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segunda-feira, 17 de abril de 2017

Elza Soares - "A Mulher do Fim do Mundo" (2015)



"Eu sou mulher do fim do mundo
Eu vou, eu vou,
eu vou cantar
Me deixem cantar até o fim."
da letra de
"A Mulher do Fim do Mundo"




Devo admitir que fui com um certo ceticismo para ouvir "A Mulher do Fim do Mundo", disco da veterana Elza Soares, desconfiado de que grande parte da badalação em torno dele viesse a dever-se muito mais à simpatia das "minorias" ou da parcela da sociedade engajada por assuntos que o disco aborda e causas que, direta ou indiretamente, defende como igualdade racial, feminismo, justiça social, etc., do que propriamente por suas suas qualidades musicais. Para minha felicidade o disco não limita-se a ser um grito dos oprimidos. Aparatada por um time de jovens músicos, compositores e produtores, antenados com o momento musical, com os novos recursos e possibilidades, a veterana Elza Soares tem a oportunidade de ter seu trabalho atualizado e por conta disso revalorizado através das inovações propostas por essa impetuosa retaguarda técnica. Bases e batidas pré-gravadas, guitarras, distorções, incorporação de outras tendências musicais como rap e o funk são algumas das novidades que vemos no trabalho de Elza, impulsionadas, é claro, pelo talentoso grupo de músicos já de bom trânsito e reconhecimento pela cena musical paulistana nos últimos anos.
Mas antes que digam que estou dando todos os méritos para a equipe técnica e inventem outra polêmica, como se já não bastasse da famosa discussão sobre o fato do álbum ter sido todo concebido e executado por homens brancos,  é importante que se saliente que "A Mulher do Fim do Mundo" é um disco DE Elza Soares, feito PARA Elza Soares como muitos discos são feitos para outros intérpretes por diversos compositores, independente de seu gênero, raça ou condição social, e ELA é a estrela maior do disco. Os temas, as letras, a obra foi entregue a ela, personificada nela porque, possivelmente, no Brasil, poucas artistas representariam tão bem a imagem de luta de uma mulher negra de origem humilde julgada pela sociedade como ela. E nada mais autêntico do que entregar esse repertório a uma mulher que, mesmo antes disse projeto, ao longo de sua carreira sempre fez questão de mostrar estas realidades fosse nos repertórios escolhidos, fosse em entrevistas.
Provando que sabem que Elza é quem tem que brilhar e que não tem a intenção de reivindicar a obra, os "garotos" fazem questão de enfatizar isso logo na primeira faixa: o que surge primeiro é a voz. Apenas a voz. Nada mais. Numa emocionante interpretação à capela de "Coração do Mar", poema de Oswald de Andrade, musicado por José Miguel Wisnik, Elza brilha solo mostrando que seu "instrumento de trabalho" permanece como uma marca registrada na música brasileira.
Imediatamente após a introdução vocal, a faixa que dá nome ao disco surge solene e melancólica com cordas chorosas logo integradas a um riff minimalista que não tarda a explodir num samba potente como um terremoto, um cataclismo, um apocalipse. É o fim do mundo e Elza está lá. No meio dele, no olho do furacão. Cantando. Com aquele rasgo de voz característico dela, como se fosse um trompete, ao melhor estilo Louis Armstrong, ela anuncia, inapelável, "Eu vou cantar até o fim". E, amigos, tal é a força, que a partir daquele momento ficamos com a certeza de que nada irá pará-la.
E pra confirmar essa volúpia incontida, a excelente "Maria da Vila Matilde", um "samba-de-breque" cheio de elementos eletrônicos, guitarras e metais, vem dando o papo-reto sobre violência contra a mulher botando o dedo na cara do machão covarde e avisando com todas as letras "Você vai se arrepender de levantar a mão pra mim". É a afirmação da postura da mulher do novo século, da mulher do fim do mundo.
Em "Pra Fuder" a linguagem que num primeiro momento pode parecer desnecessária, tipo criança boca-suja, meio Dercy Gonçalves nos últimos anos de vida, mostra-se imperativa num dos refrões mais intensos dos escritos no Brasil desde as sentenças primais de "Cabeça Dinossauro" dos Titãs.
"Luz Vermelha" é visceral, agressiva, caótica e traz um refrão embalado por uma espécie de drum'n bass sambado; a simpática "Firmeza?!" reafirma a contemporaneidade de linguagem, não somente sonora mas também verbal, proposta pelos compositores e produtores, num amistoso diálogo entre dois "parças" na "quebrada" onde vivem; a mórbida "Dança" talvez seja a que mais se aproxima de um samba canção tradicional; e "Canal" com uma poesia sutil aborda a questão da falta d'água com destaque para o brilhante trabalho de percussão.
"Benedita" (ou seria Benedito?), outro dos granes destaques do álbum, de estrutura quebrada e imprevisível, acompanha as desventuras de um transexual pelo submundo e seus recursos para sobreviver naquele meio selvagem e implacável ("Ela leva o cartucho na teta/ ela abre a navalha na boca") .Uma jornada underground comparável às mais sujas histórias de Fausto Fawcett com suas fantásticas personagens malditas como Kátia Flávia, a amazona loura terrorista, ou a falsa-santa traficante de armas Judith Raquel: ou mais realisticamente, com o personagem de mesmo nome criado por Itamar Assumpção em "Beleléu", mais conhecido como Nêgo Dito.
Sob acompanhamento de cordas "Solto" encaminha com melancolia o final do disco e, assim como começou ele termina, conduzido apenas pela voz de Elza na belíssima "Comigo". A voz está um pouco envelhecida, deve-se dizer a verdade, mas assim como Billie Holliday em "Lady in Satin", que com a voz hesitante e débil ainda conseguira gerar uma obra-prima, Elza Soares talvez tenha conseguido finalmente, em tempo, a sua.
Um disco que já nasceu histórico e que já coloca-se de imediato entre os grandes álbuns da música brasileira. Um projeto musicalmente ousado e que torna-se urgente e essencial no presente contexto político, social e humano por suas temáticas e abordagens. "A Mulher do Fim do Mundo" é o disco da nova mulher, de uma nova atitude, de um novo som, o disco de um novo século e, oxalá, quem sabe não o disco do fim do mundo, mas de um novo mundo.
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FAIXAS:
  1. "Coração Do Mar"
  2. "Mulher Do Fim Do Mundo"
  3. "Maria Da Vila Matilde"
  4. "Luz Vermelha"
  5. "Pra Fuder"
  6. "Benedita"
  7. "Firmeza"
  8. "Dança"
  9. "Canal"
  10. "Solto"
  11. "Comigo"

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OUÇA:
Elza Soares A Mulher do Fim do Mundo



Cly Reis


Um comentário:

  1. Muito boa a resenha, Clayton. Escutei o disco e pirei de cara. Elza já tinha matado a pau no Do Cóccix até o Pescoço, o anterior, mas esse é desbunde.

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