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terça-feira, 7 de março de 2023

"Pinóquio" ou "Pinóquio por Guillermo Del Toro", de Guillermo Del Toro e Mark Gustafson (2022)

VENCEDOR DO OSCAR
MELHOR ANIMAÇÃO



O lar da sabedoria
por Cly Reis


Guillermo Del Toro é daqueles diretores que já consolidou de tal forma uma identidade cinematográfica, uma série de marcas registradas, características estéticas, que sua obra é facilmente identificável pelos admiradores de seu trabalho. "Pinóquio", embora seja uma animação com um argumento originalmente infantil, traz consigo o melhor das características de Del Toro. A adaptação do mexicano, vencedor do Oscar com "A Forma da Água (2018), em colaboração com o norte-americano Mark Gustafson, para a consagrada obra do escritor italiano Carlo Collodi, acrescenta seu tradicional tom sombrio e um olhar crítico e engajado, à singeleza do conto infantil.

O diretore se utiliza da magia da história do velho marceneiro que cria um boneco de madeira que ganha vida, para denunciar o fascismo e as sociedades conservadoras, situando sua adaptação entre as duas grandes guerras, especialmente no início da Segunda, quando a Itália encontra-se sob o governo totalitário direitista de Mussolini. Mais uma marca registrada, uma vez que não é a primeira vez que isso acontece na obra de Del Toro: ele já havia contextualizado outros filmes seus em períodos de guerra, pós ou sob regimes fascistas, como em "Labirinto do Fauno" e "A Espinha do Diabo" e mesmo quando não ambienta nessas circunstâncias, aborda situações que se assemelham ao fascismo e cerceamento de liberdade, individualidade e identidade.

No "Pinóquio por Guillermo Del Toro", depois de perder o filho Carlo, de 10 anos, num bombardeio no final da primeira guerra, o marceneiro Gepetto, depressivo e nunca totalmente conformado pela morte do garoto, dez anos depois, embriagado, num acesso de fúria, corta o pinheiro vizinho ao túmulo do filho e resolve dele fazer um boneco para 'substituir' o filho. Compadecida por tamanha dor de um pai, uma Fada da Floresta concede vida ao pedaço de madeira, no qual, por acidente, residia, antes da marcenaria, um grilo escritor e intelectual que, recusando-se a sair, assume o papel de conselheiro do boneco-menino.

E pode crer que ele precisa de um conselheiro! O boneco é  completamente espirocado. É agitado, tagarela, curioso, teimoso e incontrolável... É lógico que nem o grilo, Sebastião, com toda sua sabedoria, nem o pai, com seu zelo, conseguem pôr o guri na linha, o que resulta em inúmeros problemas para o velho. Pinóquio é um daqueles espírito livres, independentes, aquele tipo de 'gente' que não se submete, não aceita um  'não porque não', e isso incomoda a sociedade, incomoda os conservadores, os conformistas, e incomoda o poder. Assim que se apresenta ao mundo, o menino de madeira é considerado uma aberração, algo satânico aos olhos dos católicos, que insistem em não enxergar nada além da Criação Divina. Mais do que sua aparência, sua procedência, o garoto, contestador e crítico, choca por desafiar a ordem e os bons costumes. Na cena da igreja, quando todos da cidadezinha tomam conhecimento de sua existência e suas habilidades humanas, e manifestam seu espanto, desaprovação e condenação a seu convívio com os demais, Pinóquio aponta, no fundo do altar, para uma enorme imagem de Cristo crucificado, esculpido pelo mesmo marceneiro que o criara, e questiona por que gostam tanto daquela imagem da madeira e dele não. "Blasfêmia!"

Rejeitado pela sociedade por não se enquadrar nos padrões, cobiçado pelo exército do Duce por suas propriedades metafísicas, e contestado pelo próprio pai-criador por conta de seu comportamento, o garoto, em busca de aceitação, de encontrar seu lugar no mundo, iludido por um um dono de circo, abandona a escola, a cidade e o pai, e segue com a trupe em turnê, sendo exibido pelo país afora como grande atração. Aí, a partir dessa rebeldia, se desencadeiam uma série de fatos, aventuras e perigos, sendo alguns deles fatais. Sim, fatais! O garoto morre mas descobre, em meio a esse turbilhão de acontecimentos, que sempre voltará a viver, o que poderá vir a representar um fardo em sua vida, uma vez que todos que ele ama, partirão e ele, eterno, terá que lidar com essas perdas. Bom menino, amoroso, bem intencionado mas confuso, talvez tenha nesse ponto seu grande desafio enquanto ser não-humano e imortal: entender o valor da vida e de cada momento.

Obra repleta de sutilezas, questionamentos, mensagens, "Pinóquio, por Guillermo Del Toro" é mais que somente uma animação ou uma adaptação de um clássico infantil. É uma utilização de uma linguagem mais acessível, lúdica, fantástica, para transmitir uma série de pequenos recadinhos, que servem, perfeitamente, tanto para os pequenos como para os crescidinhos.

Há uma série de detalhes importantes como as mudanças na parede do vilarejo, perto da igreja, que no início do filme, enquanto Carlo ainda vivia, tinha um anúncio de produtos da região; depois, quando surge Pinóquio, passa a ter uma convocação para o exercito com a inscrição "Crer-Obedecer-Combater"; e mais tarde, quando o boneco resolve fugir, um anúncio do circo, ou seja, três maneiras de manipulação do indivíduo (capitalismo, poder e entretenimento); o fato do livro que Gepetto dá ao filho (tanto o humano quanto o de madeira), ser de História, sugerindo que quem tem conhecimento, quem sabe o que se passou, torna-se menos suscetível a ser enganado; a própria declaração do boneco, que afirma não gostar de ser chamado de marionete, rebatendo a argumentação do dono do circo, "Adoramos marionetes. São  o melhor que há"; ou mesmo a ordem de Mussolini para queimar o teatro e matar a todos, depois de desacatado pela estrela principal do espetáculo, nosso intrépido Pinóquio, só comprovando que a arte só serve para o fascista se for ao encontro de seus propósitos.

Mesmo com tantas mensagens sérias, tanta carga dramática, "Pinóquio..." é divertido e tem doses de humor na medida certa. A cena de seu "despertar", de quando ganha vida, descobrindo as coisas e perguntando a utilidade de tudo, é hilária, suas idas e retornos do mundo da morte são, ao mesmo tempo soturnas, engraçadas e graciosas; e sua inocência, sua pureza, são absolutamente cativantes.

Além de tudo, o diretor brinda os cinéfilos e amantes de filmes com diversos easter-eggs e referências a outras obras como "Moby Dick", "Nascido Para Matar", "Hellraiser III" e, "Trainspotting", até porque a voz do grilo Sebastião, é de ninguém menos que Ewan McGregor, o eterno Renton do filme de Danny Boyle. E aí, pescou todas?

Quando acabei de assistir o Pinóquio de Guillermo Del Toro já projetei que o filme não somente seria indicado ao Oscar de melhor animação como também para melhor filme na categoria principal. Me enganei... A Academia preferiu indicar coisas como o comum "Nada de Novo no Front" e o blockbuster banal "Top Gun: Maverick". Pior que, diante dos tradicionais bambambans badalados da Disney/Pixar e da DreamWorks, mesmo com todas suas qualidade e méritos, periga sair de mãos vazias. Fazer o quê? Mas certamente, independente do prêmio, seu Pinóquio terá lugar garantido em muitos corações, que, como nos ensina o filme, é onde mora a sabedoria.

O dono do circo engambelando o menino de madeira.
Sempre vai ter algum "esperto', algum explorador, 
pronto para se aproveitar da inocência.


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De peito aberto
por Vagner Rodrigues


Sabe quando você pega uma receita na internet, que é muito boa, e na hora de fazer você altera algo, coloca um tempero que você gosta muito e a receita se transforma e algo fabuloso? Isso é "Pinóquio por Guillermo Del Toro".

Conto de fadas clássico de um boneco de madeira que se transforma em um menino real, situada na Itália dos anos 30, quando o fascismo estava em ascensão e Benito Mussolini estava tomando controle do país.

O longa diferente da nova versão da Disney, até consegue mostrar melhor seus personagens coadjuvantes mas ainda assim, esse foi um ponto que não me agradou muito. O grilo até tem um enredo bem bacana, mas o restante dos personagens são muito rasos e só fazem a história evoluir por conveniências do roteiro.

No entanto, o que essa versão faz com o cenário em que a história se passa é algo fantástico! Todo cenário é incrível e o fato da história se passar na Itália fascista é um detalhe que só faz o longa crescer. Apesar de se tratar de uma fantasia, esse fato histórico conseguiu trazer um peso real para a obra.

Quanto ao protagonista, o que temos é mais uma versão inocente de Pinóquio, só que esta é tão exageradamente inocente que chega a nos fazer perder a paciência com o personagem, em muitos momentos. O que muito bom! Só mostra como estamos imersivos e nos envolvemos com ele e com a história. E essa ingenuidade essa pureza, é muito bem utilizada pelo diretor, deixando patente toda a evolução da aprendizagem do personagem, aumentando a sua forma de relacionar tanto com o mundo quanto com seu pai, Gepetto, cuja profundidade do personagem merece destaque, uma vez que as cenas mais comoventes e emocionantes do longa vem dele.

Essa nova versão de Pinóquio, consegue ser tão mágica e impactante quanto a primeira, preservando a magia, o encanto, mas ganhando em humanização e verdade dos personagens principais. Seus dramas se tornam mais profundos uma vez que acompanhamos com bastante clareza sua evolução emocional, o que é muito bom. 

"Pinóquio" mostra mais uma vez porque e um dos melhores diretores da atualidade consegue andar pelo drama profundo e a pureza da magia infantil, como um mestre.  Apesar de todo o esplendor visual que o longa mostra em um trabalho perfeito de stop-motion, acredito que a maior beleza esteja mesmo na sua narrativa, na mensagem sobre a vida. Como ela é compartilhada e como pegamos um pouquinho de cada pessoa com quem nos relacionamos, para o bem e para o mal, além da importância de saber lidar com tisso, de modo a construímos, a partir dessas experiências e convívios, nossa própria jornada. Recomendo muito! Vá assistir ao filme de peito aberto, assim como faria Pinóquio.

Não é todo mundo que tem o "privilégio" de voltar a viver
várias vezes até aprender algumas lições, né Pinóquio...



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