Arctic Monkeys - "Leave Before The Lights Come On"
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A orientação é para que os retire do imóvel e retorne para a Central. Câmbio.
Não conseguem sair? Você também não consegue? Câmbio.
Eles estão lhe impedindo de alguma maneira, 65? Estão armados? Obstruíram os acessos, as aberturas? Câmbio.
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Qual a sua localização, 65?
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Rua da Providência..., sim, sei.
Ok. Aguarde reforços. Estamos enviando uma unidade para o local. Câmbio e desligo."
Assim se costuma dizer, e é bem certo. Ora, eu lhe conto: uma vez um capitão soube que muitos praças de sua companhia estavam num cateretê ferrado, longe do quartel, bebendo, dançando, brigando, pintando os sete demônios.
Chamou a ordenança e mandou buscar a soldadesca. Mas, o camarada em lá chegando, vendo que o pagode estava mesmo bom, com cada cabocla xodó, de trazer água na boca, e com um violeiro que botar no verso e no ponteá não havia outro − esqueceu-se da ordem, e caiu também na dança.
O capitão cansado de esperar e vendo que nem os praças, nem o ordenança voltavam, chamou o cabo e o mandou atrás do pessoal. Mas, o cabo foi, e aconteceu a mesma coisa: caiu na dança, e também não voltou. O capitão já estava ardendo de raiva. E vai daí, mandou o furriel. Mas o furriel fez o mesmo: caiu na dança, e era um dia...
O capitão queimava. Estava mesmo para arrancar as barbas de bode. E mandou o sargento, com ordem de trazer todo aquele povo na chincha.
Mas, o sargento não era de ferro... e vendo tanta mulata de pega pra saí, entrou na roda: Eta! Rapaziada boa!
O capitão, brabo que nem cobra na hora da queimada, chispou o alferes em busca da negrada.
Mas o alferes − que havia de fazer? Era dos tais que não podem ver defunto sem chorar, e caiu na pândega, com os galões e tudo. E espera pra lá, capitão do inferno!
E o capitão apois mandou que o tenente trouxesse tudo de cambulhada, e, já sabia, trinta por sessenta na canalha.
E vai o tenente pegou da espada e foi bufando por ali afora, que parecia um raio.
Mas, então a coisa é que estava mesmo boa. Eta sapateado de remelexo! E o tenente deu a espada pru cabo e... entra, Juca! Aquilo ia correndo trinta por um mês, que era um regalo.
A corneta tocou, mas, nada! Ninguém apareceu na revista da companhia. Então é que o capitão quase tira as calças e pisa nelas. E resolveu ele mesmo ir buscar a rapaziada. Havia de pegá-la pra Judas! Riscou nos calcanhos, como caititu na trilha com cachorrada atrás...
Mas chegando ao pagode... Eh! Maria Chica danada pra dançar! Quando ela avistou o capitão, fez uma chamada com o lencinho bordado, estalou os dedinhos pra banda dele e o bicho entrou na dança, como sapa n′água.
Fechou a roda. A companhia inteira dançava que era uma gostosura. E o violeiro então pegou a cantar:
Venha ver, ó minha gente,
Como é boa esta função.
Viola, dança e mulata
Prende inté seu capitão.
No outro dia o tenente perguntou ao oficial:
− Pronto, meu capitão: quantas cadeias pra negrada?
− Deixa disso, tenente. Quem cai na dança, não se alembra de mais nada...
E pegaram a rir, e tudo acabou em santa paz.
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"Quem cai na dança não se 'alembra' de mais nada"
Durante uma visita a um hospital psiquiátrico, um jornalista perguntou ao diretor da instituição:
- Qual é o critério que vocês usam para saber quem deve ser internado aqui?
O diretor, então, respondeu:
- Nós enchemos uma banheira com água e oferecemos ao paciente uma colher, um copo e um balde, e pedimos que ele esvazie. Dependendo da forma que ele decide esvaziá-la, nós o internamos ou não.
- Ah, sim, entendi. Uma pessoa normal usaria o balde, é claro. - disse o jornalista.
- Não, - disse o diretor - uma pessoa normal removeria o tampão da banheira.
Você gostaria de um quarto privado?
"O suicídio de Dorothy Hale" Frida Kahlo (1938) |
Curta-metragem em Super8 dirigido por Joanna Woodward, estrelado por Peter Murphy, ex-vocalista do Bauhaus, na época namorado da diretora. "The Grid" conta a história de um viajante do tempo que busca a primeira célula de sua existência e encontra uma 'Grade' que lhe permite observar o início da sua vida - desde o momento da concepção.
"The Grid", de Jo Woodward (1980)
Essa era, costumeiramente, a justificativa da Dulce para suas ausências nos programas da turma das "meninas", o grupo de amigas, senhoras já na dita melhor idade, e que não raro, procuravam atividades ou programações para ocupar o tempo ou se entreter,
Em muitos programas, ela até gostaria de ir mas, realmente, qualquer pinguinho, qualquer gotinha, tinha a capacidade de causar um estrago tremendo, devastador, que as amigas não tinham a capacidade de compreender.
- Ah, deixa de ser boba, Dulce! Que mal uma aguinha pode fazer? - argumentava uma.
- É, parece que é feita de açúcar. - completava uma outra jocosamente, e todas caíam na gargalhada.
Certo dia, Dulce aceitou um convite para sair. O dia estava claro, bonito, parecia sem riscos e ela então concordou em encontrar-se com as amigas.
Riram, beberam, dançaram mas, lá pelas tantas nuvens começaram a aparecer no céu. Dulce se inquietou. Agitou-se, começou a recolher as coisas apressadamente sob os protestos das colegas.
- Ai, Dulce, larga isso aí. Nem vai chover, só ficou meio nublado, não é nada.
- Não, não. Não posso arriscar.
Mas era tarde demais. As primeiras gotas começaram a cair.
São só uns pinguinhos. O que que pode acontecer?
Assim que as gotas tocaram o corpo de Dulce, ela pareceu paralisar.
Primeiro as amigas riram mas, aos poucos, suas expressões de galhofa foram se desfazendo.
Dulce derretia. A água erosionava as partes onde tocava em seu corpo e aos poucos pedaços inteiros desabavam, tombando para o lado e caindo pesadamente, se espalhando como se desenhassem explosões estrelares no chão.
As amigas olhavam para o chão, um tanto incrédulas, num misto de estarrecimento e piedade.
Uma delas não pode deixar de exclamar:
- Coitada, era um doce de pessoa.
Cly Reis
Nessa data querida
Muitas felicidade
Muitos anos de vida!"
A máquina de costura ainda batia repetidamente a agulha quando a mãe ouviu a voz do filho às suas costas num parabéns entusiasmado.
"Crianças!..." Não havia ninguém de aniversário naquele dia.
O lume, refletido nos cromados da máquina que manejava, acusava que algo acontecia atrás de si. Voltou-se, curiosa pelo luzidio reflexo e por tamanho festejo do filho. Ao virar-se, o que viu a tomou de um instantâneo pavor.
Chamas subiam de sua cama.!
Chamas....
Chamas...
Por trás delas, ajoelhado diante da labareda, ao pé da cama, a criança, seu filho de 3 anos de idade, alegre e orgulhosamente celebrava a gigante "vela" de aniversário que produzira com uma caixa de fósforos.
Celebrava, entoando os versos da mais famosa canção de congratulações de anos completados, diante da chama viva e luminosa que criara.
"Parabéns pra você
Nessa data querida
Muitas felicidade
Muitos anos de vida!"
O susto e a perplexidade inicial da mãe tiveram que dar lugar, rapidamente, à urgência de abafar o fogo e tirar a criança dali.
Como rescaldo do incidente, não houve vítimas, com exceção é claro do próprio pequeno incendiário que levou algumas boas lambadas de chineladas pelo aniversário macabro que proporcionara (o que não fora nada se comparado ao poderia ter acontecido). Também, pode-se dizer que não houve danos materiais com exceção de um belíssimo cobertor argentino de pelos, que para sempre carregaria a marca chamuscada da capetice daquele pirralho.
O que poderia ter-se transformado numa grande tragédia, felizmente virou uma lendária história para contar e que rimos até hoje.
O menino arteiro que, por sinal, hoje completa 45 anos, foi deixando de ser peralta aos poucos, cresceu, tornou-se um homem, depois um grande homem, um jornalista de alto nível, um escritor brilhante e felizmente tenho prazer de tê-lo como, além de irmão, parceiro deste nosso espaço de dedicação e exercício de criatividade.
Parabéns, Daniel querido!
Que, no teu dia, as únicas chamas que continuem acesas sejam as do teu caráter, do teu brilho interior e da tua inspiração. E que a da tua vida, que como qualquer outra, sabemos, não é eterna, ao menos, demore muito muito muito a se apagar.
Parabéns, parabéns!
Talvez até queime um coberto em tua homenagem.
Tu mereces, tu mereces.
Caixa de fósforos na mão e...
Parabéns pra você...
Cly Reis
- Cara, você nunca sentiu que precisava extrair mais do mundo, da vida? Uma sensação de que, sei lá, não consegue aproveitar o bastante, que faltam sentidos a nós humanos pra absorver as coisas com mais vigor, mais verdade.
- Como assim?
- Olha isso aqui à nossa volta: dá uma vontade de captar mais o que é bom, o que é vivo, de sentir mais o gosto das coisas, porque parece que o que a gente tem nesse mundo real não dá conta.
- Pra isso serve a arte. "A arte existe porque a vida não basta". Não é assim que o poeta diz?
- Não, não é só de arte que eu tô falando. Isso que eu digo é mais do que arte ou qualquer coisa palpável. É um desejo de vida mesmo, entende? Não é só respirar, é...
- Explica melhor.- Humm, sei lá... não sei nem se eu sei dizer, mais é o que eu sinto, sabe? É como se necessitasse sentir com mais inteireza esse milagre da vida. O sol que ilumina as árvores, o azul ou o preto do céu, o vento que bate na pele, a beleza feroz dos relâmpagos, o verde da relva, o colorido das flores... Tudo isso não cabe na compreensão, não acha?
- É, acho que sim.
- Pois é, tudo isso não cabe, não tem como pegar, como conter, como comprimir. Escapa. Chega a me dar vontade de comer!
- Comer o quê?
- O mundo.
- Humm...
- Sim, comer o mundo! Uma garfada, uma mordida na polpa. Como um pão, uma comida. Uma carne.
- Olha, gostei dessa: carne do mundo.
- É, isso mesmo: sentir o gosto da vida como quem saboreia a carne do mundo... Impossível, né?
- É... quem sabe um dia.
- Pois é: quem sabe.
Daniel Rodrigues
A via nos corredores do colégio e ficava admirando aquele jeito dela andar. A Claudine se movia de uma maneira única, ímpar, singular.
Ela não caminhava, ela flutuava, pairava, deslizava. Parecia andar nas pontas dos pés, pisar com cuidado para não ferir o chão. Um andar ao mesmo tempo determinado e sensual. Lânguida como uma garça e determinada como uma tigresa. Aquele cabelo avermelhado vivido como uma crina de fogo de um cavalo de raça, daqueles de trote elegante e seguro.
Pensava comigo mesmo que, se um dia tivesse a Claudine para mim, não lhe pediria mais nada - carícias, sexo, prazeres vulgares - só pediria que andasse para mim. "Anda, Claudine, anda".
Seria mais como um bichinho de estimação do wue uma mulher. Um hamster naquele extraordinário corpo feminino.
Eu sonhava com a Claudine... Sonhava que um dia estaríamos em nossa casa e eu a conduziria a uma dependência qualquer de nosso lar, cobrindo-lhe os olhos com as mãos e, chegando a esta sala, descortinaria-lhe a surpresa à sua frente, para a qual ela sorriria com entusiasmo e me agradeceria dependurando-se em meu pescoço e tascando-me um beijo. Perto da janela, com ampla vista para a cidade inteira, na nossa cobertura, iluminada pela luz diáfana da manhã, estaria posicionada uma vistosa e reluzente esteira, moderníssima de última geração. "Anda, Claudine, anda", eu diria para ela.
Ela, com um brilho de alegria nos olhos, subiria, ligaria o aparelho que lentamente entrava em funcionamento e ela era então obrigada a sincronizar seu movimento com o da máquina. E eis que ela estava caminhando. Só para mim.
Ela então lembraria, como que num susto, "Ih, tenho que buscar as crianças na escola."
Ao que eu a acalmaria, "Não se preocupa, Claudine, só caminha, só caminha."
Ela então falava alguma coisa... mas eu não ouvia.
...
Sua voz saía muda.
O que ela tentava me dizer?
...
De repente eu entendia:
"Oi, você que é o Carlos?"
Ahn?
Acordo de meu delírio e me deparo com alguém tocando meu ombro.
"Oi, desculpa incomodar. Tudo bem? Me falaram que você é bom de física... eu queria saber se você me daria uma ajuda...?"
Hesitei, gaguejei, meio abestalhado fiquei olhando para ela por um instante...
"Meu nome é Claudine, eu sou da outra turma. A gente nunca se falou...", explicou ela um tanto constrangida. "É essa parte aqui...", mostrou o conteúdo de física, sacando o caderno. "Se você puder me ajudar...", sugeriu de forma graciosamente suplicante, esperando meu parecer.
"Claro, claro", respondi quase automaticamente.
"Então tá. Obrigada. Tenho que ir agora que a professora já tá entrando. A gente combina depois. Valeu mesmo". E saiu, desta vez, numa corridinha desajeitada, para sua sala de aula.
Eu também tinha que me apressar antes que o professor me barrasse a entrada. Peguei a mochila, botei nas costas, suspirei fundo e segui em direção à sala de aula. Eu flanava pelo corredor.
Cly Reis
"Homem carregando a própria cabeça até o topo para deixar que role ladeira abaixo" - Susano Corrreia |
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"Não se Mate"O poeta, anacrônico, perde-se na fisiologia do mundo digital, transformador de tudo. O papel, a pena, a tinta, a traça. Nada mais. Nunca mais. Na nuvem de palavras - soltas, acotovelando-se, daninhas - o poeta se dispersa em si próprio. Dilui-se entre letras. Até sumir.
Daniel Rodrigues
Se vou hoje, amanhã, segunda...
Segunda vai estar cheio. O dindim de geral já pingou na conta e geral vai fazer compras...
Em compensação, sexta tem o pessoal do churrasco. Quem já compra as coisas pro domingão, quem faz aquelas reservas pro finde...
Acho que vou amanhã de manhã.
Mas pela manhã tem tanto velho!
(Mal se mexem, mal conseguem empurrar o carrinho)
O que que tanto velho faz no supermercado de manhã?
Pensando bem, acho que não vou pela manhã, não.
Ah, na real, o armário nem tá tão vazio assim. Dá pra esperar mais um pouco.
Semana que vem eu vejo isso.
Cly Reis
arte integrante da capa do álbum "Vivendo e Não Aprendendo" do grupo Ira!, por Camila Trajber |