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quarta-feira, 9 de agosto de 2017

Eric Clapton - "Me and Mr. Johnson" (2004)



"É uma coisa significativa minha vida ter sido
conduzida e influenciada pelo trabalho de um homem (Robert Johnson)"

"(A música de Johnson) É a melhor música que já ouvi."
Eric Clapton


Disco de discípulo homenageando mestre. Eric Clapton, confesso amante do blues e que já dedicara vários momentos de sua carreira a gravações no gênero, resolvia então depois de muito tempo fazer um álbum inteiro somente com canções do homem que é por muitos considerado o maior nome da história do blues, Robert Johnson. O projeto, no entanto, nasceu meio que por acaso, uma vez que Clapton tinha o compromisso com a gravadora de lançar um novo álbum mas, de repente, vira-se sem tempo hábil para apresentar novas composições. Assim, a solução foi partir para um repertório que conheciam bem e que tirariam de letra. Clapton pediu para que a banda tocasse como se estivesse num bar de beira de estrada e o resultado é um disco extremamente leve, gostoso e solto.
Fora a diferença de tocar com uma banda completa ao passo que, na maioria das veze a única companhia de Johnson era o próprio violão, as canções mantêm suas estruturas e características originais, sem maiores ousadias. "When You Got a Good Friend", "Me and the Devil Blues" e "Kindheart Woman Blues" são praticamente puras, preservando ao máximo a atmosfera original das canções, mas é lógico que um músico talentoso como Clapton dá seus toques pessoais a muitas delas e aseja em solos destruidores e altamente originais mesmo em composições tão consagradas, seja em diferenças sutis nos arranjos. "Last Fair Deal Gone Down", por exemplo, tem uma versão alucinada sendo possivelmente a que mais se distancia da original. "Traveling Riverside Blues" por sua vez sofre uma certa desaceleração e ganha uma mixagem mais trabalhada que a diferencia das demais nesse sentido; "32-20 Blues" carrega no piano; "They're Red Hot" abre mão do ritmo frenético imposto por Johnson; "Hellhound on My Trial" tem um ritmo quebrado, bateria marcante e guitarras surgindo de todos os lados; e "Milkow's Calf Blues" ganha peso lembrando os tempos de Cream e seus blues envenenados.
Um tributo tardio segundo o próprio Clapton que já manifestara o desejo de gravar a obra deste cantor, uma homenagem quase sem querer dadas as circunstâncias, mas que nós, fãs de blues e de boa musica, somos gratos por ter acontecido. Uma justa celebração do blues que carrega, curiosamente, uma estranha ironia, considerando a alcunha pela qual Clapton ficou conhecido e a lenda em torno de Robert Johnson: "Me and Mr. Johnson" seria, por assim dizer, uma homenagem de Deus para o Diabo. 

Cly Reis

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FAIXAS:
1."When You Got a Good Friend" (3:20)
2."Little Queen of Spades" (4:57)
3."They're Red Hot" (3:25)
4."Me and the Devil Blues" (2:56)
5."Traveling Riverside Blues" (4:31)
6."Last Fair Deal Gone Down" (2:35)
7."Stop Breakin' Down Blues" (2:30)
8."Milkcow's Calf Blues" (3:18)
9."Kind Hearted Woman Blues" (4:06)
10."Come on in My Kitchen" (3:35)
11."If I Had Possession Over Judgement Day" (3:27)
12."Love in Vain" (4:02)
13."32-20 Blues" (2:58)
14."Hell Hound on My Trail" (3:51)

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Ouça:
Eric Clapton - Me and Mr. Johnson

quinta-feira, 13 de julho de 2017

Meus melhores filmes de Rock


Um dia 13 do mês 7. Dois números considerados demoníacos por alguns. Só poderia mesmo ser o Dia do Rock! Afinal, como muito assertivamente diz Raul Seixas em sua música em parceria com Paulo Coelho: “o diabo é o pai do rock”. Pois o estilo musical mais popular do mundo é e sempre será relacionado ao obscuro, ao que nos tira do chão, nos faz pirar a cabeça. Impossível seria se toda essa força não se entranhasse no cinema. Seja em títulos que abordam o tema, seja na difusão da “linguagem videoclípica” ou até dos milhares de filmes que se valem de seu ritmo e potência em trilhas sonoras, o rock ‘n’ roll desde que os Beatles se aventuraram nas telas com “A Hard Days Night”, de Richard Lester, em 1964, passou a fazer parte do universo do cinema, sendo-lhe fundamental hoje na construção de estéticas, dramaticidade e conceitos. Para saudar o estilo musical mais frenético e rebelde da história da arte, elencamos 6 filmes que trazem o rock em seu coração, seja na trama, argumento ou mesmo como um elemento fílmico de destaque. Por que 6? Ora, bebê: 13 menos 7…

Coração Selvagem (1990) – Premiado longa de David Lynch com Nicholas Cage e Laura Dern, "Wild at Heart" (Palma de Ouro em Cannes) que entre seus diversos elementos simbólicos típicos do cineasta, como as referências a “Mágico de Oz”, aos road-movies dos anos 70 e aos suspenses psicológicos de John Frankenheimer, um se destaca: Elvis Presley. A figura do Rei do Rock é fundamental na trama, funcionando simbolicamente para o amor verdadeiro mas combatido dos personagens centrais. Na história, Marietta (Diane Ladd, ótima) é uma sulista rica e louca que não aceita que sua filha, Lula (Laura, jamais tão sexy como neste filme) namore Sailor Ripley (Cage) por ciúmes dela. Marietta manda um capanga matar Sailor, que reage e ele, sim, o mata e vai preso. Dois anos depois, ele é solto e foge para a Califórnia com Lula. Passam a ser perseguidos por Marcello Santos (J.E. Freeman), um assassino contratado por Marietta, e conhecem diversos tipos bizarros, como Bobby Peru (Willem Dafoe, incrível), que convence Sailor a participar de um assalto a banco. Claro que a ideia não dá em boa coisa! Além das músicas incidentais brilhantemente bem selecionadas por Angelo Badalamenti, autor de trilha, como “Be-Bop-a-Lu-La”, Gene Vincent, o clássico blues “Baby Please Don’t Go”, com a Them, e o heavy-metal avassalador “Slaughter House”, da Powermad, é em Elvis que o rock aparece com força. Além de cantar “Love Me” durante o filme, no final, Sailor entoa “Love me Tender” para Lula, cena de tirar lágrimas de qualquer espectador. “Coração Selvagem” é puro rock ‘n’ roll, onde não faltam sexo, drogas e muito som. 



Pulp Fiction – Tempo de Violência (1994) – Quando Quentin Tarantino trouxe ao mundo do cinema o divisor-de-águas “Pulp Fiction”, com seu turbilhão de referências pop, entre elas do rock ‘n’roll, o mesmo já havia mostrado seu apreço pelo rock no antecessor “Cães de Aluguel” (1992) e no por ele roteirizado “Amor à Queima-Roupa”, de Tony Scott (1993). Mas é em “Pulp Fiction” que sua alma rocker se expõe definitivamente através do rock dos anos 50 e 60, bastante presente na trilha, selecionada a dedo pelo próprio Tarantino. Desde a abertura com a avassaladora surf-music “Misirlou”, com Dick Dale, até o hit “Girl, You’ll Be A Woman Soon”, da Urge Overkill, “Pulp Fiction”, este marco da história do cinema, reverencia o rock na sua forma mais inteligente e sacada, trazendo à tona (como é de praxe a Tarantino) nomes e artistas já esquecidos do grande público. Quem não conhece a famosa cena em que, no encantador pub Jackrabbit Slim, Vincent Vega (John Travolta) e Mia Wallace (Uma Thurman) dançam “You Never Can Tell” de Chuck Berry? Delicioso e divertido, é outro que abocanhou a Palma de Ouro em Cannes.



Contra a Parede (2004) – Tocante e apaixonante filme alemão do diretor Fatih Akin, um pequeno clássico contemporâneo. Romance moderno, se passa entre a cosmopolita e suburbana Berlim e a exótica e sensual Istambul e narra a história de Sibel (Sibel Kekilli), uma linda muçulmana que conhece em uma clínica de recuperação, após uma tentativa de suicídio, Cahit (Birol Ünel), um rapaz que também tem raízes turcas. Ambos decidem se casar formalmente como fachada para que Sibel escape das regras estritas de sua família conservadora. Embora ela tenha uma vida sexual independente, eles resolvem dividir um apartamento. O junkie Cahit, roqueiro amante de Sisters of Mercy, Siouxsie and the Banshees e Nick Cave, aceita a situação no início, mas se apaixona e, num acesso de ciúmes, mata um dos amantes da companheira. Depois de cumprir pena, Cahit reencontra Sibel, ainda acreditando que eles podem ter um futuro em comum. Duas cenas roqueiras são impagáveis. A primeira é a em que os protagonistas dançam ao som de "Temple of Love", do Sisters of Mercy. A outra é a cena em que o médico da clínica psiquiátrica cita para Cahit “Lonely Planet”, da banda de rock inglesa The The, é engraçada e, ao mesmo tempo, simbólica para a trama, pois diz: “Se você não pode mudar o mundo, mude a si mesmo”.



Os Bons Companheiros (1990) – Clássico do genial Martin Scorsese, “Goodfellas” é o melhor filme de gângster de sua carreira (para muitos, o seu melhor entre todos) e, embora o tema não se relacione diretamente com o rock, a vida junkie de seu protagonista (Henry Hill, vivido por Ray Liotta) e, principalmente, a trilha sonora, fazem com que este estilo musical desenhe o filme de ponta a ponta. A história conta a saga de um trio de golpistas desde os anos 50 ao início dos 80, e a trilha acompanha esta trajetória, pontuando período por período com joias muito bem pinçadas por Scorsese – o maior roqueiro por trás das câmeras ainda vivo. Duas cenas em que músicas do cancioneiro rock marcam o filme são inesquecíveis. Uma delas, a da “limpa” que a gangue pratica, executando diversos adversários e cúmplices, quando os acordes da maravilhosa parte com piano de “Layla”, de Eric Clapton, acompanham o movimento da câmera, que percorre vários lugares mostrando os corpos assassinados. A outra finaliza a fita, quando, já no final dos anos 70, época do estouro do punk-rock, Liotta quebra a "quarta parede" e olha desanimado para a câmera ao som de “My Way” com o Sex Pistols



Blow-Up – Depois Daquele Beijo (1966) – Um dos maiores filmes da história do cinema, esta pérola de Michelangelo Antonioni, se não aborda diretamente a vida sem sentido de jovens da contracultura norte-americana dos anos 60 como “Vanishing Point”, de cinco anos depois, é, talvez mais do que este, um marco deste período por sua trilha, de ninguém menos que o mestre do jazz moderno Herbie Hancock. Escrevi mais substancialmente sobre “Blow-Up” em 2010, quando tive oportunidade de assistir a uma aula que dissecou o roteiro e concepção desta obra-prima do cinema mundial. Um dos pontos que destaquei é, justamente, a famosa cena do show dos Yardbirds em um clube em que Jeff Beck, detonando um hard-rock de tirar o fôlego, quebra a guitarra no palco e atira o braço todo despedaçado para o público. O protagonista, o cético e desmotivado fotógrafo Cummings (David Hemmings) briga para ficar com o toco de guitarra, sai do clube para que não o tirem dele e, já na rua… joga fora. Atitude que reflete o descrédito e ceticismo da lisérgica geração Swingin’ London. A abertura, com os créditos ao som de um charmoso rock de Hancock, é clássica: simbólica e esteticamente estupenda.



The Wall (1982) – Alan Parker, não sei se por esvaziamento ou preguiça, há muito não filma algo que o valha. Porém, antes de realizar obras-primas como “Coração Satânico” (1987), “Mississipi em Chamas” (1988) e “Asas da Liberdade” (1984), o inglês já havia feito o épico “The Wall”, em que cria, a partir da magistral música de Roger Waters, um musical conceitual e arrojado para o disco homônimo do Pink Floyd, lançado três anos antes. Em imagens muito bem fotografadas por Peter Biziou, cuja estética remete ao pós-guerra, mostra as fantasias delirantes do superstar do rock Pink, um homem que enlouquece lentamente em um quarto de hotel em Los Angeles. Queimado no mundo da música, ele só consegue se apresentar no palco com a ajuda de drogas. O filme acompanha o cantor desde sua juventude, mostrando como ele se escondeu do mundo exterior. Ainda, as intervenções de desenhos animados, trazidos pela habilidosa mão do desenhista Gerald Scarfe, são bastante pioneiras em termos de arte pop no cinema, antecipando, por exemplo, filmes como "Kill Bill" e "Sin City".




por Daniel Rodrigues

segunda-feira, 24 de abril de 2017

Freddie King - "Getting Ready..." (1971)


"Freddie King foi quem me ensinou
a fazer amor com a guitarra."
Eric Clapton


É interessante... Devo admitir que comprei esse disco por causa da capa. Estava numa dessas feiras de vinil fuçando na seção de jazz e blues e dei de cara com esse com um negão empunhando uma guitarra na capa. Pinta de blueseiro invocado, dos bons. Vou levar. Alguma coisa de bom devia sair daquela guitarra. Ouvi o disco e percebi o tamanho da sorte da minha escolha ao acaso. Um baita disco de blues. Já contemporâneo, mais elétrico, mais pesado mas totalmente dentro da melhor linha dos grandes músicos do gênero. Depois, buscando informações sobre o produto que comprara é que fui saber das qualificações do guitarrista. Freddie, um dos três "Kings" do blues junto com B.B. King e Albert King, fez parte da grande cena do blues de Chicago dos anos 50, tendo tocado com Willie Dixon, Robert Lockwood Jr., e o gaitista Little Walter, entre outros e, apesar da rejeição da Chess Records, que o considerava muito parecido com B.B. King, aos foi poucos conquistando seu próprio espaço ganhando reconhecimento de grandes nomes do universo musical. King foi considerado pela revista Rolling Stone o 15º melhor guitarrista de todos os tempos e sua marca registrada era o jeito de pendurar a alça da guitarra, sem cruzá-la, apoiada no ombro do mesmo braço com que tocava.
"Getting Ready..." é um belo exemplar do blues de Chicago evoluído com o passar do tempo, adaptado a seu tempo, no caso, o início dos anos 70. Mais rock'n roll, mais pesado e com uma dose de psicodelia.  A melancólica "Same Old Blues" que abre o disco tem uma pegada gospel; a versão de "Dust My Broom" de Elmore James é espetacular; "Five Long Years", outro clássico, também tem execução impecável; e "Walking by Myself" é outro grande momento.
Mas a grande música do disco é mesmo "Going Down", um blues forte, intenso, tão encorpado e vigoroso que chega às raias do rock muito próximo ao som que Jimi Hendrix vinha fazendo e que o próprio mestre Muddy Waters havia experimentado em "Electric Mud".
"Palace of the King" que fecha o disco é outra com pegada mais rock, ao melhor estilo Eric Clapton, com quem por sinal, Freddie excursionaria ainda antes de sua morte prematura aos 42 anos.

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FAIXAS:
1. Same Old Blues (Don Nix)
2. Dust My Broom (Elmore James )
3. Worried Life Blues (Big Maco)
4. Five Long Years (Eddie Boyd)
5. Key To The Highway (Bill Broonzy, Charles Segar )
6. Going Down (Don Nix)
7. Living On The Highway 
(Don Nix, Leon Russell)

8. Walking By Myself (Lane)
9. Tore Down (Freddie King)
10. Palace Of The King (Don Nix, Donald "Duck" Dunn, Leon Russel)

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Ouça:



Cly Reis

segunda-feira, 10 de abril de 2017

Pink Floyd – “The Piper at the Gates of Down” (1967)


“’Sim’, disse o Rato gravemente. ‘Ele está desaparecido há alguns dias, e as lontras caçaram em todos os lugares, de alto a baixo, sem encontrar o menor vestígio, e também perguntaram a todos os animais por milhas ao redor, e ninguém sabe nada sobre ele.’”
trecho do conto infantil “O Vento nos Salgueiros”,
de Kenneth Grahame, de onde Syd Barrett tirou a frase
“The Piper at the Gates of Down” (“O Flautista nas Portas do Alvorecer”)


A explosão de talentos ocorrida no rock dos anos 60 ainda é inigualável em comparação a qualquer outra época da história do gênero mais popular e subversivo da música moderna. Além de hábeis compositores, eram verdadeiros mestres na reelaboração dos elementos do blues e não raro sob a lisérgica roupagem psicodélica. Jimi Hendrix, John Lennon, Eric Clapton e Van Morrison são exemplos incontestes. Em alguns casos, entretanto, a psicodelia era tanta que a sonoridade pendia para a vanguarda experimental, caso dos igualmente brilhantes Frank Zappa, Don Van Vliet, Mayo Thompson e Roky Erikson. De fato, nem todo mundo conseguia soar pop e equilibrar uma escrita musical própria com a tendência psicodélica, a qual, por si, apontava para infinitos caminhos. Quem melhor chegou a esta química – que continha em sua composição muita droga psicotrópica, em especial LSD – foi o gênio louco Syd Barrett, cabeça e fundador do Pink Floyd.

“Diamante Desvairado”, como os companheiros de banda o apelidaram, é a melhor classificação que podia ser dada a Syd Barrett. A perturbação mental e emocional sempre lhe foram uma faca de dois gumes. Suspeita-se que sofria de Síndrome de Asperger, condição neurológica do espectro autista caracterizada por dificuldades na interação social e comunicação não-verbal, além de padrões de comportamento repetitivos e interesses restritos. Em contrapartida, tal condição lhe evidenciava uma criatividade acima da média – ou, quem sabe, não era suficiente para suplantar-lhe o ato de criar. “Não acho que seja fácil falar de mim, tenho uma mente muito irregular”, dizia, referindo-se a si próprio. De fato, como os misteriosos caminhos percorridos pela lontra Portly ao perder-se na floresta em “O Vento nos Salgueiros”, não é simples entender por quais meandros psiconeurológicos percorriam a mente de Barrett, artista capaz de conciliar rock com música barroca, conto de fadas, expressionismo abstrato, duendes, jazz avant-garde, teosofia e B movie numa única sinapse cerebral. Naturalmente uma mente de vanguarda. “The Piper at the Gates of Down”, um dos ícones do rock psicodélico, é a melhor representação dessa equação ímpar engendrada por Barrett. Junto com “Sgt. Peppers Lonely Hearts Club Band”, dos Beatles, o primeiro do The Doors, “Velvet Underground & Nico” e alguns outros clássicos do rock que completam 50 anos em 2017, a estreia do Pink Floyd continua inovadora a cada audição, inundando de referências gerações e gerações.

“The Piper...” é surpreendente do início ao fim. A começar pela capa, que não poderia ser mais tradutora da psicodelia da época, em que os integrantes do grupo se misturam como num caleidoscópio lisérgico. A produção de Norman Smith se vale do luxuoso aparato técnico do estúdio Abbey Road, em Londres, para criar a devida atmosfera espacial e jogar luz sobre todos os detalhes (não raro exóticos) ressaltados por Barrett e a jovem banda, que trazia Roger Waters, baixo e voz; Richard Wright, teclados, sintetizador; e Nick Mason, bateria e percussão – ou seja, os integrantes clássicos do Pink Floyd somados a David Gilmour, substituto de Barrett a partir de 1968. Comandando a guitarra e os vocais, Barrett dá o direcionamento conceitual do álbum, que começa com a tensa "Astronomy Dominé". Sinais intermitentes de um contador Geiger iniciam a música prenunciando a instabilidade do tema. Em uníssono, o vocal canta sobre um compasso monofônico: “Verde-limão límpido, uma segunda cena/ Uma luta entre o azul que você uma vez conheceu/ Flutuando para baixo o som ressoa/ Pelas águas geladas e subterrâneas/ Júpiter e Saturno, Oberon, Miranda e Titânia/ Netuno, Titã, estrelas podem assustar”. Uma espécie de refrão sem letra se dá numa frase de guitarra e um vocalize que, unidos, assemelham-se a um uivo selvagem. Isso até chegar a 1 min 35 da faixa, ponto onde ela muda totalmente. Parece que a canção irá se manter nesse rumo sob sons de órgão, efeitos, interferências de rádio e improvisações. Entretanto, a melodia de repente volta ao tema inicial e o término é igualmente intenso, quase catártico. Isso tudo é o disco recém começando...

A magnífica “Lucifer Sam” – cuja produção e a engenharia de som de Peter Bown são irretocáveis – é, basicamente, um blues ritmado com certa pegada surf music. Não fosse sua atmosfera sombria e mística (“Lucifer Sam, um gato siamês/ Sempre sentado ao seu lado/ Sempre ao seu lado/ Esse gato tem algo que não posso explicar/ Jennifer Gentle você é uma bruxa/ Você está do lado esquerdo/ Ele está do lado direito/ Esse gato tem algo que não posso explicar...”), que a leva mais para uma obscura trilha de série de TV. Efeitos como chocalhos, o órgão de Wright, a guitarra-base, o baixo de Waters e a bateria de Mason são perfeitamente ouvidos, mas o que se destaca mesmo é a segunda guitarra de Barrett, que executa um riff em tom grave, a qual contém uma das características compositivas dele: os leves atrasos nos tempos. Como se sempre algo estivesse fora do presente, pondo-se entre a realidade e o sonho. E se o virtuosismo não é a característica de Barrett – como será a de Gilmour, que assumirá as guitarras logo em seguida na banda –, o solo da faixa (toque percutido, exploração dos efeitos de pedal, variação de escala) é de pura criatividade.

Novamente revelador, o disco traz a estranha mas brilhante “Matilda Mother”, que muda totalmente pelo menos umas três vezes em pouco mais de 3 minutos de canção. O arranjo vocal, incrivelmente variante, é um primor, lembrando bastante no refrão o estilo que o Pink Floyd adotaria muitas vezes a partir de então, como em “Breath” (1973) e “The Thin Ice” (1979). O teclado e o baixo pronunciam o acorde inicial, pausado e contemplativo. O universo lúdico da infância, ao mesmo tempo fantástico e tempestuoso, é expresso na letra, em que Barrett clama pela mãe e pela criança que não mais é: “Havia um rei que governou a terra/ Sua Majestade estava no comando/ Com olhos prateados a águia escarlate/ Banhou de prata as pessoas/ Oh, Mãe, me conte mais”. Depois de algumas sinuosidades melódicas, lá por 1 min 25 entra um solo de órgão de ares barrocos. Porém, o que mais se destaca é a psicodélica percussão gutural de Barrett. De repente, as vozes se intensificam, a guitarra dita o riff e... volta tudo à melodia inicial, num proposital corte abrupto – como uma contação de estória sendo interrompida, ou melhor, deslocando-se no tempo psicológico em que o autor se dá conta de que a infância se foi. Em 2 min 25, um novo fim falso, que leva a música até o desfecho num clima ainda mais onírico.

“Flaming” não só se mantém no universo anedótico como o expande, levando o ouvinte a um céu estrelado e azul com unicórnios e animais da floresta de toda ordem. A melodia é ondulante, obscura, exótica. Não é para menos, pois se trata de um dos mais fiéis relatos de uma viagem lisérgica de LSD: “Observando botões-de-ouro moldarem a luz/ Dormindo em um dente-de-leão/ É demais, eu não vou te tocar/ Mas até poderia”. Exemplo de melodia composta no violão e devidamente arranjada pela banda em que todos se destacam, principalmente Barrett ao violão e Wright, que segura o clima no órgão e no solo de cravo ao final.

Nova surpresa, nova montanha-russa, nova obra-prima. Os sons articulados na goela e na faringe não apenas reaparecem como sustentam a abertura da sui generis “Pow R. Toc. H.”. O que se ouve são cacos vocais e sons quase demenciados sobre curtos e esquisitos rufares percussivos igualmente gerados por aparelho vocal humano. Essa configuração estranha se transforma em seguida num som de culto indígena, haja vista os gritos tribais e o ritmo ritualístico ditado pelo tambor – agora da própria bateria. Essa nova formatação sonora, entretanto, se altera rapidamente de novo numa perfeita transição executada na mesa de estúdio, fazendo a melodia se transformar agora num... elegante jazz! É Wright quem brilha nessa parte, solando no piano por quase 1 minuto sobre a ainda tribal percussão. Isso é interrompido mais uma vez, claro. Sons de órgão e de guitarra improvisam e se entrelaçam por quase 2 min, direcionando o tom jazzístico para uma polifonia. Tudo isso, para retomar a linha melódica inicial, agora com a guitarra, os efeitos de mesa e de pedal e os ensandecidos alaridos finalizando o número. Junto com “Peaches en Regalia”, de Zappa, é um dos temas instrumentais mais criativos do rock anos 60. Além disso, é, ao lado de “Interstellar Overdrive”, a única composição coletiva do disco, que já denota claramente que o Pink Floyd não era (e não seria, fatalmente) apenas Syd Barrett.

Composição de Waters, “Take Up Thy Stethoscope And Walk” é mais um belo exemplar do rock psicodélico que 1967 emoldurava. Isso se deve em parte, principalmente na primeira parte – ou melhor, até onde vai a seção cantada, a pouco mais dos 30 segundos iniciais, tendo em vista que o restante, exceto o rápido desfecho, é tomado de delírios instrumentais da banda inteira – a Barrett, que se vale, novamente dos cacos e sons guturais em conjunção com os efeitos e as texturas sonoras para compor o arranjo.

Centro do disco, a já mencionada “Interstellar Overdrive” é um hino lisérgico, que se assemelha em formato e proposta a outro clássico do rock composto naquele mesmo ano: “Heroin”, do Velvet Underground. Quase uma pequena sinfonia, começa como um hard rock cuja semelhança à sonoridade de Black Sabbath e Led Zeppelin não é mera coincidência. A 2 min e 20, a guitarra parece trancar como se tivesse arranhado o sulco naquele ponto (novamente, sente-se o estranhamento com o tempo). Essa ideia – lapidada pela maestrina do pós-jazz Carla Bley em “Musique Mecanique III”, de 1979 – reproduz no instrumento outra das peculiaridades da música de Barrett: os fonemas cacofônicos, ditos com certo engasgo. É como se fosse o sintoma da formação de uma linguagem atípica e excêntrica do Asperger, aliado ao dos padrões repetidos da doença, traduzido para música, para arte.

Seguem-se cerca de 7 minutos de improviso de toda a banda, que forma uma sonoridade espacial, quando não de uma viagem alucinógena ou uma trilha de filme de ficção científica. Até que, quase no fim do tema, um ruidoso e longo rolo de Mason traz de volta o riff inicial. Mas... algo estranho está embaralhando os ouvidos e os sentidos... É Norman Smith mais uma vez valendo-se do aparato do Abbey Road e de sua técnica como produtor operando uma radical alteração do balance, o qual joga rapidamente todo o som de um lado para o outro nas caixas de som: enquanto uma fica em silêncio, a outra recebe toda a massa sonora. Isso gera um efeito de desequilíbrio, espiral, revolto, que age diretamente sobre os sentidos humanos. Parece que se está escutando a arte da capa do disco. Impossível ficar impassível, pois o efeito atingido aqui pelo Pink Floyd chega a ser físico. Por todas essas particularidades, “Interstellar...” pode-se dizer a precursora do rock progressivo, que faria tantas bandas surgirem ou aderirem (como o próprio Pink Floyd em certa medida) nos anos 70.

Aí, como se nada tivesse acontecido, colada à intensa “Interstellar...”, entra a faixa seguinte, “The Gnome”: uma singela ciranda infantil sobre seres elementais. Só que não! Igualmente brilhante e consideravelmente sinistra, “The Gnome” (“Quero te contar uma história/ Sobre um homenzinho/ Se eu puder/ Um gnomo chamado Grimble Crumble/ E pequenos gnomos que ficam em suas casas/ Comendo, dormindo, bebendo vinho...”) realça o belo timbre de voz de Barrett e sua pronúncia elegante – o que confere ainda mais obscuridade ao tema. Os cacos fonéticos e a preferência por vocábulos “engasgados” (“GRimble”, “CRumble”, “tunIC”, “ADventure”) aparecem em abundância, intensificados pela dicção do cantor.

Rivalizando com outras duas canções daquele ano, “Within You Without You”, dos Beatles, e “The End”, dos Doors, “Chapter 24” ergue uma mística capela sonora. Wright é exímio ao imitar nos teclados o som de um fole nórdico. A percussão, inteligente, é apenas nos pratos e sinos, emprestando muita naturalidade. Apenas o baixo é mais “moderno” na sonoridade de “Chpater 24”, haja vista que o canto de Barrett soa quase litúrgico. Talvez a mais linear faixa do disco – se é que dá pra classificar qualquer uma das peças assim, tão simploriamente –, abre caminho para a totalmente medieval “Scarecrow” com suas flautas celtas e percussão barroca. Genialmente, Barrett dissolve qualquer noção de tempo – o mesmo “tempo” que ele, mentalmente perturbado, não consegue apreender. A bela letra é talvez a mais autobiográfica e – haja vista a metáfora essencial, a comparação de si com um “espantalho” – tristemente reveladora. Merece ser reproduzida por completo:

“O espantalho preto e verde
Como todo mundo sabe
Ficava com um pássaro no seu chapéu
E palha por todo lado
Ele não se importava
Ele ficava num campo onde o milho cresce
Sua cabeça não pensava, seus braços não se moviam
Exceto quando o vento soprava
E ratos corriam pelo chão
Ele ficava num campo onde o milho cresce
O espantalho preto e verde é mais triste do que eu
Mas agora ele está resignado com seu destino
Pois a vida não é má
Ele não se importa
Ele fica num campo onde o milho cresce.”

O que resta a um disco impecável como este? “Scarecrow”, por seu final quase épico, dá indícios de fim. Mas clássico que é clássico tem mais uma joia reservada. É o caso da originalíssima e sarcasticamente circense “Bike”, forjada sobre um único compasso. A voz de Barrett, tão cristalina quanto alucinada, joga versos em demasia sobre os intervalos – mas eles fazem caber no tempo musical, hábeis em harmonia como são. A festa no picadeiro lúgubre parece terminar a 1 min 45', mas sons de bugigangas (entre estas, relógios, como os que aparecerão 6 anos mais tarde em “Time”, do “The Dark Side of the Moon”), comandados pelos teclados fasmáticos de Wright, entram para preencher o restante da faixa a la John Cage. Esta, no entanto, termina da talvez mais apavorante forma que qualquer disco da música pop – e olha que bate muita dark music. O volume vai baixando aos poucos, anunciando o final, quando surge um som que parece ser de uma boneca enguiçada. Misto de gargalhada macabra com urro de dor e de prazer carnal, vai subindo até um clímax, que chega a chocar os ouvidos. Porém, logo em seguida, vai caindo até terminar o disco finalmente. Dá para imaginar uma cena de filme de terror em que o palhaço assassino aproxima-se, chegando a centímetros do escondido e amedrontado perseguido, mas que, não o encontrando, afasta-se e vai embora. No quarto de brinquedos, quebrados e tristes, está terminada a obra sinistra de Barrett e Cia.

A aparente infinita inventividade de Barrett, por infelicidade, teve sim um fim. Acometido pela deterioração mental, agravada pelo exagerado uso de drogas, Barrett afastou-se da banda antes de lançar um segundo trabalho com eles, restando apenas mais uma (e igualmente brilhante) composição sua em “A Saucerful of Secrets”, de 1968: “Corporal Clegg”. Vieram ainda duas obras-primas solo em 1970: “The Madcap Laughts” e “Barrett”, nos quais já se nota o progressivo agravamento do quadro físico e psíquico. Logo em seguida, entra numa reclusão autoimposta de 30 anos até a morte, em 2006. Porém, os parcos 6 anos em que produziu seguem influenciando profundamente a cultura pop meio século depois de seu surgimento em “The Piper...”. Para o próprio Pink Floyd foi assim: com talento, souberam apreender e reelaborar o legado de seu ex-líder, avançando em suas ideias mas mantendo-lhe uma ligação permanente. Mesmo com as capacidades criativas de e liderança tanto de Waters quanto de Gilmour, o Pink Floyd foi e sempre será como um tal personagem de conto de fadas chamado Syd Barrett.

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“The Piper…” teve, em 1967, uma edição norte-americana que, além de alterar a ordem das faixas e suprimir duas delas (“Bike” e “Astronomy Dominé”), conta com uma nova, “See Emily Play”.  Em 1974, os dois primeiros álbuns do Pink Floyd são reunidos num único volume, “A Nice Pair”. Ainda, “The Piper...” consta na íntegra com outros discos nas caixas “First XI” (1979), “Shine On” (1992), “1997 Vinyl Collection” e “Oh By the Way” (2010).

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FAIXAS:
1- "Astronomy Domine" – 4:12
2 - "Lucifer Sam" – 3:07
3 - "Matilda Mother" – 3:03
4 - "Flaming" – 2:46
5 - "Pow R. Toc H." (Nick Mason, Richard Wright, Roger Waters, Syd Barrett) – 4:26
6 - "Take Up Thy Stethoscope and Walk" (Waters) – 3:05
7 - "Interstellar Overdrive" (Barrett, Mason, Waters, Wright) – 9:41
8 - "The Gnome" – 2:13
9 - "Chapter 24" – 3:42
10 - "The Scarecrow" – 2:11
11 - "Bike" – 3:21
todas as composições de autoria de Syd Barrett, exceto indicadas

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OUÇA O DISCO:


por Daniel Rodrigues

terça-feira, 29 de dezembro de 2015

Lobão - "O Rock Errou" (1986)





"Dizem que
o Rock andou errando."
primeiro verso da letra de 
O Rock Errou"



Dizem que Lobão andou errando. Não sei... Particularmente, independente de posições e preferências políticas, a postura reacionária, raivosa e irracional deste artista nos últimos tempos desagradou sobremaneira a mim e tenho certeza que a muitos outros fãs também.
Dizem também que muito dessas manifestações e novas polêmicas talvez tenham-se devido ao fato de que o cantor já andava meio esquecido, meio desimportante no cenário musical brasileiro e tinha que, bem à sua maneira, voltar à cena. Não sei... Dizem.
Mas o que sei é que, se hoje Lobão passa por uma espécie de ocaso artístico, houve um momento em que o cara foi brilhante e produziu, no apogeu da geração BRock alguns dos discos mais importantes daquele miolo da década de 80. Se seu rock andou errando um pouco ainda em seus trabalhos iniciais, mesmo já produzindo coisas boas como "Me Chama", "Corações Psicodélicos" e "Decadence Avec Elegance", com "O Rock Errou" de 1986, o Lobo acertava definitivamente o rumo com uma pegada mais rock, mais agressiva mas ao mesmo tempo conseguindo mesclar com brilhantismo outros elementos e tendências musicais.
"O Rock Errou" é provocativo desde a capa cujo tema religioso em si já seria suficiente para arrepiar os cabelos da sociedade brasileira pós-ditadura, mas que, como se não bastasse, traz uma mulher nua, apenas com um véu cobrindo a cabeça e com as mãos sobrepostas cobrindo "as partes baixas", ao lado cantor caracterizado como padre carregando no rosto uma leve e irônica expressão de reprovação. Pra piorar, a mulher na capa, na época, tinha na época apenas 18 anos, e pra aumentar o escândalo, a 'pecadora', Daniele Daumerie, era nada mais nada menos que companheira o cantor. Note que eu disse "companheira", não esposa. Um  monte de tapas na cara da sociedade em apenas uma capa. A provocação estava só começando.
Sim, pois "O Rock Errou", faixa que praticamente abre o disco, depois de uma breve introdução instrumental de estrondosas guitarras, é uma metralhadora giratória atirando e acertando pra tudo que é lado, passando por polícia, mídia, classe artística, ditadura, políticos e respingando até no Vaticano, na Dama de Ferro e na Casa Branca. Com seu inspirado e sarcástico trocadilho do título que alimenta um refrão intenso e entusiástico, "O Rock Errou" questionava quais eram realmente os problemas do Brasil, que em meio a uma bagunça generalizada insistia em ficar se apegando a coisas pequenas como um artista que fumava maconha, uma letra de música que falava palavrão, etc... Onde foi que o rock errou?
Mais uma vez com muita ironia e inteligência, se o problema era rock, Lobão tratava de colocar um samba-rock logo na sequência dando a primeira mostra de uma tendência que se apresentaria cada vez mais frequente em sua obra a partir dali em músicas como"Cuidado, "Vida Bandida" e "Essa Noite Não", por exemplo. "A Voz da Razão", cantada em dueto com Elza Soares era uma espécie de "bate-boca" musical com pequenas trocas de acusações, culpas e responsabilidades ("Você trocou o seu amor por uma vaidade") onde a cantora dá um show e abrilhanta a canção de maneira crucial com sua voz rasgada e interpretação singular.
"Baby Lonest" uma espécie de hard-rock, parece ter seu riff chupado de "Cocaine" de Eric Clapton; "Spray Jet", de refrão em inglês tem um ótimo trabalho vocal de Lobão e destaque para a metaleira que dá um toque todo especial numa canção embalada, cheia de influências de soul music; e "Moonlight Paranóia", para mim, supervalorizada, é apenas uma boa versão em português para uma música do Aerosmith.
O pop-rock meio blues de guitarra estridente e chorosa, e de interpretação marcante de Lobão, "Revanche", uma reflexão sombria sobre a vida, a solidão, as drogas, o cárcere do qual havia acabado de sair por porte de drogas, constituiu-se desde aquele momento, lá em 86, e segue ainda até hoje como uma das grandes obras do cantor e uma de suas mais emblemáticas canções. O grito de dor e rebeldia do lobo. O uivo definitivo.
Na ótima "Canos Silenciosos" um rockão estridente de guitarras gritantes, Lobão apresenta todas as criaturas da noite, seus demônios, venenos e vilões, ao mesmo tempo exaltando a liberdade da noite ("Se a noite tá no sangue de hoje/deixa a noite rolar") e o medo nela mesmo com repressões policiais autoritárias ("Homens, fardas, cassetetes, camburões/ abusando da lei com sua poderosas credenciais").
"Glória (Junkie- Bacana)", parceria com Cazuza talvez seja a música mais subestimada do álbum e, no entanto, uma das melhores, não apenas musicalmente, com uma estrutura interessantíssima, mas especialmente pela letra, onde se nota claramente a mão de Cazuza, que a constrói como uma carta de desculpas dirigida ao vizinho, transbordando de sinceridade, pelas barulho, bebedeiras, cenas e excessos que o autor vem cometendo, tudo por causa de um amor perdido.
O disco traz duas baladas, a felina "Noite e Dia", parceria com o ex-Gang 90, o falecido Julio Barroso, exalando pura sensualidade ("A pele branca, gata garota/ No peito a ronronar/ Seu fingir dormindo, lindo/ Você está me convidando/ Menina quer brincar de amar"); e a gostosa e sexy "Click", um instantâneo de um encontro na noite carioca sob a lente de uma câmera, que fecha o álbum na medida certa.
Se o rock errou e por isso as rádios, TV's e a mídia em geral estão entupidas de sertanejos universitários e artistas inqualificáveis, se Lobão errou com escolhas equivocadas na carreira, posições extremadas, destempero, falta de tato pessoal e artístico, fica para o julgamento de cada um, mas não ha como negar que com "O Rock Errou", ele mirou no alvo, atirou para todos os lados e acertou em cheio, concebendo um dos grandes álbuns da discografia nacional. Amém, São Lobão.
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FAIXAS:
1. "Abertura (Instrumental)" (João Baptista/Jurim Moreira/Lobão/Torcuato Mariano) 1:23
2. "O Rock Errou" (Bernardo Vilhena/Lobão) 3:42
3. "A Voz da Razão" (Bernardo Vilhena/Lobão) 2:39
4. "Baby Lonest" (Cazuza/Ledusha/Lobão) 3:46
5. "Spray Jet" (Bernardo Vilhena/Lobão) 3:11
6. "Moonlight Paranoia (Seasons of Wither)" (Joe Perry/Steven Tyler/Versão: Bernardo Vilhena/Júlio Barroso/Lobão) 4:35
7. "Revanche" (Bernardo Vilhena/Lobão) 4:57
8. "Noite e Dia" (Júlio Barroso/Lobão) 3:14
9. "Canos Silenciosos" (Lobão) 3:22
10. "Glória (Junkie-Bacana)" (Cazuza/Lobão) 2:48
11. "Click" (Bernardo Vilhena/Lobão) 3:20

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Ouça:
Lobão O Rock Errou



Cly Reis

quarta-feira, 30 de setembro de 2015

Som Imaginário - “Matança do Porco” (1973)



A capa original, em cima,
e a da reedição de 2003
“Foi uma época de muita coisa.
 Eu voltei da Europa na turnê que eu fiz com o Paulo Moura,
logo depois do show do Bituca com o ‘Clube da Esquina’.
É um disco que eu compus todo na Europa,
chamado ‘Matança do Porco’.
 Música que, inclusive, tem no disco ao vivo do Milton,
o ‘Milagre dos Peixes Ao Vivo’.
 Você vê que as ideias estavam ali.
Foi a nossa época de laboratório mesmo.
Serviu para o resto das nossas vidas.”
Wagner Tiso


Milton Nascimento foi sempre o cabeça e congregador do chamado Clube da Esquina, esse time de artistas de Minas Gerais que mudou a cara da MPB desde a conturbada segunda metade dos anos 60 de Ditadura Militar no Brasil. Em torno de Bituca – e muitas vezes até motivados por ele, como no caso de Fernando Brant e Lô Borges – se configurou a movimentação musical que trouxe novas linguagem e referências à música brasileira e até mundial se se considerar seu pioneirismo naquilo que passou a se chamar tempo depois de world musicWayne Shorter, Sarah Vaughan, Quincy JonesEric Clapton, Paul Simon, Carminho entendem isso muito bem. Porém, dos diversos talentos surgidos à época e/ou junto com Bituca, um deles é quase tão fundamental: o maestro Wagner Tiso. Surpreendentemente autodidata (o saxofonista e clarinetista Paulo Moura, exímio arranjador, apenas lhe deu toques sobre teoria), é naturalmente dono de um estilo de tocar piano e de orquestrar que bebe no colorido de Claude Debussy e na força expressiva de Richard Wagner, além de sua veia sacra, a qual adquiriu ainda pequeno nas igrejas do interior de Minas que frequentava. Se Milton é o símbolo do Clube da Esquina, principal compositor e propulsor da cena, Tiso é o centro harmônico, o homem que aperfeiçoou a ideia e lhe deu lastro.

Tiso, sempre muito ligado a Milton Nascimento (ambos são naturais de Três Pontas), já era o principal arranjador e regente dos trabalhos deste desde o LP “Milton”, de 1970, mesmo ano em que, juntamente com Luis Alves (baixo), Frederyko (guitarra) e Robertinho Silva (bateria) forma uma banda de apoio para o parceiro. Assim surgiu a Som Imaginário, para a qual ainda foram convocados para completar o grupo nada mais, nada menos que três craques: Tavito (violão), Zé Rodrix (voz, órgão, flautas) e Naná Vasconcelos (percussão). Um time de primeira. Além das essenciais participações nos trabalhos de Milton e na de gente do calibre de MPB-4, Marcos Valle, Gal Costa, Odair José, Sueli Costa, dentre outros, a banda mantinha também carreira própria. Depois de dois discos em que Rodrix comandava os microfones (“Som Imaginário”, de 1970, e “Nova Estrela”, de 1971) a Som Imaginário, sem este e Naná, sintetiza sua sonoridade psicodélica e até lisérgica e compõem um álbum totalmente instrumental: “Matança do Porco”, de 1973. Nele, a MPB se junta com felicidade ao rock progressivo, ao jazz e à música clássica em seis canções assinadas por Tiso em que todos os músicos se esmeram nos instrumentos. Solos magníficos, arranjos deslumbrantes e orquestrações idem, cujas regências tiveram ainda a fina colaboração de Moura, maestro Gaya e Arthur Verocai. Este último trabalho de estúdio do grupo é uma obra-prima da música instrumental no Brasil.

“Armina”, com sua melodia valseada e melancólica, não apenas abre o disco com o piano altamente erudito de Tiso como, igualmente, recorta-o todo, aparecendo em vinhetas/excertos entre os outros cinco temas durante todo o decorrer, desfechando-o também, inclusive. A canção dá o clima do álbum, cujo peso do rock, o swing do samba-jazz e a energia do fusion são ciclicamente reconduzidos à atmosfera do tema-tronco, o qual traça uma linha entre o litúrgico e o a herança modernista do folclórico bachiano de Villa-Lobos. Entretanto, na alquimia natural da Som Imaginário, de cara se ouve um potente jazz-rock de baixo-guitarra-bateria-órgão, que faz um pequeno preâmbulo para, aí sim, dar lugar ao piano de Tiso. Depois de um lindo solo, que traz delicadeza ao número, a banda retorna vigorosa – a melodia lembra “I Want You (She's So Heavy)”, dos Beatles, na parte do “She so heavyyyy...”, para ver o nível de grandioculência – para um exímio e longo solo da guitarra rasgante de Frederyko, ao estilo de John McLaughlin. Por volta de 4 minutos e meio, param todos os instrumentos elétricos para novamente ouvir-se o dedilhado acústico do piano, fazendo ressurgir a valsa tristonha.

Agora sob o som de um piano elétrico, “A 3”, extremamente moderna, sintoniza com o que Hermeto Pascoal, Airto Moreira e João Donato vinham fazendo nos Estados Unidos àquela época e embasbacando os gringos: um jazz brasileiro com ritmo, harmonias complexas e uma habilidade musical peculiar dos trópicos. Show de perícia de toda a banda, que, levados pelos teclados, ganham o acompanhamento da percussão do mestre Chico Batera e da flauta de outro professor, Danilo Caymmi. Uma curta e orquestrada “Armínia”, arregimentada por Verocai – e na qual se notam os toques de sua sofisticação harmônica, principalmente na predileção pelos metais ouvidos ao final –, antecipa “A nº 2”, que inicia como um samba cadenciado conduzido por uma linha de órgão. Vão se adicionando as melodiosas vozes dos Golden Boys, solos da guitarra e cordas, num crescendo de emoção. Até que, pouco antes dos 5 minutos, o baixo de Luis manda um groove e a música dá uma virada para um jazz-funk estupendo. Tiso troca o órgão para o Hammond; Luis e Fredera, mantendo a base em repetições ágeis; Robertinho; segurando o ritmo na variação caixa/prato de ataque. Arrasador. Digno de um “Headhunters”, de Hancock, ou “On the Corner”, de Miles Davis.

A faixa-título, que eu conheci no disco de Milton, “Milagre dos Peixes Ao Vivo” (1974), surpreendendo-me por demais já daquela feita, não perde em nada no estúdio. Aliás, até ganha, tendo em vista que os registros ao vivo da época eram deficitários tecnologicamente (o caso). Além do mais, o próprio Bituca empresta aqui a sua voz. Então: serviço completo, nada faltando. Sugestivo, o título remete ao arcaico ritual de abate de suínos típico do folclore português e que, obviamente, devido a seus requintes de crueldade, exprime algo de visceral e funesto vivido à época no Brasil de Regime Militar. Como se tratava de uma canção “sem letra”, os milicos a consideraram inofensiva e deixaram passar pela censura. Isso faz com que “Matança do Porco”, música e disco, alinhem-se, pela via de um “silêncio resistente”, a “Milagre dos Peixes” de estúdio, daquele mesmo ano de 1973, que os militares censuraram praticamente todas as letras, transformando-o, forçadamente, num álbum semi-instrumental. Este aqui é instrumental de propósito, pois não há palavras para exprimir o sentimento nefasto que se presenciava. Os sons, dados à imaginação, falam por si.

Nos mais de 11 minutos da canção “Matança do Porco”, ponto alto do disco, deságuam boa parte da musicalidade construída pela turma do Clube da Esquina. Seguindo a atmosfera erudita que domina o álbum, trata-se de um pequeno réquiem transgressor, entre o rock e o jazz. Traz o vigor de um rock progressivo, que lembra o Pink Floyd psicodélico pré-"Wish You Were Here", ainda mais pela novamente excelente performance de Frederyko debulhando a guitarra – e não deixando nada a dever a um David Gilmour. O primeiro “movimento” inicia lento com acordes 2/2 de Tiso ao piano, que exercita uma breve introdução (Kyrie e Gloria) enquanto vão entrando aos poucos os outros instrumentos até chegar na guitarra, que, distorcida, se adona do campo. São quase 5 minutos de um solo dividido em dois momentos (algo que se poderia intitular como “A Preparação”, Credo, e “A Desforra”, Sanctus) que vai num crescendo e toma uma carga emotiva tamanha com o poder de carregar consigo os outros integrantes, ao final igualmente em êxtase. Robertinho dá um show de rolos e condução; Tiso, centro da peça, lança impressionantes ataques e improvisos jazzísticos. O ritual de morte chega a seu ápice. O sangue escorre. Morte.

Valendo-se fartamente de seu conhecimento erudito, Tiso corta mais uma vez a canção para, numa fusão para um segundo ato, arregimentar a partir dali uma volumosa orquestra Odeon (conduzida por Gaya), a qual toca uma melodia triste (um Benedictus), como uma prece à ignorância humana. Entram o coro dos Golden Boys formando um cantochão gregoriano. Junto, para realçar ainda mais a beleza melancólica do tema, a guitarra volta a marcar a base e Milton soma ao coro o seu inconfundível timbre, executando vocalises arrepiantes. O final, no órgão, desfecha-a num evidente tom fúnebre de Missa dos Defuntos, até voltar ao toque quase de cantiga de roda dos primeiros acordes. Agnus Dei. Um desbunde. O porco e o cidadão brasileiro, perseguidos e sem voz, foram abatidos. “Quem é animal e quem é gente?”, fica a pergunta.

Depois de tanta magnitude, uma gostosa “Armina” com ares de bossa-nova ameniza o astral visitando Tom Jobim e Billy Blanco. “Bolero”, na sequência, é uma balada com riff bem rural escrita em parceria com Luis, Robertinho e Milton, este último de quem evidentemente partiu a ideia do violão-base tocado por Tavito, outro dos coautores. Nova mostra de habilidade dos músicos em que Tiso, principalmente, se destaca manipulando os dois pianos, assim como a flauta de Danilo Caymmi. O filho do gênio baiano é quem dá os primeiros acordes de “Mar Azul”, outro samba-jazz moderníssimo feito para os dedos de Tiso maravilharem num Hammond, tanto quanto Tavito ao violão 12 cordas. Da segunda metade para o fim, é geral o show de improvisos. Jazz brasileiro puro.

A intensidade orquestral finaliza este histórico álbum com a quarta e última seção de “Armina”, novamente com o toque de Verocai, que carrega nas cordas e metais no início para, aos poucos, verter a sonoridade para as madeiras, numa transição extremamente apurada e apenas perceptível quando a flauta entoa a última nota, haja vista que aumenta um tom para terminar não num registro suave, mas grave como deveria ser. Na capa da reedição em CD, de 2003, vê-se um plano geral de uma mesa dá bem a dimensão do período de tristeza e decadência que o País um dia se colocou: copos, garrafas de cerveja e de uísque, todos vazios, acompanham um cinzeiro lotado de cinzas e baganas e um papel surrado sobre um dos copos – que bem pode ser uma carta a um ente querido impossível de ser postada por causa do cerco da ditadura ou uma confissão de suicídio.

Naquele 1973, o enganoso “milagre brasileiro” do governo Médici escondia ainda mais as torturas, perseguições e exílios promovidos desde o AI-5, de cinco anos antes. As guerrilhas eram enfraquecidas e a população, quando não ignorante, se calava à força. Sem precisar dizer quase nenhuma palavra, “Matança do Porco” e “Milagre dos Peixes” formam um dos mais potentes libelos contra a opressão da ditadura militar no Brasil, duas sinfonias em nome da liberdade que todo brasileiro decente de então merecia. É o poder da música, é a magia dos sons. Sons capazes de despertar o imaginário de quem consegue entender o que é dito pelo coração.
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FAIXAS:
01. Armina
02. A3
03. Armina (Vinheta)
04. A n° 2
05. A Matança do Porco
06. Armina (Vinheta 2)
07. Bolero (Tiso/Milton Nascimento/ Robertinho Silva/Tavito/Luis Alves)
08. Mar Azul (Tiso/Alves)
09. Armina (Vinheta 3)
todas as músicas compostas por Wagner Tiso, exceto indicadas.

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OUÇA O DISCO:







sábado, 12 de setembro de 2015

Howlin' Wolf - "Howlin' Wolf" ou "The Rockin' Chair Blues" (1962)



"Seus olhos se iluminavam e você podia
ver as veias se incharem no seu pescoço
e, irmão, sua alma inteira
se concentrava naquela canção.
Ele cantava com a danada da alma."
Sam Phillips,
da gravadora Sun Records,
descrevendo Howlin' Wolf



Um uivo de lobo.
Uma voz potente.
Um homem transfigurado em animal no estúdio.
Assim era Chester Arthur Burnett, mais conhecido como Howlin' Wolf, um dos maiores nomes do blues de todos os tempos. Artista de admiráveis qualidades vocais, exímio manejo da guitarra e performances arrasadoras em shows, Wolf que começara na Sun, gravadora que revelou Elvis Presley, teve, no entanto, seu período de maior sucesso pelo famoso selo Chess, de Chicago, curiosamente levado pelas mãos do, sabidamente um arquirrival, Muddy Waters.
Rivalidades à parte, cada um com seus talentos, muitos diga-se de passagem, havia espaço para os dois na Chess. A maioria dos músicos do staff da gravadora gravavam as canções do baixista da casa e compositor Willie Dixon, mas poucos como Wolf tiraram tanto proveito desta parceria. Saíram das maos de Dixon alguns dos maiores sucessos de Howlin' Wolf e diga-se de passagem, em contrapartida, são dele algumas das melhores interpretações das músicas de Dixon.
Wolf já havia gravado um disco desde sua chegada à Chess mas que ainda trazia heranças da Sun Records, sua antiga gravadora, e contava apenas com as composições do próprio cantor, mas foi com o disco conhecido popularmente como "The Rockin' Chair Blues" que Wolf alçou voo definitivamente no universo do blues muito em função das composições de Dixon e de seu dedo na produção.
O disco abre com a excitante "Shake For Me", uma incitação à libido e já traz na sequência o clássico "The Red Rooster" cantado de maneira arrastada por Wolf com o acompanhamento de por uma slide guitar matadora do próprio cantor. A música ganharia inúmeras versões posteriores, nas quais ganharia o diminutivo pela qual é mais conhecida ("Little"), dentre elas a suingada de Sam Cooke, a suja do Jesus and Mary Chain e a maliciosa dos Rolling Stones.
"Who's Been Talkin'", um blues lento, quebrado com um toque latino é uma das duas, apenas, de autoria do próprio cantor no disco, e ""Wang Dang Doodle", que a segue é pegada, cheia de embalo, com uma guitarra vibrante e um refrão contagiante.
Outra que já foi regravada incontáveis vezes, por Etta James, Who, pelo Cream de Eric Clapton, mas que tem na versão deste blueseiro do Mississipi, a primeira, diga-se de passagem, uma de suas melhores interpretações, é a magnetizante "Spoonful",  mais uma das obras-primas de Dixon imortalizada pelo vocal singular do Lobo.
Na chorosa "Going Down Slow" onde o vocalista praticamente apenas declama a letra, o que destaca-se mesmo, desde a introdução martelada, é o piano; já em "Back Door Man", Howlin' Wolf retoma o protagonismo e encarna o personagem soltando ganidos arrepiantes numa canção que é uma espécie de assombração sensual e sedutora e que cuja versão, talvez, mais conhecida seja a da banda The Doors gravada logo em seu álbum de estreia.
Bem ritmada, embalada, impetuosa, "Howlin' for My Baby" (que também é conhecida com a variação de "... My Darling"), talvez a melhor tradução da fusão de estilos do blues do Delta para o de Chicago, encaminha com grandiosidade o final do disco para que "Tell Me", a outra composição de autoria de Wolf no disco, um gostosíssimo blues com uma levada apaixonante de harmônica  se encarregue de fechar de forma magistral.
Um daqueles caras para o qual a alcunha lenda do blues cabe perfeitamente, ainda mais reforçada pelo nome sugestivo que carregava, pelas performances insanas no palco, pelo feitiço que impunha às mulheres e pelos uivos quase animalescos que emitia em suas interpretações. Seria aquela figura na verdade uma criatura entre o home e o lobo? Teria ele, como o outro legendário Robert Johnson, feito algum pacto sinistro cujo preço seria que dividisse sua forma entre o humano e o bestial, metamorfoseando-se depois de determinada hora, em determinados dias, em dada fase lunar? Ficaria ele assim, mesmo em sua forma humana com traços do animal o que explicaria seus grunhidos, uivos e rosnados característicos e sua forma gigantesca e quase gutural? Bobagem, bobagem. Mas, ei... Alguém aí ouviu um uivo?
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FAIXAS:
  1. "Shake for Me" – 2:12
  2. "The Red Rooster" – 2:22
  3. "You'll Be Mine" – 2:25
  4. "Who's Been Talkin'" (Howlin' Wolf) – 2:18
  5. "Wang Dang Doodle" – 2:18
  6. "Little Baby" – 2:45
  7. "Spoonful" – 2:42
  8. "Going Down Slow" (St. Louis Jimmy Oden) – 3:18
  9. "Down in the Bottom" – 2:05
  10. "Back Door Man" – 2:45
  11. "Howlin' for My Baby" – 2:28
  12. "Tell Me" (Howlin' Wolf) – 2:52
* todas as faixas compostas por Wilie Dixon, exceto as indicadas
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Ouça: 

segunda-feira, 29 de junho de 2015

Cocteau Twins – “Blue Bell Knoll” (1986)



Duas variações da capa do álbum
"Quando você morrer, e, em seguida,
abrir os olhos, se não estiver tocando ao fundo essa música,
provavelmente você está indo para o lugar errado."
Robert Christgau,
crítico musical
sobre “Blue Bell Knoll”





Era uma vez uma falange de anjos que, de saco cheio da exigência de serem angelicais o tempo todo, se revoltaram e desceram dos Céus. Desafiadores, eles vieram cair na Terra de propósito, justo neste planetinha atrasado dentre os tantos bilhões que podiam escolher na galáxia. Claro que foi, justamente, para desafiar as divindades. Se aqui achariam a inveja, a tristeza, a ganância, a incompreensão, a violência, era exatamente onde suas almas jovens e rebeldes queriam ficar. Como filhos desgarrados que precisavam se autoafirmar, puseram toda a revolta para fora. E como se não bastasse, inventaram de formar uma banda de rock, para desespero dos santos. Queriam seguir Lúcifer e não o chato do Gabriel. Assombro geral no firmamento.

No começo, foi o punk. Jogaram fora as auréolas e trajaram roupas de segunda mão rasgadas e sujas. Muito couro duro e escuro; nada de sedas leves e brancas como antes. Na música que criavam, todo esse inconformismo era transmitido na forma de depressão. Compunham canções soturnas, carregadas, chorosas, em que a guitarra mais parecia gemer pedindo clemência. O baixo, grave em sonoridade e intenção, e a bateria, marcada, repetindo uma interminável marcha fúnebre. Eram chamados não apenas de punks, mas de gothic-punks, ou seja, os punks de espírito dark. E na voz da anja, dor. Muita beleza e afinação divina. Mas dolorida. Gravaram o primeiro disco assim, em 1982, chamado “Garlands”, onde descarregaram as mágoas e aflições que vinham guardando desde casa, quando romperam com o Pai em busca do reconhecimento de si mesmos.

Acontece que uma vez anjo, sempre anjo. Os desgarrados, à medida que iam produzindo, iam também, pouco a pouco, amenizando a raiva. E, não coincidentemente, voltando a serem cada vez mais angelicais. O bom “Head Over Heells”, segundo deles, de um ano depois, é o meio termo entre esses dois polos de estado evolutivo. Avançam mais um pouco no sentido da suavização e chegam já praticamente renovados no referencial "Treasure", de 1984, que, embora lírico, ainda guarda um pouco da densidade dark dos anos iniciais. Já com as asas de volta, depois do astral “Victorialand” (1986), atingem o ápice da manifestação de suas almas celestiais com “Blue Bell Knoll”. Os querubins em questão são Elizabeth Fraser (voz), Robin Guthrie (guitarras, teclados) e Simon Raymonde (baixo): os escoceses do Cocteau Twins.

Maduros tecnicamente e afeitos aos estúdios da 4AD, eles mesmos produzem um álbum altamente delicado e sofisticado, bastante marcado pelas texturas espaciais dos teclados e pelas programações de ritmo. É assim que começa a faixa-título, numa das aberturas de disco mais belas da discografia do pop britânico dos anos 80: um ataque de teclados que lembra o som de cravo junto com a guitarra e bateria só no bumbo e chipô. Camadas sonoras preenchem o espaço. Não demora, subindo um tom, entra a deslumbrante voz de Liz Fraser articulando de improviso a letra em cima de uma melodia vocal. Já começa nesse nível. Em seguida, a bonita “Athol-Brose” antecipa uma das melhores do disco: “Carolyn’s Fingers”, encantadora, que, se for considerar o tema, essa tal Carolyn deve realmente ter dedos mágicos. Brit-pop clássico, com a tradicional batida funkeada em tempo 2/3, mas com o também tradicional riff twiniano. E o mais relevante: Liz Fraser dando um show de vocal, adicionando uma carga erudita ao pop-rock como poucas vezes se tinha visto. Deste jeito, jamais.

Guthrie, um guitarrista de qualidade, como boa parte de sua geração (Will SergeantBarney SumnerDaniel Ashirmãos Reid) não chegava aos pés em técnica de um Jimmy PageEric Clapton ou um Jeff Beck (no pós-punk, não raro o baixista era mais hábil que o guitarrista na banda). Porém, sua criatividade para compor e aproveitar os recursos sensoriais e de textura que as cordas lhe proporcionam é gigantesco. Foi a mente inventiva e observadora de Guthrie que cunhou uma rica assinatura melódica para a banda. Ele sintetizou uma espécie de “base de riffs” para o Cocteau Twins, a qual transmite, em notas geralmente de som cintilante, exatamente esse espírito suave e etéreo que lhes é característico. Trata-se de uma combinação de notas em tempo 7/7 que se assemelha ao andamento de uma valsa mas que, avaliando bem, é bastante hipnótica visto sua estrutura cíclica em arpejo. Com essa base, Guthrie é capaz de criar infinitos riffs, infinitas combinações valendo-se da variação de tom, das texturas, dos arranjos, dos timbres e por aí vai. Como um pintor que se vale das mesmas tintas para pintar quadros diferentes. É tão inteligente e marcante que pode até nem conter todas as 7 notas (6, 5 ou até 4 apenas), mas percebe-se o mesmo esqueleto ao se ouvir. O que apareceu pela primeira vez em 1983, na linda “Sugar Hiccup” (e que já vinha sendo já largamente usada por eles, basta ouvir “Pandora”, do “Treasure”, ou várias de “Victorialand”), é claramente repetido em “Carolyn’s Fingers”, na melodiosa "Suckling the Mender", cujo arranjo vocal do refrão a faz ganhar cores orientais, e em "Spooning Good Singing Gum", outra linda, que chega a pôr o ouvinte para voar.

O estilo Ethereal criado pelos Twins, impressionista e sofisticado, é fruto de uma improvável mescla de pós-punk, ambient music, new age, folclore celta e música barroco-renascentista, Isso é evidente em "The Itchy Glowbo Blow" e noutra balada, "A Kissed Out Red Floatboat", com seus sons espaciais e um lindo refrão, onde Liz, em overdub, põe o tom lá em cima. “Ella Megalast Burls Forever” é outra magnífica balada que evoca, aliás, tanto o sentido moderno do termo (canção sentimental em andamento lento) quanto sua acepção primeira, medieva, de uma forma de poesia lírica em estrofes. Chega a ser litúrgica de tão elevada, pois faz vir à mente suntuosas igrejas em que o som se propaga às alturas. Os ecos, as sobreposições e os contracantos só fazem aumentar essa sensação.

A voz de Liz Fraser, aliás, é um caso à parte. Ela não ficou conhecida no meio pop-rock alternativo como “a voz de Deus” por acaso. Talvez a melhor pupila de Cathy Barberian – mas também bastante inspirada em Meredith Monk, Joni Mitchell e nos intrincados arranjos de voz de Philip Glass – Liz foi, desde o início dos Twins, o maior destaque da banda. Soprano – diferente de Barberian, uma mezzo –, foi aperfeiçoando a técnica e soltando seu canto até chegar ao status que adquiriu. A capacidade de alcance dos agudos e a fluência pelas escalas são típicas de uma voz treinada e, acima de tudo, emocionalmente livre. “Cico Buff”, balada ambient muito terna, e "For Phoebe Still a Baby", cheia dos ornamentos vocais, foram escritas para que ela as conduzisse. Até o conteúdo do que ela canta tem sentido superior quando cria melismas e inventa palavras ininteligíveis e sem sentido semântico nenhum, apenas experenciando a musicalidade da pronúncia e dos encadeamentos. Não é possível – nem necessário – entender o significado, pois a música é sentida na essência, e essa é a própria concretização da linguagem universal da arte musical. Provavelmente, seja esse o idioma dos anjos.

Depois de “Blue...”, a sina desses anjos na Terra permaneceu no caminho de iluminação e de cores, influenciando diretamente bandas como Lush, Stereolab, My Bloody Valentine, The Cranberries, The Moon Seven Times, entre outras. Nos anos seguintes, vieram os também ótimos “Heaven or Las Vegas” (1990, considerado para muitos o melhor do grupo), “Four-Calendar Café” (1993) e “Milk & Kisses” (1998), este, o último antes da dissolução após apenas nove discos de estúdio (contando com o em parceria com o compositor vanguardista Harold Budd, “The Moon & The Melodies”, de 1986).

Nessa trajetória, eles viram que tinham razão quando se autoexpurgaram, pois o mundo precisa, sim, de um pouco de Satanás para sair do conformismo e quebrar barreiras. O Diabo, afinal, é o pai do rock. Mas compreenderam, igualmente, que havia uma inquestionável beleza naquilo que Gabriel representava – e que ele não era o chato como eles pintavam. Foi em “Blue Bell Knoll” que aprenderam isso e a não fugirem de seus próprios destinos, e que aceitar e elaborar suas próprias naturezas era o caminho mais acertado. Isso vale tanto para anjos quanto para pessoas. Quem sabe, então, não foi este, desde o início, o designo divino aos Twins quando vieram em missão: ensinar aos humanos que o importante é seguir o próprio coração?            

vídeo de "Carolyn's Fingers" - Cocteau Twins

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FAIXAS:
1. "Blue Bell Knoll" - 3:24
2. "Athol-Brose" - 2:59
3. "Carolyn's Fingers" - 3:08
4. "For Phoebe Still a Baby" - 3:16
5. "The Itchy Glowbo Blow" - 3:21
6. "Cico Buff" - 3:49
7. "Suckling the Mender" - 3:35
8. "Spooning Good Singing Gum" - 3:52
9. "A Kissed Out Red Floatboat" - 4:10
10. "Ella Megalast Burls Forever" - 3:39

todas as composições de autoria de Fraser, Guthrie e Raymonde.
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Ouça:
Cocteau Twins Blue Bell Knoll