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domingo, 5 de junho de 2011

cotidianas #84 - Um Elogio


-Com licença, moça – abordou-a cutucando seu ombro.
- Sim...
- Com todo o respeito, – e sou testemunha de que fora com o devido anunciado respeito, uma vez que o personagem desta pequena historieta foi por mim concebido e criado e, junto com seu aspecto nada desprezível, com seu modo de vestir até bem apresentável, com seus modos, bons a julgar-se bons pela abordagem, criei também seu caráter e suas intenções, às quais posso afiançar, não foram vis nem torpes quando, manifestou aquela impressão que pretendia fazer natural e inocente – tem gente que elogia os olhos de outra pessoa, tem gente que elogia o nariz – e neste momento a moça já sorria pressentindo um agrado maior que os que previamente enumerava o moço – mas eu não pude deixar de notar no seu... bumbum, no seu traseiro. A senhorita tem uma bunda muito bonita.
Ela mudou de expressão de gosto: desfez o sorriso num aspecto de quase fúria, arregalou os olhos, expirava aceleradamente pelo nariz e sua face enrubescera inteiramente. Não falou nada naqueles segundos que se seguiram. Apenas, agitada, virava o pescoço procurando alguma coisa à volta, até que avistou.
- Policial, policial! – chamou em voz alta o suficiente para que a escutasse a uma certa distância.
- Que isso, moça, não precisa isso. Foi só um elogio – tentava acalmar a garota enquanto o policial que cuidava do trânsito ali na esquina ia-se dirigindo até onde estavam os dois.
- Pois não.
- Esse tarado me assediou sexualmente.
- Não foi nada disso, seu policial, eu só fiz um elogio pra moça, eu... – e foi bruscamente interrompido pela queixante.
- Ele estava olhando pra minha bunda, ele disse que gostava da minha bunda, que a minha bunda era isso e minha bunda era aquilo. – finalizou a queixa fazendo uma espécie de beicinho de choro.
- E então, malandrão, é assim? Quer dizer que tu fica mexendo com as moças na rua? – inquiriu o guarda num tom desafiador.
- Não foi nada disso seu guarda, eu posso explicar. Posso explicar?
- Te explica, então, ô mané.
- Não foi um assédio, nem uma ousadia, nem uma ofensa, nem tara nem nada, seu guarda. É que... o senhor sabe quando a gente vê uma coisa muito bonita e não consegue deixar de manifestar? Tipo, ‘que pôr-do-sol maravilhoso!’, ‘que filme!’, ‘que golaço!’, sabe? Pois é. Eu só não pude deixar de falar. E tive que falar pra quem merecia o elogio. Pra quem pudesse se orgulhar do que tem. Foi com todo o respeito. Eu inclusive comecei assim, ‘moça, com todo o respeito’, não foi?
Ela meio contrariada, confusa e constrangida respondeu hesitante: -Foi...
- Bom, moça. Eu acho que o rapaz aqui não fez nada de muito sério.
- Como assim? O senhor vai deixar ele ir embora assim. – indignada.
- Não posso prender ninguém por elogiar outra pessoa e além do mais, se a dona me permite, ele tem razão, a moça tem um... uma... é muito bonito mesmo.
- Mas que absurdo! Não dá pra contar nem com a polícia mais. Que abuso. Deixa’ssim, deixa’ssim – e foi saindo desarvorada enquanto o guarda voltada para o sinal rindo e balançando a cabeça negativamente e o rapaz tomava seu rumo e ia seguir a vida.
Ela chegou em casa ainda bufando, abriu a porta nervosamente e bateu para fechar, jogou a bolsa sobre o sofá e entrou apressada no quarto. Parou em frente ao espelho e tirando os brincos ainda sussurrava para si mesma, “Que absurdo, que absurdo!”
Começou a tirar a roupa para tomar um banho e no atabalhoamento da raiva quase caiu na perna da calça. “Absurdo, absurdo!”
Mas agora já começava se acalmar. Afinal, não tinha sido tão sério assim. Por mais inconveniente que tivesse sido, o rapaz não lhe passara a mão, não a chamara de gostosa nem nada vulgar. Só fizera um elogio. Só. Podia ter-lhe elogiado os cabelos, os ombros, os tornozelos e não teria ficado ofendida. Pensando bem exagerara um pouco. “Ai que vergonha”, pensava agora.
- Deixa pra lá. Vou tomar meu banho.
E, só de calcinha, quando já ia sair da frente do espelho e tomar rumo do banheiro, não pôde deixar de deter o olhar na própria bunda. Virou o corpo melhor, girou o pescoço. Até que era graciosa. Não pôde também deixar de soltar um leve sorriso, de vaidade, satisfação provavelmente. Nunca gostara muito da própria bunda.


Cly Reis

Um comentário:

  1. Adorei. Sabes que eu já me passei por uma situação parecida - sem policial. A reação dela não foi das melhores, mas não pude conter minha honestidade.
    Dã.

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