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terça-feira, 10 de janeiro de 2012

cotidianas #128 - MacGol


   " É assim mesmo. Mas por que Macbeth treme do que vê?
Manas, ele desvaria; infundamos-lhe alegria,
revelando de nossa arte a mais sedutora parte.
No ar porei muitos encantos. Enchendo-o de sons e cantos,
enquanto vós a rodada deixareis bem acabada,
para que este rei potente conosco fique contente."
Bruxa -
ato IV, cena I de Macbeth,
de W. Shakespeare



Desembarcaram no aeroporto ainda eufóricos pela grande vitória fora de casa.
    Havia sido um chocolate!
    Tinham passado por cima do adversário e ele, Maicon, um reserva havia sido o grande destaque com três gols. Estava ansioso para dividir com a mulher a alegria do feito. Ela que sempre lhe dizia que ele merecia mais, que já devia ser titular àquelas alturas, certamente estava satisfeita com o que ele fizera. Com certeza vira o jogo na TV.
    Agora a caminho do táxi, ele e o colega, amigo e vizinho Waldemar, zagueiro veterano e experiente, conversavam animadamente sobre o campeonato, quando uma velhinha pedinte, provavelmente cega a julgar-se pela branquidão das íris, sentada no meio fio da área de desembarque , os interrompeu:
   - Ehe, Maicon, novo dono da camisa 9 e logo logo o grande craque do Metrópolis, hehehe! – riu-se sozinha.
   - Como é que é? - se deteve, interrompendo o passo.
   - E tu – disse agora se apontando para o Waldemar, sem levantar a cabeça – Filho de Soberano é Príncipe. Hihihi! O guri vai ser grande. O maior! Hehehe...
    Referia-se ao Waldemar daquela maneira porque assim era conhecido o zagueiro do Metrópolis: O Soberano da Grande Área e pelo visto aquela adivinha via um futuro promissor para seu filho que ainda jogava nos juvenis.
Não tiveram tempo de pedir maiores explicações. Um táxi encostou e o motorista já se encarregava de guardar-lhes as bagagens no porta-malas.
    Embarcaram mas permaneceram por um momento um tanto atônitos pelas previsões da anciã. Seus estados de transe só foram quebrados pela entrevista que por caso, ouviam exatamente naquele momento no rádio do táxi, na qual o técnico de seu time, recém desembarcado no aeroporto, anunciava aos repórteres que Maicon seria o novo dono da camisa 9 já a partir do próximo jogo.
    Se entreolharam estupefatos!
    Mas se a velha dissera a verdade então em breve não só seria titular como também seria o grande craque do time. E o Waldemar? O filho seria então o grande ídolo do clube? Seria uma maravilha uma vez que nunca passara de um zagueiro limitado, imponente mas limitado, e de qualquer foram, já estava mesmo em fim de carreira. Que orgulho sentia pelo filho embora não houvesse do que se orgulhar efetivamente ainda. Tudo que havia era apenas uma predição de uma velha cega na calçada do aeroporto.
    Assim que chegaram ao condomínio onde eram vizinhos, cada um foi para sua casa e Maicon, mais que depressa foi levar à mulher a boa notícia. Era o que ela esperava. Sabia que o marido merecia. Sabia que merecia muito mais. Craque do time? Isso traria um salário maior, convocação para a Seleção, contratos publicitários, propostas do exterior... Mas como seria possível? O craque do time indubitavelmente era o Duca. O Duca era titular da Seleção Brasileira e pretendido por inúmeros clubes europeus. Só se... E se tirassem o Duca do caminho. Quem sabe ele não poderia ‘aceitar’ uma destas propostas do exterior. Tinha o mesmo empresário do Maicon, era só uma questão de convencê-lo a vender o craque imediatamente. Mas como faria? Bom, tinha seus meios e o Maicon não precisava saber como ela tinha conseguido...
    E foi o que aconteceu. Deram-se mais uns 3 jogos, o Duca parecia desinteressado, coma cabeça em outro lugar até que foi anunciada sua para um time da Espanha. Foi uma grande frustração para a torcida. Quem poderia substituir o craque agora. Por mais que o Maicon continuasse fazendo seus gols e tivesse sido naturalmente elevado à condição de grande ídolo, nem de perto exibia a mesma qualidade técnica do meia-armador vendido para o estrangeiro. A grande vantagem do clube era que na categoria de base um jovem talento vinha-se destacando era o Wellington, filho do veterano zagueiro Waldemar. Em sub-15, 16,19, 20, simplesmente arrasava. Estava muito à frente do pessoal da sua categoria e logo teria que ser integrado ao profissional. Já chamava-no o Pequeno Príncipe, em alusão ao título de nobreza atribuído ao pai. O Maicon não tinha nem se dado conta disso, mas sua ambiciosa esposa, sim. Se a velha estivesse certa, e já havia acertado antes, aquele menino seria o maior ídolo do clube e por certo faria com que a torcida relegasse seu marido a uma condição inferior e passasse exclusivamente a adorar aquele fedelho. A idolatria era o de menos, o problema era que aquilo certamente acarretaria contratos inferiores, perda de patrocínios, de prestígio no próprio clube. Conhecia alguns garotos da base, podia convencer algum zagueirinho daqueles a dar um fim à carreira do prodígio. Uma entrada criminosa no joelho? Um carrinho por trás... Adorava aquele termo, ‘por trás’. Sim, qualquer um daqueles garotos pernas-de-pau ficaria feliz em fazer-lhe aquele favorzinho em troca de alguns momentos... mais íntimos, digamos assim.
    A notícia da lesão do Wellington caiu como uma bomba no clube. E num rachão! Ainda se fosse em jogo valendo. O Rodrigão, zagueiro de 18 anos que dera-lhe a entrada imprudente fora até a público desculpar-se, ‘coisas do acaso’, ‘futebol é jogo de choque’, ‘lamentava por ter feito aquilo com um colega’, até chorara na TV. A grande promessa do clube, no entanto, estava de molho por pelo menos 3 meses. Muito menos tempo do que, quem vira o garoto se retorcendo de dor no campo suplementar, podia imaginar. Sem o Duca, vendido, e sem a perspectiva do Pequeno Príncipe, o Metrópolis teria que continuar dependendo dos gols do Maicon. Mas graças a Deus ele estava em grande fase e os gols não cessavam. A bola às vezes mordia-lhe, era sofrível, ele a tratava mal, mas no fim das contas, na hora de empurrar pras redes, sempre era ele quem estava lá.
    O velho Waldemar que conhecedor como era do ofício de zagueiro, tinha certeza que aquilo tinha sido de propósito. Muito já fizera pra tirar adversários de campo. Tinha uma leve desconfiança mas não queria dar crédito a ela.
   O campeonato seguiu, não foram campeões, tinham arrancado muito atrás mas graças aos gols do centroavante conquistaram a chance de disputar a Libertadores. No ano que viria, sim. Maicon, o MacGol, como chamava a torcida, teria que ser decisivo para conquistarem a América. O Waldemar apesar da desconfiança, optou por calar-se, até porque no clube, àquelas alturas, o Maicon era como um deus e, desgostoso com aquilo tudo como estava, preferiu retirar-se dos gramados no final da temporada a ficar travando uma batalha interna. A recuperação do filho, no entanto, surpreendia o departamento médico e o garoto logo voltaria a trabalhar com bola, contudo, seria melhor emprestá-lo para outro clube pelo menos por um semestre para ver como retornaria de todo aquele tempo parado e para que fosse ganhando ritmo de jogo. Foi emprestado ao Guarí time pequeno mas que excepcionalmente conseguira aquela vaga inédita para o torneio continental. Dependendo da recuperação, poderia te vir a enfrentar o próprio clube em outra fase da competição.
    A torcida por sua vez já esperava ansiosa pela volta do craquezinho depois do empréstimo e, mesmo à distância, no modesto Guarí, o garoto recebia o carinho do torcedor que já o considerava o novo Duca. Maicon começou a ficar preocupado com aquela idolatria. O garoto nem sequer jogava no seu time e era amado daquela maneira. Podia vir a ser adversário até na competição mas parecia que a torcida ignorava isso ou.. talvez nem se importassem. Imagina quando voltasse ao clube. Como garantiria sua condição maioral no clube? E os contratos, e o prestígio, e os patrocinadores? Tolas preocupações uma vez que numa atividade como o futebol há espaço para mais de um ídolo na mesma casa, mas provavelmente por conta de sua ignorância, de sua origem humilde, sua formação, temia que o que por ele fora conquistado, lhe fosse tirado da mesma forma.Por isso tinha que se certificar de que uma possível volta do guri não o relegaria a um segundo plano, terceiro talvez, a um ocaso prematuro... Mas o que poderia garantir-lhe? A velha! Sim a velha do aeroporto. Deveria estar lá ainda, maltrapilha mendigando perto da fila do táxi. Iria vê-la. Nem trocou de roupa. Saiu como estava mesmo. Pegou o carro e rumou para o aeroporto. Chegando lá não se enganara, encontrara a velha exatamente onde imaginava: na fila do táxi, com os olhos esbranquiçados fixos no chão, o que não a impediu de reconhecê-lo antes que se aproximasse ou ao menos abrisse a boca.
   - Ah, lá vem o Dono da Camisa 9. O capitão do time. O Grande ídolo do Metrópolis! Salve o MacGol!!! Hehehehe!
   - Velha, tu disse as coisas certas: que eu ia ser titular, ídolo da torcida e tudo mais. Mas tu também falou que o filho do Waldemar ia ser O Maior. Ele tá fora. Tá em outro time e mesmo assim parece que gostam mais dele do que...
   - Te acalma, te acalma. Tu é o grande MacGol, o maior jogador do clube, o mais alto salário e blábláblá... Só vai deixar de ser no dia que concreto virar ouro.
   - Então, não tem chance! – suspirou aliviado – Ninguém pode me derrubar...
    Mas a velha interrompeu:
   - Até pode, mas só se for homem nascido de bicho.Tu já viu? Tu conhece algum?
  - Nã... Não... Acho que não. – disse hesitando um pouco.
  - Agora vai, vai... E põe um dinheirinho aí – disse estendendo uma lata de goiabada com uma meia dúzia de moedas. – Vai, MacGol. Senhor da Pequena Área, hehehehe!
    Ele depositou uma nota generosa e foi-se embora ainda remoendo o assunto. “Homem nascido de bicho”. Aquilo era impossível. E ‘o dia que concreto virar ouro’. Isso é um absurdo. Concreto jamais poderia virar ouro. Podia ficar tranqüilo. E foi para casa ainda com uma ponta de preocupação na cabeça, mas que foi desaparecendo e transformando-se em confiança durante o caminho pra casa.
    Dentro de campo tudo continuava correndo bem. Avançavam às 4as. De final da Libertadores e ele MacGol continuava sendo decisivo. Mas fora de campo as coisas começavam a ficar um tanto conturbadas. O zagueiro do juvenil que tirara Wellington dos gramados, meio bêbado demais numa festa, dera com a língua nos dentes, com detalhes inclusive do modo como fora convencido. A conversa vazou para a imprensa e logo foi para os jornais em forma de boato. É lógico que o garoto, o Rodrigão desmentiu publicamente, mas aí a aura de desconfiança com o MacGol já era perceptível. A torcida se dividia em opiniões: Uns achavam impossível alguém mandar fazer uma coisa daquelas com um colega de profissão, ainda mais um menino, outros, que aliás eram a maioria, estavam solidários com o Pequeno Príncipe e consideravam a atitude do goleador imperdoável.
    Para piorar o guri estava fazendo chover no modestíssimo Guarí! Praticamente sozinho levara a fraca equipe às semifinais de uma Libertadores da América e enfrentaria exatamente o clube do coração, o clube no qual fora criado e ao qual ainda pertencia por contrato.
   O dilema do torcedor ficara maior ainda: era a chance de chegar finalmente a uma final de Copa Libertadores, mas ao mesmo tempo a jóia do clube estaria do outro lado fazendo as habituais mágicas que costumava aprontar. O certo seria prestigiar o garoto, aplaudi-lo, mas não abandonar o próprio clube de maneira alguma. Sorte que tinham o MacGol, que vinha guardando todas desde o início do campeonato.
Mas na semana do jogo a balança pendeu definitivamente para o lado do jovem craque quando o ex-empresário, aquele que vendera o craque Duca para a Europa, insatisfeito por ter sido destituído do cargo pela ambiciosa esposa do artilheiro, também tratou de dar detalhes sobre os motivos que levaram o ex-camisa 10 a sair do clube. A situação ficou péssima para a esposa dentro de casa e para os dois dentro do clube. Sirleni era olhada com desprezo pelas outras, era alvo da ira de dirigentes e de piadinhas dos jogadores de todas as categorias. Em casa, Maicon humilhado pedia-lhe explicações de como pudera fazer uma coisa daquelas com ele, ao que ela respondeu que não havia feito COM ele e sim POR ele. Não adiantaram as explicações e as justificativas. Furioso a mandou embora, botou pra fora, bateu a porta jogou as coisas pela janela e gritando dali a mandou dormir debaixo da ponte. Um prato cheio para a s fofocas dos vizinho e para imprensa que confirmava então, até mesmo o caso do Rodrigão. Agora era notícia. Que péssimo clima para uma semana de decisão.
    Mas salvo todos os problemas, o nariz torcido da diretoria, do técnico, dos colegas, sabia que na podiam prescindir dele. Ele era o MacGol, o que caísse na área para ele era rede. E mais do que nunca estava cheio de confiança. Sabia que aquilo tudo iria passar. Não deixaria de ser o ídolo maior do clube, com certeza escreveria o nome na história, um dia teria estátua, seria nome do estádio, provavelmente viria até mesmo a ser presidente. Jamais concreto viraria ouro.
    Mas a determinação da torcida em torcer para o time sem deixar de demonstrar solidariedade ao garoto prata-da-casa tinha que ser simbolizada de alguma maneira e para isso as organizadas combinaram de usar coroas de papelão revestidas com papel dourado no dia do jogo. Todos deveriam pô-las nas suas cabeças quando as equipes entrassem em campo. E foi o que aconteceu. As equipes entraram juntas e o que se viu foi aquele estádio praticamente todo dourado. Era como se o concreto da arquibancada tivesse virado ouro.
Maicon não acreditava no que via. De repente toda sua confiança começava a se esvair. Mas não seria substituído, ninguém seria como ele no clube, afinal nenhum homem nascera de um animal.
    Enquanto sua cabeça girava em inúmeras inquietações o placar eletrônico dava as escalações dos times. O goleiro, o lateral-direito... Naquele dia o lateral do Guarí estava suspenso e jogaria um outro, por acaso de mesmo nome do seu rival. Se não bastasse um Wellington o atormentando, ainda teria que agüentar outro em campo. Mas meteria dois ou três gols e logo a torcida esqueceria o pirralho. E seguia o placar: o volante, o meia-direita, o meia-esquerda, ele: Wellington Lobo. Anunciaram-lhe o sobrenome para diferenciar do outro. E era um Lobo, um bicho, um animal. Nascera de um... bicho. Suas pernas bambearam, mas já era o momento de dar início ao jogo. O árbitro já apitara e ele continuava ali atônito olhando para o placar sem acreditar.
   - Maicon, rola a bola. O homem já apitou. – chamou-lhe o colega tirando-lhe parcialmente do transe.
    Tocou levemente na bola, o suficiente para fazê-la sair do lugar. E o jogo começara.
    A atuação do MacGol foi ridícula. Provavelmente nunca nenhum jogador de futebol fizera uma partida tão sofrível. Não acertou nenhum passe. Rigorosamente nenhum. Parecia totalmente desconcentrado. Teve a chance de ouro quando o Paulinho driblou o goleiro perto da linha de fundo e não tendo mais ângulo para chutar rolou para ele, sozinho, quase sobre a linha e ele, inexplicavelmente, meio que tropeçando, se enrolando com as pernas, chutando o chão e arrancando um naco de grama bateu fraquinho pelo lado do gol. Foi retirado imediatamente pelo técnico debaixo da maior vaia já direcionada a um só jogador num estádio de futebol.
    Do outro lado, Wellington, o Pequeno Príncipe, mostrava porque era a maior jóia do futebol brasileiro. Fazia miséria! Era impossível marcá-lo. Era chapéu, janelinha, toque de letra, empilhava uns três ou quatro na marcação fácil e chegava na cara do gol quase sempre em condição de concluir e em atos heróicos derradeiros, um zagueiro se jogava contra a bola, o goleiro fazia um milagre ou ela saía por capricho.
    A torcida conformada que aquele jogo já estava perdido mesmo, passou a apenas assistir às obras de arte do garoto, que acabou o jogo classificado e simplesmente ovacionado pela torcida que era adversária, mas que no fim das contas era a sua torcida.
    Quanto ao Maicon, depois de todas as acusações da semana, do escândalo com a esposa, do prejuízo que causara ao próprio clube tirando o garoto do time naquela temporada, somado à atuação bisonha, queriam literalmente a sua cabeça. Se tivesse feito aquele gol naquele momento do jogo talvez tivessem alguma chance mas depois, foi um passeio do adversário. Show do guri!
    Substituído que foi, aproveitou para sair de fininho antes do fim do jogo. Não apareceu mais no clube. Não foi mais visto por um bom tempo até que se soube que atuava em um time da quarta divisão do estado. A esposa soube-se que passara a dormir debaixo do viaduto, virara mendiga, enlouquecera e não falava coisa com coisa. Foi encontrada morta alguns meses depois.
    No Metrópolis, o Pequeno Príncipe é hoje o maestro do time, o grande Camisa 10, o centro técnico, a referência. O orgulho do seu Waldemar Lobo. É titular da Seleção fazendo dupla com o Duca no meio-campo. Reina absoluto!


Cly Reis

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