Curta no Facebook

terça-feira, 9 de junho de 2020

"Gloria", de Sabastián Lelio (2013) vs. "Gloria Bell", de Sabastián Lelio (2018)



Sabe aquela expressão que diz: “se melhorar, estraga”? Pois essa máxima vale tanto para o futebol com aqueles times que, na falsa ideia de serem aperfeiçoados, acabam por prejudicar o esquema que estava dando certo, ou para filmes, quando se cai na perigosa tentação das refilmagens. Embora seja amplamente aproveitado em diferentes polos de produção de cinema – mas, principalmente, na preguiçosa indústria audiovisual dos Estados Unidos – o recurso do remake é, obviamente, válido e justificável em uma série de situações: histórias que se datam e a cujos roteiros cabem atualização ou nova roupagem; aqueles filmes em que o contexto histórico-social pede, anos depois da primeira realização, uma nova abordagem sobre a mesma questão; ou, simplesmente, quando o diretor, mais maduro e com mais condições financeiras, refaz a própria obra com a qual não havia ficado satisfeito de primeira. As razões podem ser várias. Outros, mais raros, se dão por preciosismo e, como no futebol, isso pode determinar um placar. Pode fazer a diferença entre marcar um gol, mesmo que não saia dos pés do ídolo, e perdê-lo simplesmente por tentar enfeitar a jogada.

Caso de “Gloria”, o tocante e muito bem realizado filme chileno que, em 2013, surpreendeu seus adversários e fez bonito no Festival de Berlim, onde estreou abiscoitando o Urso de Prata para a atriz Paulina García. Sua refilmagem, a produção norte-americana “Gloria Bell”, de 5 anos adiante, tenta reproduzir em campo (na tela, aliás) o mesmo esquema aplicado em terras andinas. Tinha tudo para isso: a estrutura de uma produção norte-americana, uma grande atriz como protagonista, Julianne Moore, e uma equipe técnica impecável, além de contar com o mesmo técnico na beira do gramado/set de filmagem. Sim, até nisso “Gloria Bell” tinha como vantagem: o próprio cineasta Sebastián Lelio, que coescreveu e dirigiu a versão chilena, conquistara confiança – e dinheiro – dos estúdios dos Estados Unidos para não apenas repetir, como superar o êxito da honesta mas modesta produção sul-americana. O que acontece é que, dentro das quatro linhas – as que delimitam o enquadramento da câmera – não é bem assim que o time se comporta. O desempenho de um e de outro filme ficou evidente: enquanto o primeiro, além de Berlim, ainda levantou os canecos de melhor filme de ficção, atriz e roteiro no Prêmio Platino de Cinema Ibero-Americano (Espanha), melhor filme no Festival de Havana e, igualmente, filme e atriz no Festival de Lima, a refilmagem teve que se contentar apenas com uma acanhada indicação ao Satellite Award de melhor atriz. Disputaram campeonatos diferentes, certo, mas com resultados bastante desiguais.

Trailer "Gloria" (2013)

Trailer "Gloria Bell" (2018)

O enredo, em ambos, segue a mesma linha: Gloria é uma mulher madura que, após o divórcio e a independência dos filhos, vive uma vida solitária. Para compensar o vazio, ela enche seus dias de atividades e pelas noites busca experiências amorosas no mundo dos bailes de solteiros adultos, onde só consegue perde-se em uma série de aventuras sem sentido. Até que a protagonista se apaixona por um homem um pouco mais velho (Rodolfo, vivido por Sergio Hernández, no primeiro, e Arnold, no segundo, o ator John Torturro), recentemente separado e que também se encanta por ela. Inicia-se, então, um romance entre os dois, que logo se complica pela mal resolvida relação dele com as filhas e a ex-mulher. A decepção faz com que Gloria precise, como nunca até então em sua vida, olhar para si mesma e se reconstruir como mulher e pessoa para enfrentar com novas forças a sua definitiva entrada na velhice.

A diferença crucial é o que Lelio faz com suas duas escalações: a aguerrida e naturalmente talentosa equipe chilena ou o habilidoso mas menos pegador escrete norte-americano. Frente a frente, quem sai em vantagem é o primeiro. Não que “Gloria Bell” deixe de demonstrar um bom “jogo”. Marcam gol a fotografia “sem vida” (assinada por Natasha Braier), que dialoga com o emocional da protagonista e, com certeza, Julianne Moore, expressiva e emocional como lhe é característico. Torturro, igualmente, faz bem o papel do namorado. Entretanto, tanto a atriz de “As Horas” quanto o célebre Pino de “Faça a Coisa Certa” se baseiam, visivelmente, nos papeis de Paulina e Hernández respectivamente para construir seus personagens. Isso é óbvio pois, uma vez que, para efeitos de adaptação dos papéis (seja nas semelhanças ou não), haveriam de pesquisar na fonte. Contudo, é mais do que somente isso que ocorre, uma vez que os artistas norte-americanos se baseiam em personagens de difícil construção e de alta exigência de sensibilidade cênica. Quer dizer: por melhor que tenham desempenhado, pegaram pronto o “esquema tático”.

Esse espelhamento no modo de jogar pode funcionar até certo ponto, mas à medida que a partida transcorre, começam a se perceber as fragilidades da equipe mais nova. A condução que Lelio dá a seu filme chileno, criando uma atmosfera que coloca o espectador como cúmplice do drama vivido pela protagonista, é de tamanhas sutileza e genuinidade, que fica difícil reproduzir com igual sucesso todo o arranjo de elementos narrativos e estéticos necessários para isso novamente. É o que acaba acontecendo, uma vez que “Gloria Bell” mostra-se bem armado, tem competência, mas não encanta as arquibancadas. No máximo, chega perto. A sequência, uma das finais, em que Gloria, enraivecida, vai até a casa do ex-namorado e lhe “devolve” o armamento de paintball é, na versão, talvez até mais bem realizada do que a do primeiro, uma vez que se adiciona o elemento dramático da presença das filhas e da ex-esposa na cena. No entanto, no original, é a expressão de espanto dele na hora do revide de Gloria que marca esta passagem. Ou seja: aquilo que seria uma bucha de “Gloria Bell”, apenas acerta na trave e deixa de por a bola pra dentro da rede com mais objetividade. Talvez, por certo preciosismo.

O que se tem aqui é um típico caso de uma direção que, maravilhada por ver seu time de pratas da casa encher os olhos da plateia, animou-se em demasia e botou dinheiro para formar um “dream team”. A história do futebol está aí para provar que essa aposta nem sempre funciona. É só comparar duas seleções brasileiras com a mesma base: a do Felipão, de 2002, e a do “quadrado mágico”, de 2006, e verificar qual foi a campeã e qual ficou pelo caminho. Às vezes, o negócio é mesmo investir naquele time fechadinho, coeso, que fala a mesma língua dentro de campo e que, por essa sintonia, se entende no olhar. Que joga por música. Isso é irreproduzível. Pode escalar o craque que quiser, melhorar a estrutura do clube, aperfeiçoar o marketing, disputar torneio internacional que nada vai substituir o que se faz quando a bola (ou o rolo) começa a rodar. No caso, ainda, contra a conhecida raça chilena, que é muito boa com a bola nos pés e, por que não? com a câmera na mão também. Com todo respeito à ótima Julianne Moore e ao competente Sebastián Lelio: se craque resolvesse, Messi ou Neymar já teriam ganhado Copa.

Duas Glorias: a expressão no olhar das carentes
personagens de Paulina García e Julianne Moore

Ao contrário do que os analistas mais superficiais supunham, pelo ritmo 
de jogo, atuações individuais e, principalmente, pelo jogo mais 
consciente e harmônico, o primeiro de Sebastián Lelio, mais
 simples e melhor resolvido como obra, sai vencedor. 
Pode-se dizer, sem medo: é a “Gloria”!



Daniel Rodrigues

Nenhum comentário:

Postar um comentário