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segunda-feira, 27 de março de 2023

"Rebecca, A Mulher Inesquecível", de Alfred Hitchcock (1940) vs. "Rebecca, A Mulher Inesquecível", de Ben Wheatley (2020)

 



Alfred Hitchcock, um dos maiores e mais influentes cineastas de todos os tempos na história do cinema, curiosamente nunca ganhou um Oscar de melhor diretor. No entanto, um filme seu foi agraciado com a honra máxima da Academia, o Oscar de melhor filme: "Rebecca, A Mulher Inesquecível", de 1940. E não é que me vem um sem-noção e tenta dar sua versão exatamente o filme mais premiado de Hitchcock? Refilmar um Hitchcock qualquer já é uma ousadia corajosa, refilmar "Rebecca...", então, é pedir pra cair nas comparações e fracassar rotundamente.

"Rebecca, A Mulher Inesquecível" pode não ser seu maior filme, seu trabalho mais conhecido, sua obra-prima, mas é um daqueles filmes impecáveis, preciso, perfeito em todos os detalhes, tipo aquele time certinho, ajustado em cada setor. Não entra pra história pelo belíssimo futebol, pela vistosidade, mas garante seu nome entre os grandes esquadrões pela competência e pelos troféus no armário. Mas engana-se quem possa pensar que "Rebecca" não é impressionante. Se é menos marcante numa comparação com um "Janela Indiscreta", "Psicose", ou "Um Corpo que Cai", é inegável, no entanto, que possua todos os méritos para ter alcançado, em relação a esses badalados clássicos, o ineditismo de um Oscar de melhor filme na filmografia do Mestre do Suspense.

Em "Rebecca", uma jovem dama de companhia de uma ricaça, numa temporada em Monte Carlo, conhece um milionário abalado pela morte trágica da esposa. Mesmo ainda se recuperando do trauma, o viúvo, Maxim De Winter, sentindo-se revitalizado, reanimado depois de tudo que passara, se envolve com a garota e casa-se com ela, lá  mesmo no Principado.

Ele a leva para sua residência, a suntuosa mansão Manderlay, na Inglaterra, mas lá a esposa não  consegue ter paz no casamento uma vez que a sombra da falecida, Rebecca, parece estar em tudo e em todos os lugares da casa. Sensação que é  reforçada e ainda mais agravada pela presença quase sinistra da governanta, sra. Denvers, fiel e devotada servidora, mesmo depois da morte da patroa. Só  que aos poucos percebemos que há  alguma coisa de errada com a tal morte... Ninguém quer falar muito a respeito, o marido age estranho, a empregada esconde alguma coisa, aparece um "primo" misterioso e o tal naufrágio da qual Rebecca fora vítima revela-se um incidente meio meio mal explicado e repleto de interrogações.

"Rebecca, A Mulher Inesquecível" (1940) - trailer


"Rebecca, A Mulher Inesquecível" (2020) - trailer


Hitchcock mais uma vez fazia o que costumava fazer com maestria: induzir o espectador por caminhos errados, confundir um pouco a nossa percepção inicial. Sugere algo sobrenatural, como em "Um Corpo que Cai" e "Psicose", introduz um mistério, nos enrola, cria o suspense, nos revela razões erradas, vai trazendo novas informações, para tudo culminar, no fim das contas, num thriller policial.

A nova versão tem a trama absolutamente igual e, por seu turno, não acrescenta em nada. Não é melhor tecnicamente, não tem um diretor à altura, não tem atores melhores e, no mínimo que se arrisca em ousar, não  tem sucesso ou não dá ganho algum. Lily James até é boa atriz, faz bem seu papel como a nova sra. De Winter, mas diante da atuação de Joan Fontaine, indicada para o Oscar, na época, sua performance é simplesmente pulverizada. Joan Fontaine está magnífica! Ela é tímida, insegura, tem aquela postura curvada de quem se sente diminuída, não consegue fixar o olhar no interlocutor, não sabe o que fazer com as próprias mãos e as mexe nervosamente, é sufocada pela imponência da casa, e fica reduzida a um ratinho diante da intimidadora governanta.

Quanto a Lawrence Olivier, salvo toda sua fama, seu título de Sir da Coroa Britânica e coisa e tal, pra mim é o típico canastrão hollywoodiano e, particularmente, apesar de seu Oscar na prateleira por Hamlet, e seu caminhão de indicações, nunca fui muito seu fã. Mas, tenho que reconhecer que, além da comparação inglória com o zé-ninguém que interpreta De Winter no remake, Armie Hammer, desta vez ele me convenceu. Faz o tipo galante quando precisa, é jovial nos momentos de descontração, especialmente nas cenas em Mônaco, mostra-se convincentemente atormentado pelos acontecimentos que levaram à morte de Rebecca, e piedosamente vulnerável quando os acontecimentos parecem mudar de rumo.

E o que dizer da governanta, sra. Denvers? A antiga, interpretada por Judith Anderson, que também fora indicada ao Oscar pelo trabalho, parece uma assombração, uma presença maligna, uma alma penada, um urubu, sempre de preto, postura quase estática, movimentos mínimos, olhar frio e impassível. Kristin Scott-Thomas, da nova versão, é ótima atriz, até vai bem no papel, mas fica reduzida a pó diante do desempenho de Judith Anderson.

A direção de arte do remake é competente, recria bem a Monte Carlos dos anos 40, tudo é caprichadinho, ele ousa numa montagem mais ágil (o que não ajuda muito), a fotografia até é boa, um pouco colorida demais para o meu gosto, ok, mas, mesmo nisso, não teria como bater a que fora, inclusive, reconhecida com um Oscar? A força estética do preto e branco, o jogo de luz e sombras, os penhascos à praia, a perspectiva dos corredores da mansão, a imponência de Manderlay... Tudo imbatível!

Não tem como disputar.

O time de Hitchcock começa metendo 1x0 nos primeiros minutos na cena em que a jovem dama de companhia conhece o milionário, à beira de um penhasco, possivelmente prestes a um suicídio. A acrofobia induzida pela posição da câmera, a expectativa pela ação daquele homem, a iniciativa (talvez) salvadora da garota e, ali, o início da relação dos dois, constituem uma baita jogada do mestre do suspense e tira o primeiro zero do placar. Ben Wheatley, por sua vez, talvez tendo noção de que não conseguiria reproduzir algo tão espetacular, abre mão da cena, começando sua trama diretamente no hotel.

Manderlay, a mansão, uma casa que parece ter vida própria, que em determinado momento chega a parecer assombrada, impressiona por sua imponência sombria e opressora, quase como um personagem à parte, muito mais no primeiro filme, do que no remake, que não lhe confere tamanha relevância. Gol de Manderlay: 2x0, no placar.

Joan Fontaine (craque) desequilibra. Joga demais! A fragilidade, a timidez, a insegurança, a humildade da personagem, a impotência diante da onipresença de Rebecca em tudo naquela casa, a paixão nos olhos diante do misterioso marido... É gol! Mais um pro time de Hitchcock.

Sir Lawrence Olivier, aquele craque contratado pra dar aquele brilho no meio-de-campo, o cara da jogada requintada, também guarda o dele. 4x0 para "Rebecca" (1940). E Judith Anderson, além de não deixar passar nada na defesa (na defesa dos interesses da antiga patroa), por sua atuação de luxo, vai ao ataque, também marca o dela e, literalmente) incendeia a torcida!

A favor do novo, Sam Rilley, se sai melhor como o primo Jack Favell do que George Sander do original; a parte do inquérito, depois da descoberta do barco de Rebecca, funciona melhor no remake; e a subtrama, dos interesses por trás do conluio de Favell com a governanta Denvers, fica um pouco mais clara na nova versão. Ok..., tudo isso, somado, dá um golzinho para o time de 2020, mas aí a casa já caiu (literalmente). 

Baile de gala! 5x1 para 'Rebecca" de 1940.


Vários momentos dos dois filmes:
(à esquerda, Rebecca, de 1940; à direita, o de 2020)
1. Manderlay, a suntuosa mansão, bem mais sombria e ameaçadora na visão de Hitchcock;
2. O interior da casa e a iluminação proposta por cada diretor;
3. A sra. Denvers, a sinistra Judith Anderson (esq.) e Kristin Scott Thomas, à direita, um pouco mais humana;
4. A governanta atormentando a vida da nova patroa, nas duas versões;
5. Nosso adorável casalzinho;
6. Mesmo com o filme levando o nome de Rebecca e tudo girando em torno dela,
nossa protagonista é a adorável personagem sem nome:
à esquerda, Joan Fontaine, brilhante, e
à direita, Lily James, apenas competente.




Se o filme de Hichcock chama-se "Rebecca, a mulher inesquecível",
o da Netflix, poderia, perfeitamente, se chamar "Rebecca, o filme dispensável".




Cly Reis