podem ver defunto sem chorar, e caiu na pândega, com os galões e tudo. E espera pra lá, capitão do inferno!

E o capitão apois mandou que o tenente trouxesse tudo de cambulhada, e, já sabia, trinta por sessenta na canalha.

E vai o tenente pegou da espada e foi bufando por ali afora, que parecia um raio.

Mas, então a coisa é que estava mesmo boa. Eta sapateado de remelexo! E o tenente deu a espada pru cabo e... entra, Juca! Aquilo ia correndo trinta por um mês, que era um regalo.

A corneta tocou, mas, nada! Ninguém apareceu na revista da companhia. Então é que o capitão quase tira as calças e pisa nelas. E resolveu ele mesmo ir buscar a rapaziada. Havia de pegá-la pra Judas! Riscou nos calcanhos, como caititu na trilha com cachorrada atrás...

Mas chegando ao pagode... Eh! Maria Chica danada pra dançar! Quando ela avistou o capitão, fez uma chamada com o lencinho bordado, estalou os dedinhos pra banda dele e o bicho entrou na dança, como sapa n′água.

Fechou a roda. A companhia inteira dançava que era uma gostosura. E o violeiro então pegou a cantar:

Venha ver, ó minha gente,

Como é boa esta função.

Viola, dança e mulata

Prende inté seu capitão.

No outro dia o tenente perguntou ao oficial:

− Pronto, meu capitão: quantas cadeias pra negrada?

− Deixa disso, tenente. Quem cai na dança, não se alembra de mais nada...

E pegaram a rir, e tudo acabou em santa paz.


***************************

"Quem cai na dança não se 'alembra' de mais nada"
anônimo (folclore popular)

domingo, 4 de fevereiro de 2024

cotidianas #820 - A banheira do hospício

 



Durante uma visita a um hospital psiquiátrico, um jornalista perguntou ao diretor da instituição:

- Qual é o critério que vocês usam para saber quem deve ser internado aqui?

O diretor, então, respondeu:

- Nós enchemos uma banheira com água e oferecemos ao paciente uma colher, um copo e um balde, e pedimos que ele esvazie. Dependendo da forma que ele decide esvaziá-la, nós o internamos ou não.

- Ah, sim, entendi. Uma pessoa normal usaria o balde, é claro. - disse o jornalista.

- Não, - disse o diretor - uma pessoa normal removeria o tampão da banheira.

Você gostaria de um quarto privado?

segunda-feira, 22 de janeiro de 2024

cotidianas #819 - Por Pouco

 



Por pouco - Cly Reis

Não foi nada, não.

Não é nada, não é nada
mas já é alguma coisa

É pouco
Eu sei
Mas é melhor que nada, não?

É muito pouco
É pouco demais
É quase nada

(Não fique assim)
Não foi nada, não foi nada...

********************
"Por pouco"
Cly Reis

segunda-feira, 1 de janeiro de 2024

cotidianas #818 - "No ano passado..."




Atirei-me, pois, metaforicamente, pela janela do tricentésimo-sexagésimo-quinto andar do ano passado
"O suicídio de Dorothy Hale"
Frida Kahlo (1938)

Já repararam como é bom dizer "o ano passado"? É como quem já tivesse atravessado um rio, deixando tudo na outra margem...Tudo sim, tudo mesmo! Porque, embora nesse "tudo" se incluam algumas ilusões, a alma está leve, livre, numa extraodinária sensação de alívio, como só se poderiam sentir as almas desencarnadas. Mas no ano passado, como eu ia dizendo, ou mais precisamente, no último dia do ano passado deparei com um despacho da Associeted Press em que, depois de anunciado como se comemoraria nos diversos países da Europa a chegada do Ano Novo, informava-se o seguinte, que bem merece um parágrafo à parte:

"Na Itália, quando soarem os sinos à meia-noite, todo mundo atirará pelas janelas as panelas velhas e os vasos
 rachados".

Ótimo! O meu ímpeto, modesto mas sincero, foi atirar-me eu próprio pela janela, tendo apenas no bolso, à guisa de explicação para as autoridades, um recorte do referido despacho. Mas seria levar muito longe uma simples metáfora, aliás praticamente irrealizável, porque resido num andar térreo. E, por outro lado, metáforas a gente não faz para a Polícia, que só quer saber de coisas concretas. Metáforas são para aproveitar em versos...

Atirei-me, pois, metaforicamente, pela janela do tricentésimo-sexagésimo-quinto andar do ano passado.

Morri? Não. Ressuscitei. Que isto da passagem de um ano para outro é um corriqueiro fenômeno de morte e ressurreição - morte do ano velho e sua ressurreição como ano novo, morte da nossa vida velha para uma vida nova.


******************

"No ano passado..."
Mario Quintana


sexta-feira, 22 de dezembro de 2023

cotidianas #817 - A Lei do Ex





Renata havia sido casada com Kike Diaz. Argentino, pinta de galã, tão famoso pelas façanhas fora de campo como pelos gols dentro dele. A vida de escândalos, traições e incertezas ao lado do Galante Platense, em Paris, quando Kike jogava no Pont Neuf, fez com que Renata Maia, ex-modelo badaladíssima em sua época de passarelas, o deixasse e retornasse com os filhos para o Brasil. Agora era esposa de Ricardo Afonso, jogador típico bom moço, daqueles que não dão problema para o clube e são o sonho de qualquer treinador pois, além de não render preocupação por seu comportamento extracampo, dentro dele fazia o modelo do jogador moderno, daqueles que executam diversas funções, o típico jogador múltiplo, uma espécie de coringa do time.

O casal Renata Maia e Ricardo Afonso era o dengo da mídia brasileira. O jogador exemplar, atleta modelo, educado, articulado, que já começava a suscitar clamores por uma convocação para a Seleção por parte da imprensa esportiva, e a ex-modelo internacional cuja vida pessoal outrora atribulada, parecia agora ter encontrado a paz junto ao homem certo. No entanto, não era segredo para ninguém que o grande amor da vida de Renata fora Kike Diaz. Enquanto estiveram juntos, eram a sensação da mídia esportiva e social, fosse pelos bons momentos, viagens, extravagâncias e até fotos intimas vazadas, mas também pelas brigas, pelas agressões de Kike, suas prisões, fianças, separações temporárias e perdões. Não fosse pela vida intranquila, incerta, insegura, Renata nunca teria deixado Kike. Ela o amava. Mas todo amor tem limite e a bela modelo preferiu a tranquilidade de uma vida normal em seu país a um amor bandido.
Ricardo fora sua tábua de salvação. Ao voltar ao Brasil, logo se conheceram numa festa da Confederação, se aproximaram e em pouco tempo estavam casados. Ela o amava mas era um amor diferente do que sentia por Kike. Era um carinho. Era grata pelo fato do marido lhe proporcionar uma vida normal. Sentia-se respeitada, valorizada única. Kike era diferente... Era algo quente, algo que lhe queimava por dentro. De certa forma, agradecia o fato dele estar do outro lado do oceano.
Mas a distância oceânica seria reduzida a alguns estados de distância. Kike fora contratado por um clube brasileiro e a imprensa, que não dorme no ponto, vendo que aquele assunto rendia, não demorou a botar uma lenha numa fogueira que nem existia, só para ver se pegava fogo. Pegou! Manchetes de sites ou de jornais faziam, supunham, sugeriam um novo contato entre os dois, redes sociais pipocavam se perguntando como Renata reagiria à proximidade com seu ex-affair, e até mesmo programas esportivos respeitáveis não deixavam de largar, nem que fosse, uma frasezinha maliciosa a respeito do assunto.
Aquilo tudo começava a incomodar Ricardo. Ele passara a agir de maneira diferente com Renata. Nunca desconfiara dela mas agora, com toda essa coisa, ficava com uma pulguinha atrás da orelha. Qualquer deslocamento mais longo que ela tivesse que fazer, Ricardo já  pensava que pudesse ter pegado um avião, ido até o outro, e voltado algumas horas depois. Percebeu que era bobagem quando, solicitada por Kike a permitir que visse os filhos, Renata pediu para que sua mãe, a avó dos meninos, viajasse com eles e os levasse até o pai.
Era sinal que ela não pretendia vê-lo, não queria vê-lo, não tinha a menor intenção de reencontrá-lo.
Mas Ricardo sabia que haveria um momento em que os dois, inevitavelmente, estariam muito perto, na mesma localidade, e seria quando o time de Kike fosse jogar em sua cidade. E aquele momento chegara. Seus clubes se encontrariam pelo campeonato nacional e Kike viria junto com seu time. Às vésperas do jogo a imprensa recomeçou a jogar o veneno. "Renata Maia reencontrará seu grande amor", "Te cuida, Ricardo".
A cabeça de Ricardo Afonso foi a mil. Tinha que dar um jeito de tirá-la da cidade por aqueles dias. E se ela tivesse vontade de vê-lo? Se ele insistisse para encontrá-la? Se marcassem um encontro enquanto estava no treino? A inquietação  aumentou quando, certo dia, ao entrar no quarto, Renata interrompera abruptamente uma conversa ao celular assim que percebera sua presença, guardando o aparelho apressadamente. Perguntada sobre a ligação, respondeu que era a Kamille e não, não desligara rápido, já estava mesmo acabando a ligação no momento em que o marido adentrara o dormitório. Ricardo não engoliu muito aquilo. Até por isso, tratou de tomar as devidas providências quanto ao dia do jogo. Renata não iria! Ela que normalmente ia vê-lo no estádio, desta vez ficaria em casa. O marido a convencera a muito custo. Ela não via motivo mas Ricardo alegava que seria melhor assim. Embora jogadores e familiares não frequentassem áreas comuns no estádio, podiam se esbarrar por algum corredor e era melhor evitar que isso acontecesse, sem falar que a imprensa poderia armar um 'encontro surpresa' à  beira do gramado ou depois do jogo só para garantir audiência. Um tanto contrariada, Renata enfim concordou. Ficaria em casa naquela tarde.
Ricardo foi mais tranquilo para a concentração.
Horas depois, no vestiário, pensava em Renata enquanto amarrava as chuteiras. No quanto era feliz com aquela mulher, na sorte que tivera em encontrá-la. Seu pensamento, no entanto, fora interrompido pelo Sávio, o lateral do time: "Viu que o Kike não vai jogar?". Os olhos de Ricardo quase saltaram da cara. "Eu soube agora há pouco por um cara da rádio, aqui na porta do vestiário. Diz que brigou com o treinador. Nem concentrou...". Ricardo queria sair dali e correr pra casa mas era tarde demais. Era hora de entrar em campo e, de mais a mais, o que alegaria para o treinador? O que diria para a torcida? Que estava com medo que o sua mulher estivesse na cama com o atacante do time rival? Que temia que ela fugisse com o ex?
Entrou em campo e jogou.
Jogou mal. Intranquilo, errou passes, foi pouco participativo e acabou substituído. Desceu para o vestiário, nem tomou banho e, aproveitou a oportunidade para para sair mais cedo do estádio. A atitude de Ricardo Afonso, tido como bom moço como atleta exemplar, agora levantava especulações sobre racha no grupo e insatisfação com o treinador.
Não interessava o que pensassem. Queria chegar o quanto antes em casa e certificar-se que a sua Renata estava lá.
Abriu a porta.
"Renata...". Nada na sala. "Renata...?". Nada no quarto. "Renata!!!". Nada em lugar nenhum. Ricardo Afonso arriou no sofá. Ficou ali sentado por um bom tempo com os olhos fixos no chão. Minutos depois a tela do celular acendeu. A mensagem no celular nem deu tempo de lhe dar algum alento. Era a mãe de Renata dizendo que as crianças estavam bem e que mandavam um beijo.
Apenas deixou o aparelho cair a seu lado.
O jogador ainda estava naquele estado de prostração quando ouviu barulho da fechadura. A porta abriu. Era Renata.
Ele não perguntou nada mas seu olhar angustiado ansiava por uma resposta.
"Não aguentei ficar em casa, Ric. Fui te ver jogar.", disse deixando a bolsa no aparador. "Você saiu cedo? Não esperou o time, as entrevistas... Eu fiquei lá te esperando que nem uma boba. Depois que eu os repórteres começaram a dizer que você  tinha saído chateado de campo, que foi embora do estádio...Que que aconteceu?"
Ele não respondeu. Simplesmente levantou-se do sofá, andou em direção a ela, a abraçou e começou a chorar.



Cly Reis

sábado, 9 de dezembro de 2023

cotidianas #816 - "The Grid"

 


Curta-metragem em Super8 dirigido por Joanna Woodward, estrelado por Peter Murphy, ex-vocalista do Bauhaus, na época namorado da diretora. "The Grid" conta a história de um viajante do tempo que busca a primeira célula de sua existência e encontra uma 'Grade' que lhe permite observar o início da sua vida - desde o momento da concepção.


"The Grid", de Jo Woodward (1980)





segunda-feira, 20 de novembro de 2023

cotidianas #815 - "Sorriso Negro"



Um sorriso negro, um abraço negro
Traz felicidade
Negro sem emprego, fica sem sossego
Negro é a raiz da liberdade

Negro é uma cor de respeito
Negro é inspiração
Negro é silêncio, é luto
negro é a solidão

Negro que já foi escravo
Negro é a voz da verdade
Negro é destino é amor
Negro também é saudade

Um sorriso negro, um abraço negro
Traz felicidade
Negro sem emprego, fica sem sossego
Negro é a raiz da liberdade

********************
"Sorriso Negro"
Dona Ivone Lara
(composição: Adilson Barbado / Jair / Jorge Portela)

Ouça:

segunda-feira, 13 de novembro de 2023

cotidianas #814 - Dulce

 



- Desculpa, gente, não vou poder ir porque, pelo jeito, vai chover.

Essa era, costumeiramente, a justificativa da Dulce para suas ausências nos programas da turma das "meninas", o grupo de amigas, senhoras já na dita melhor idade, e que não raro, procuravam atividades ou programações para ocupar o tempo ou se entreter,

Em muitos programas, ela até gostaria de ir mas, realmente, qualquer pinguinho, qualquer gotinha, tinha a capacidade de causar um estrago tremendo, devastador, que as amigas não tinham a capacidade de compreender.

- Ah, deixa de ser boba, Dulce! Que mal uma aguinha pode fazer? - argumentava uma.

- É, parece que é feita de açúcar. - completava uma outra jocosamente, e todas caíam na gargalhada.

Certo dia, Dulce aceitou um convite para sair. O dia estava claro, bonito, parecia sem riscos e ela então concordou em encontrar-se com as amigas.

Riram, beberam, dançaram mas, lá pelas tantas nuvens começaram a aparecer no céu. Dulce se inquietou. Agitou-se, começou a recolher as coisas apressadamente sob os protestos das colegas.

- Ai, Dulce, larga isso aí. Nem vai chover, só ficou meio nublado, não é nada.

- Não, não. Não posso arriscar.

Mas era tarde demais. As primeiras gotas começaram a cair.

São só uns pinguinhos. O que que pode acontecer?

Assim que as gotas tocaram o corpo de Dulce, ela pareceu paralisar.

Primeiro as amigas riram mas, aos poucos, suas expressões de galhofa foram se desfazendo.

Dulce derretia. A água erosionava as partes onde tocava em seu corpo e aos poucos pedaços inteiros desabavam, tombando para o lado e caindo pesadamente, se espalhando como se desenhassem explosões estrelares no chão.

As amigas olhavam para o chão, um tanto incrédulas, num misto de estarrecimento e piedade.

Uma delas não pode deixar de exclamar:

- Coitada, era um doce de pessoa.


Cly Reis


sexta-feira, 3 de novembro de 2023

cotidianas #813 - Aniversário em Chamas

 



"Parabéns pra você

Nessa data querida

Muitas felicidade

Muitos anos de vida!"

A máquina de costura ainda batia repetidamente a agulha quando a mãe ouviu a voz do filho às suas costas num parabéns entusiasmado.

"Crianças!..." Não havia ninguém de aniversário naquele dia.

O lume, refletido nos cromados da máquina que manejava, acusava que algo acontecia atrás de si. Voltou-se, curiosa pelo luzidio reflexo e por tamanho festejo do filho. Ao virar-se, o que viu a tomou de um instantâneo pavor.

Chamas subiam de sua cama.!

Chamas....

Chamas...

Por trás delas, ajoelhado diante da labareda, ao pé da cama, a criança, seu filho de 3 anos de idade, alegre e orgulhosamente celebrava a gigante "vela" de aniversário que produzira com uma caixa de fósforos.

Celebrava, entoando os versos da mais famosa canção de congratulações de anos completados, diante da chama viva e luminosa que criara.

"Parabéns pra você

Nessa data querida

Muitas felicidade

Muitos anos de vida!"

O susto e a perplexidade inicial da mãe tiveram que dar lugar, rapidamente, à urgência de abafar o fogo e tirar a criança dali.

Como rescaldo do incidente, não houve vítimas, com exceção é claro do próprio pequeno incendiário que levou algumas boas lambadas de chineladas pelo aniversário macabro que proporcionara (o que não fora nada se comparado ao poderia ter acontecido). Também, pode-se dizer que não houve danos materiais com exceção de um belíssimo cobertor argentino de pelos, que para sempre carregaria a marca chamuscada da capetice daquele pirralho.

O que poderia ter-se transformado numa grande tragédia, felizmente virou uma lendária história para contar e que rimos até hoje. 

O menino arteiro que, por sinal, hoje completa 45 anos, foi deixando de ser peralta aos poucos, cresceu, tornou-se um homem, depois um grande homem, um jornalista de alto nível, um escritor brilhante e felizmente tenho prazer de tê-lo como, além de irmão, parceiro deste nosso espaço de dedicação e exercício de criatividade.

Parabéns, Daniel querido! 

Que, no teu dia, as únicas chamas que continuem acesas sejam as do teu caráter, do teu brilho interior e da tua inspiração. E que a da tua vida, que como qualquer outra, sabemos, não é eterna, ao menos, demore muito muito muito a se apagar.

Parabéns, parabéns!

Talvez até queime um coberto em tua homenagem.

Tu mereces, tu mereces.

Caixa de fósforos na mão e...

Parabéns pra você...



Cly Reis

quarta-feira, 1 de novembro de 2023

cotidianas #812 - Pílula Surrealista #55

 

- Cara, você nunca sentiu que precisava extrair mais do mundo, da vida? Uma sensação de que, sei lá, não consegue aproveitar o bastante, que faltam sentidos a nós humanos pra absorver as coisas com mais vigor, mais verdade.

- Como assim?

- Olha isso aqui à nossa volta: dá uma vontade de captar mais o que é bom, o que é vivo, de sentir mais o gosto das coisas, porque parece que o que a gente tem nesse mundo real não dá conta.

- Pra isso serve a arte. "A arte existe porque a vida não basta". Não é assim que o poeta diz?

- Não, não é só de arte que eu tô falando. Isso que eu digo é mais do que arte ou qualquer coisa palpável. É um desejo de vida mesmo, entende? Não é só respirar, é... 

- Explica melhor.

- Humm, sei lá... não sei nem se eu sei dizer, mais é o que eu sinto, sabe? É como se necessitasse sentir com mais inteireza esse milagre da vida. O sol que ilumina as árvores, o azul ou o preto do céu, o vento que bate na pele, a beleza feroz dos relâmpagos, o verde da relva, o colorido das flores... Tudo isso não cabe na compreensão, não acha?

- É, acho que sim.

- Pois é, tudo isso não cabe, não tem como pegar, como conter, como comprimir. Escapa. Chega a me dar vontade de comer!

- Comer o quê?

- O mundo.

- Humm...

- Sim, comer o mundo! Uma garfada, uma mordida na polpa. Como um pão, uma comida. Uma carne.

- Olha, gostei dessa: carne do mundo.

- É, isso mesmo: sentir o gosto da vida como quem saboreia a carne do mundo... Impossível, né?

- É... quem sabe um dia.

- Pois é: quem sabe.


Daniel Rodrigues

segunda-feira, 23 de outubro de 2023

cotidianas #811 - Claudine

 



Ai, a Claudine andando!

A via nos corredores do colégio e ficava admirando aquele jeito dela andar. A Claudine se movia de uma maneira única, ímpar,  singular.

Ela não caminhava, ela flutuava, pairava, deslizava. Parecia andar nas pontas dos pés, pisar com cuidado para não ferir o chão. Um andar ao mesmo tempo determinado e sensual. Lânguida como uma garça e determinada como uma tigresa. Aquele cabelo avermelhado vivido como uma crina de fogo de um cavalo de raça, daqueles de trote elegante e seguro.

Pensava comigo mesmo que, se um dia tivesse a Claudine para mim, não lhe pediria mais nada - carícias, sexo, prazeres vulgares - só  pediria que andasse para mim. "Anda, Claudine, anda".

Seria mais como um bichinho de estimação do wue uma mulher. Um hamster naquele extraordinário corpo feminino.

Eu sonhava com a Claudine... Sonhava que um dia estaríamos em nossa casa e eu a conduziria a uma dependência qualquer de nosso lar, cobrindo-lhe os olhos com as mãos e, chegando a esta sala, descortinaria-lhe a surpresa à sua frente, para a qual ela sorriria com entusiasmo e me agradeceria dependurando-se em meu pescoço e tascando-me um beijo. Perto da janela, com ampla vista para a cidade inteira, na nossa cobertura, iluminada pela luz diáfana da manhã, estaria posicionada uma vistosa e reluzente esteira, moderníssima de última geração. "Anda, Claudine, anda", eu diria para ela.

Ela, com um brilho de alegria nos olhos, subiria, ligaria o aparelho que lentamente entrava em funcionamento e ela era então obrigada a sincronizar seu movimento com o da máquina. E eis que ela estava caminhando. Só para mim.

Ela então lembraria, como que num susto, "Ih, tenho que buscar as crianças na escola."

Ao que eu a acalmaria, "Não se preocupa, Claudine, só caminha, só caminha."

Ela então falava alguma coisa... mas eu não ouvia.

...

Sua voz saía muda.

O que ela tentava me dizer?

...

De repente eu entendia:

"Oi, você que é  o Carlos?"

Ahn?

Acordo de meu delírio e me deparo com alguém tocando meu ombro.

"Oi, desculpa incomodar. Tudo bem? Me falaram que você é bom de física... eu queria saber se você me daria uma ajuda...?"

Hesitei, gaguejei, meio abestalhado fiquei olhando para ela por um instante...

"Meu nome é Claudine, eu sou da outra turma. A gente nunca se falou...", explicou ela um tanto constrangida. "É essa parte aqui...", mostrou o conteúdo de física, sacando o caderno. "Se você puder me ajudar...", sugeriu de forma graciosamente suplicante, esperando meu parecer.

"Claro, claro", respondi quase automaticamente.

"Então tá. Obrigada. Tenho que ir agora que a professora já tá entrando. A gente combina depois. Valeu mesmo". E saiu, desta vez, numa corridinha desajeitada, para sua sala de aula.

Eu também tinha que me apressar antes que o professor me barrasse a entrada. Peguei a mochila, botei nas costas, suspirei fundo e segui em direção à sala de aula. Eu flanava pelo corredor.



Cly Reis 

quarta-feira, 18 de outubro de 2023

cotidianas #810 - "Não Se Mate"




Homem carregando a própria cabeça até o topo para deixar que role ladeira abaixo
"Homem carregando a própria cabeça até o topo
para deixar que role ladeira abaixo" - Susano Corrreia
Carlos, sossegue, o amor
é isso que você está vendo:
hoje beija, amanhã não beija,
depois de amanhã é domingo
e segunda-feira ninguém sabe
o que será.


Inútil você resistir
ou mesmo suicidar-se.
Não se mate, oh não se mate,
Reserve-se todo para
as bodas que ninguém sabe
quando virão,
se é que virão.


O amor, Carlos, você telúrico,
a noite passou em você,
e os recalques se sublimando,
lá dentro um barulho inefável,
rezas,
vitrolas,
santos que se persignam,
anúncios do melhor sabão,
barulho que ninguém sabe
de quê, praquê.


Entretanto você caminha
melancólico e vertical.
Você é a palmeira, você é o grito
que ninguém ouviu no teatro
e as luzes todas se apagam.
O amor no escuro, não, no claro,
é sempre triste, meu filho, Carlos,
mas não diga nada a ninguém,
ninguém sabe nem saberá.

********************

"Não se Mate"
(Carlos Drummond de Andrade)

terça-feira, 10 de outubro de 2023

cotidianas #809 - Pílula Surrealista #54

 

O poeta, anacrônico, perde-se na fisiologia do mundo digital, transformador de tudo. O papel, a pena, a tinta, a traça. Nada mais. Nunca mais. Na nuvem de palavras - soltas, acotovelando-se, daninhas - o poeta se dispersa em si próprio. Dilui-se entre letras. Até sumir.


Daniel Rodrigues

quarta-feira, 4 de outubro de 2023

cotidianas #808 - "Bebeto Loteria"

 




Bebeto subiu o morro gritando fiz treze
Mandando a miséria pra casa do chapéu
Mandou repetir a rodada de cerva três vezes
Dizendo que bancava tudo
Que também era coronel

Chegou no carteado perdeu por perder
Chegou na esquina deu nota de quina a valer e
O morro inteiro ficou perfumado com o perfume
Que a preta do Beto ganhou

Até quem não é de cheirar cheirou
Até quem não é de cheirar cheirou

De madrugada pintou sujeira o morro cercado, a maior correria
E o tal de Bebeto a polícia levou
Até hoje o morro quer saber
Qual foi a loteria que o Bebeto acertou

Até quem não é de cheirar cheirou

*******************

"Bebeto Loteria"
Grupo Fundo de Quintal
(letra: Tião Pelado)

Ouça:

terça-feira, 26 de setembro de 2023

cotidianas #807 - Supermercado

 




Não sei se vou no supermercado.

Se vou hoje, amanhã, segunda...

Segunda vai estar cheio. O dindim de geral já pingou na conta e geral vai fazer compras...

Em compensação, sexta tem o pessoal do churrasco. Quem já compra as coisas pro domingão, quem faz aquelas reservas pro finde... 

Acho que vou amanhã de manhã.

Mas pela manhã tem tanto velho! 

(Mal se mexem, mal conseguem empurrar o carrinho) 

O que que tanto velho faz no supermercado de manhã?

Pensando bem, acho que não vou pela manhã, não. 

Ah, na real, o armário nem tá tão vazio assim. Dá pra esperar mais um pouco. 

Semana que vem eu vejo isso.



Cly Reis 

quarta-feira, 13 de setembro de 2023

cotidianas #806 - A Mulher Impressionante



Ela não é linda. Na verdade, nem é mesmo muito bonita.
Mas ela é impressionante.
Impressionante, sabe? A gente olha pra ela e fica assim, "Uau!".
Mas é aquele tipo de mulher que parece melhor do que realmente é.
Aquela que sabe tirar o melhor de si, entende?
Não é aquela gostosona mas faz parecer, não tem muita bunda mas usa um salto alto que empina aquele traseiro... Ai. E aí parece alta e imponente também.
E usa umas meias coladas... Aquelas pernas finas ficam parecendo a melhor coisa do mundo.
E sabe usar aquelas pernas! Ela sabe andar, cara! Anda como uma felina, uma gata, uma onça, uma pantera.
Não tem tanto peito, mas aperta aqueles seios e levanta, pressiona no limite do decote, que deixa a qualquer um louco.
E a cor certa do batom...
E o jeito que ela joga o cabelo...
É covardia!
Como é que uma mulher dessas daria bola pra um cara como eu?
...
Pior que já deu...
Mas eu não dei bola quando ela não sabia como escolher o batom, jogar o cabelo, andar como uma felina, levantar os peitos, empinar a bunda...
Agora tá lá ela com aquele monte de caras em volta, como moscas em volta de um doce gostoso.
E eu aqui.
E ela... lá.



Cly Reis 

terça-feira, 22 de agosto de 2023

cotidianas #805 - "Quinze Anos"


arte integrante da capa do álbum
"Vivendo e Não Aprendendo"
do grupo Ira!, por Camila Trajber

Quando me sinto assim
Volto a ter quinze anos
Começando tudo de novo
Vou me apanhar sorrindo

Seu amor hoje
Me alimentará amanhã

Eis o homem
Que se apanha chorando

Vivendo e não aprendendo
Eis o homem, este sou eu
Que se diz seguro
Que se diz maduro

Seu amor hoje
Me alimentará amanhã

Eis o homem
Que se apanha chorando

Vivendo e não aprendendo
Eis homem, este sou eu
Que se diz seguro
Que se diz maduro

Seu amor hoje
Me alimentará amanhã

Eis o homem
Que se apanha chorando

★★★★★★★
"Quinze Anos"
canção da banda Ira!
(letra: Ricardo Gasparini e Edgar Scandurra)

★★★★★★★
Ouça: