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sábado, 24 de setembro de 2016

cotidianas #466 - Caixinha de Surpresa




Dico era ídolo do Cedro.
Era goleador.
Matador.
Era ídolatrado. Era amado. Festejado.
Dico era aquele tipo que não perdoava: caía na área, ele botava pra dentro.
Era amado por sua torcida e temido pela da Esportiva, o tradicional adversário.
Na rua era abraçado por seus torcedores, requisitado por fãs para autógrafos e fotos e era tão adorado que até presentes recebia de vez em quando. Do outro lado, embora olhado com natural antipatia, gozava de respeito e de merecida admiração pelas inegáveis virtudes que só um grande centroavante possui.
Dico empilhava gols e nunca deixava de marcar especialmente nos clássicos infligindo uma cruel sina de derrotas e humilhações para o arquirrival.
Essa virtude não poderia deixar de ser notada pelo futebol do exterior e, como se sabe, no mundo do futebol, o dinheiro manda, Dico acabou sendo negociado com um gigante europeu.
Mas, sabe como é, jogador brasileiro nem sempre se adapta bem a outro país, outra cultura e Dico não repetiu o sucesso no Velho Continente.
Não demorou muito para começar a manifestar desejo de voltar a seu país.
O mundo dá voltas e por essas ironias do destino, depois de a curta passagem pela Europa, Dico retornou exatamente para o antigo rival.
Foi recebido com festa pela nova torcida e hostilizado pela antiga.
Deu a resposta que se esperava dentro de campo e não tardou a empilhar gols.
Veio o primeiro clássico contra seu ex-clube e ele não quis saber: guardou o dele. E aquela seria apenas o primeiro de muitos.
Passou a deixar sempre o dele, um ou dois, três gols num jogo até e a antigo caso de amor, e sabemos como são essas coisas do coração, transformou-se numa relação de rancor e ódio.
Era agora amado pela torcida da Esportiva e odiado pela do Cedro.
Na rua era festejado por seus torcedores, abraçado, requisitado para fotos e autógrafos por fãs, mas já não conseguia andar por qualquer lugar como fazia antes naquela cidade pois nunca escapava de ouvir alguma hostilidade de algum dos muitos que se sentiam traídos pelo craque.
Sabemos como é o ser humano, passional, instintivo e até mesmo cruel, e assim, as hostilidades começaram a se intensificar e atingir um novo grau. Começava a receber telefonemas anônimos. Piadinhas de mau gosto, xingamentos, insinuações.
Um clássico decisivo despontava como nunca antes na história. Nunca antes um confronto entre Cedro e Esportiva havia decidido um campeonato nacional e agora os dois se classificavam para a final. A cidade estava em polvorosa. Não se falava em outra coisa! Mas com Dico na Esportiva e pelo histórico recente de gols no rival, não havia muita dúvida sobre qual era o grande favorito. Mas, sabe como é, futebol é uma caixinha de surpresas, clássico é clássico e qualquer coisa poderia acontecer.
Dico anunciou que faria dois no primeiro jogo.
Fez.
Ainda haveria o jogo de volta.
Na semana que antecedeu ao jogo as ligações para sua casa e para seu celular se intensificaram. As brincadeiras e xingamentos se transformaram em ameaças.
"Nós sabemos onde tu mora", "E aquela tua gostosa...", "Vamo cortar aquela puta em pedacinhos", "Nós sabemos onde é a escola do teu filho", "Tu quer ver de novo teu filho?", eram algumas das frases que ouvia cada vez que atendia o telefone.
Dico não se intimidou.
Seu ofício era fazer gols e era o que faria.
Disse que faria mais dois.
E fez.
Era campeão. Era agora mais celebrado do que nunca, mais idolatrado, mais adorado. Estava nos braços da torcida mas queria dividir aquilo com a família. Não via a hora de livrar-se das entrevistas, premiações, comemorações e chegar em casa para abraçar a mulher e o filho.
Finalmente conseguira se livrar da imprensa e dos outros compromissos. Chegava em casa. Abriu a porta e surpreendeu-se pelo silêncio lá dentro. Chamou ambos pelos nomes. Nada. Abandonou a bolsa esportiva no chão da sala e saiu a procurar, intrigado, nos cômodos mais próximos. Nada. Voltando à sala sua atenção foi capturada por um detalhe que não havia notado antes, quando entrara em casa. Em cima da mesa de centro repousava serenamente uma pequena caixa de presente envolta por uma fita vermelha que terminava num delicado e formoso laço.



Cly Reis





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