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quinta-feira, 4 de maio de 2017

cotidianas #508 - A Cruz


- Padre, eu pequei.
O padre, dentro do seu cubículo no confessionário, fez no ar suavemente um sinal em cruz, aproximou o rosto da divisória treliçada que o separava do confessor e falou com voz gentil:
- Pode falar, filho. Deus há de perdoar seus pecados.
- Acho que Ele não pode me perdoar. - declarou o homem.
- A misericórdia do Senhor é infinita. Não há pecado que Ele não possa perdoar desde que haja sincero arrependimento. - argumentou o padre.
- Eu não sei se me arrependo...
- Mas fale então, filho. Talvez a confissão possa trazer conforto para sua alma.
Depois de um breve silêncio do outro lado, o homem finalmente botou para fora:
- Eu tirei a vida de um homem.
O padre fora, inegavelmente, surpreendido com algo tão grave. Olhou estarrecido para a divisória vazada enxergando apenas um vulto borrado do outro lado, enxugou a testa com um lenço e refazendo-se do espanto inicial, tratou de voltar à confissão:
- Filho, isso é muito sério. O que o levou a fazer uma coisa dessas? O que?
- A voz. A voz me diz pra fazer isso...
Com uma curiosidade que unia o dever do ofício com a mais desprezível bisbilhotice humana, o homem de Deus perguntou:
- E como você fez isso, meu filho?
- Eu não queria mas a voz me disse... A cabeça do corvo deve ser separada do corpo...  Assim os maus pensamentos não contaminarão a casa do Senhor. Entende? O corpo. A casa de Deus... Aquilo que nos foi dado... E que insistimos em sujar com pecado...
- Você arrancou a cabeça um homem? - perguntou o padre com terrificado espanto.
- É, padre. - confirmou o homem - E os braços, as pernas e aquele coração impuro.
Em meio a seu pavor, entre pensamentos conflitantes e imagens repugnantes que lhe perpassavam a mente, o padre conseguiu associar a descrição macabra à de um crime ocorrido há pouco tempo numa cidade próxima, o qual que não teria como esquecer considerando a brutalidade do ato, a ampla cobertura que lhe fora dado pelos meios de comunicação, mas principalmente por um detalhe que pretendia confirmar mas cuja mera possibilidade já o aterrorizava:
- Filho, por acaso foi você que...? Isso aconteceu...? - não conseguia encontrar a melhor maneira de tirar aquela dúvida até que, por fim, resolveu simplificar - Foi um padre?
- A voz me disse pra fazer. Eu não tenho culpa. - confirmava, ao que parecia, mesmo que confusamente - Eu não queria. Ou queria... Não sei. A voz me diz que é minha missão. "Vai e varre da face da terra aqueles ímpios que se dizem servos do Senhor. Aqueles que vestem negro como o corvo e que carregam consigo os símbolos da Trindade. Vai e arranca a cabeça do corvo. Afasta-a da casa do Senhor para que nela os intentos impuros não tornem a habitar. É missão tua, com o sangue desses heréticos marcar sobre a terra o símbolo da dor de Jesus."... Me perdoa, padre. Eu tenho que fazer isso. A voz tá me mandando. Me perdoa.
O padre voltou a fazer o sinal da cruz no vazio e sussurrou para si mesmo:
- Que Deus tenha piedade da minha alma.


Cly Reis

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