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quinta-feira, 22 de agosto de 2024

Françoise Hardy - "Tant De Belles Choses” (2004)

 

"Henri Salvador, que tinha uma gravadora, viu minha apresentação na televisão e telefonou com a intenção de assinar um contrato comigo. A reunião nunca aconteceu, porque eu já estava sob contrato, mas eu sinto tontura toda vez que penso no meu desenvolvimento profissional e o curso que isso tomaria se um artista tão excepcional quanto Henri tivesse me colocado sob sua asa."
Françoise Hardy, em sua autobiografia "The Despair of Monkeys and Other Trifles: A Memoir by Françoise Hardy", de 2018

Ela havia completado 80 anos recentemente, o que foi motivo de celebração para os fãs desta artista cult que somente um país como a França podo gerar. Ela é Françoise Hardy, cantora, compositora, atriz e modelo, que além de linda e talentosa, reúne características daquilo que há de melhor na cultura de sua cidade-natal, Paris: o bom gosto, a delicadeza e a elegância. Mas um câncer a levou em junho deste ano, pouco mais de um mês antes da abertura das Olimpíadas iniciarem na própria Cidade-Luz. Quem sabe ela também não estaria na cerimônia de abertura às margens do Sena tocando?

Surgida como uma das principais figuras do movimento yé-yé nos anos 1960, ela conquistou a Europa com sua voz suave e estilo distinto. Instrumentista desde a adolescência, ela fez faculdade de Ciências Políticas e de Letras na Sorbonne, mas não conclui nenhum dos cursos, pois já havia descoberto sua vocação. Depois de passar em uma seleção de novos talentos da gravadora Vogue, em 1961, passa a cantar na TV francesa e logo foi catapultada ao sucesso com a canção "Tous les Garçons et les Filles", que vendeu milhões de cópias. Hardy não conquistou só o público francês, mas também ganhou notoriedade internacional, gravando versões de suas músicas em italiano, alemão e inglês.

Bela, foi também musa na moda e no cinema. Com o fotógrafo Jean-Marie Périer, com quem se relacionou até 1967, Françoise entrou no mundo da moda atuando como modelo e tornou-se um ícone fashion. Em colaboração com designers renomados como Yves Saint-Laurent e Paco Rabanne, ela influenciou a moda dos anos 1960 com seu estilo característico de minissaias e botas brancas. No cinema, foi dirigida por Jean-Luc Godard, Roger Vadim, Clive Donner e John Frankenheimer, quando contracenou com Peter Sellers e Peter O'Toole no clássico "Grand Prix", de 1966. Françoise era desejada por homens e mulheres, de David Bowie a Mick Jagger, de Brian Jones a John Lennon.

Na música, no entanto, foi onde mais se desenvolveu. Evoluiu do rock inocente e passou a gravar coisas como o folk “Suzanne”, de Leonard Cohen, e, em passagem pelo Brasil, voltou para a França na mala com uma versão francófona de “Sabiá”, de Chico Buarque e Tom Jobim, intitulada “La Mésange”. As fronteiras sonoras de Françoise começavam a se expandir. Entre 1962 e 1973, ela lançou um álbum por ano, consolidando seu status como uma das principais artistas da época. Alguns de seus maiores sucessos incluem "Le Temps de l'Amour" e "Mon Amie la Rose". Ela trabalhou com compositores renomados como Serge Gainsbourg, que escreveu para ela o hit "Comment te Dire Adieu", e Michel Berger, que compôs duas canções para o álbum "Message Personnel" (1973). Com tudo sua voz ligeiramente rouca e afinada e muito bom gosto sonoro, tornou-se uma excelente melodista e letrista admirada por ícones como Henri Salvador, que até quis contratá-la no início da carreira.

Embora a extensa discografia, que adentrou os anos 70, 80 e 90, foi na maturidade que Françoise chegou a seu auge em termos de musicalidade. Ela já havia surpreendido crítica e público com o triunfante retorno aos estúdios depois de 4 anos de pausa com “Clair-Obscur”, de 2000, quando, além de suas excelentes interpretações, composições e versões, canta com gente como Iggy Pop, Olivier Ngog e o ex-marido e eterno parceiro musical Jacques Dutronc. Porém, precisariam mais quatro anos para que viesse, aí sim, com o irretocável “Tant De Belles Choses”, 24º de sua longa trajetória e que completa 20 de lançamento em 2024.

Françoise: ícone também
da moda e do cinema nos
anos 60 e 70
À época com 60 anos, parece que a idade dava a Françoise aquilo que poeticamente Caetano Veloso sentenciou sobre a velhice: “Já tem coragem de saber que é imortal”. A faixa-título e de abertura e encerramento, evidencia esse amadurecimento diante do mundo, diante das coisas, que se tornam graciosamente belas a seu olhar. Na sequência, a sempre presente influência da música brasileira na sonoridade dos franceses está na francesíssima bossa-nova “À L'ombre De La Lune”. Clima parecido tem “Jardinier Bénévole”, mais cadenciada e enigmática, contudo, principalmente pelas programações de ritmo, pelos teclados reverberantes e pelo contracanto de Alain Lubrano.

Balada triste e romântica, “Moments” é uma das duas cantadas em um inglês do álbum juntamente com o pop quase tribal “So Many Things” – ambas não coincidentemente muito parecidas com o som da Everything But the Girl, uma vez que a inglesa Tracey Torn certamente tem em Françoise uma grande inspiração no modo de cantar e compor. Já “Souir de Gala” é um dos belos exemplos da canção pop hardyana, com versos muito melodiosos e visivelmente composta ao violão, embora o piano faça a marcação enquanto a guitarra solta frases pontuais. A voz dela, aliás, sempre suave, bem colocada, sensual. Sem percussão, apenas sob teclados e efeitos, “Sur Quel Volcan?” é outra que merece muita atenção. Interrogativa e não menos reflexiva, a letra diz: “Eu peço emprestado passagens, becos/ Eu pego mensagens, segredos/ Neste espaço de filigrana/ Eu veria um pedaço da sua alma?/ Em qual vulcão/ Vamos dançar/ Você e eu/ A que custo?/ Quem vai queimar lá/ Você ou eu?”.

O jazz com traços franceses, que mestres como Henri Salvador e Francis Lai legaram à música ocidental, vem na gostosa “Grand Hôtel”. A linha jazzística permanece em “La Folie Ordinaire”, que antecipa a potente – e fantasticamente melódica – “Un Air de Guitare”, em que Françoise canta com urgência os versos, os quais fraciona em três instantes bem marcados. O violão, constante e premente, ganha a parceria da dona da música, a “guitare”, tocada pelo filho Thomas Dutronc. Que baita música! Já na tensa “Tard Dans La Nuit…” – que lembra os temas densos de Nico –, Françoise fala das dores e angústias que a noite esconde. “Ela não é quem deve ser culpada/ Tantos sonhos se dissipam/ É melhor se esconder nas sombras/ As ruas não são seguras/ Atrás das portas blindadas/ Cães latem impiedosamente/ Ninguém pôde dizer/ De onde vieram os golpes/ Tarde da noite”.

Finalizando, mais uma preciosidade: “Côté Jardin, Côté Cour”. Lindo refrão: melodioso, elegante, suave e intenso ao mesmo tempo. A faixa se liga diretamente com a segunda versão de “Tant De Belles Choses”, que ressurge para terminar o disco de maneira imponente. E embora Françoise tenha lançado ainda outros quatro bons trabalhos até o fim da vida, este parece melhor representar a si e ao país ao qual trazia o radical no nome. Com 20 anos de antecedência à própria despedida, ela versa, concordando com aquilo que Caetano disse, a seguinte frase: “O amor é mais forte que a morte”. Nada além da mais pura verdade quando se fala de uma artista imortal como Françoise Hardy.

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FAIXAS:
1. "Tant De Belles Choses" (Pascale Daniel/ Alain Lubrano) - 4:02
2. "À L'ombre De La Lune" (Benjamin Biolay) - 3:38
3. "Jardinier Bénévole" (Lubrano) - 4:02
4. "Moments" (Perry Blake/ Marco Sabiu) - 3:31
5. "Soir De Gala" (Thierry Stremler) - 2:46
6. "Sur Quel Volcan?" (Daniel) - 3:08
7. "So Many Things" (Blake/ Sabiu) - 3:29
8. "Grand Hôtel" (Stremler) - 3:13
9. "La Folie Ordinaire" (Ben Christophers) - 2:32
10. "Un Air De Guitare" (Françoise Hardy)  - 3:58
11. "Tard Dans La Nuit…" (Daniel/ Lubrano) - 3:27
12a. "Côté Jardin, Côté Cour" (Lubrano) - 4:10
12b "Tant De Belles Choses (Version)" (Daniel/ Lubrano) - 3:58

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Daniel Rodrigues

segunda-feira, 24 de julho de 2023

Emílio Santiago & João Donato - “Emílio Santiago Encontra João Donato” (2003)

 

“João Donato é o maior músico do Brasil”
Tom Jobim

"Emílio Santiago é a voz do Brasil"
Roberto Menescal 


Não é errado dizer que “Emílio Santiago Encontra João Donato” reúne os dois maiores músicos brasileiros de todos os tempos. Foi Tom Jobim quem, do alto de sua autoridade de Maestro Soberano, disse isso de João Donato. Já sobre Emílio Santiago, não apenas amigos e parceiros do calibre de Roberto Menescal como até a ciência comprovam tal teoria. Conforme análises técnicas de sua voz por fonoaudiólogos, o cantor, por razões anatômicas e físicas, tinha a voz mais "perfeita" do Brasil. Se existem controvérsias ou subjetividades para ambas as avaliações, há de se considerar também que são muito respeitáveis. Independentemente se são realmente os melhores, o fato é que Donato, compositor, arranjador e multi-instrumentista, junto com Emílio, o intérprete favorito dos colegas, só podia resultar em um primor.

Realizado em 2003, 10 anos antes da morte prematura de Emílio, aos 67, e 20 da do mais longevo Donato, recém-falecido aos 88, o disco que reúne estes dois talentos incontestes é um presente deixado por ambos para a posteridade. A modernidade das melodias e harmonias de Donato, que hibridizou a essência da bossa-nova ao jazz latino através do toque sincopado do piano, ganha, aqui, o revestimento ideal na voz de Emílio. A sintonia, aliás, vem de muito tempo. No primeiro disco do cantor carioca, de 1975, é Donato que arranja e toca piano em boa parte, fora a autoria de “Bananeira”, esta última, inclusive, o tema que abre aquele álbum. Ou seja: Donato está na trajetória musical de Emílio desde o começo. Depois disso, nunca se perderam de vista. Emílio gravou o amigo acreano várias vezes, entre elas em 1977, no disco “Comigo É Assim”, chamando-o para arranjar e tocar “Nega”, ou para participações especiais no DVD “De um Jeito Diferente”, de 2007. 

O esmero de “Emílio Santiago Encontra João Donato” já começa pelo repertório: 14 temas de autoria de Donato. Sejam somente dele ou com parceiros da mais alta classe da MPB, de certa forma funcionam como uma amostra da trajetória compositiva de Donato ao longo daqueles então 54 anos de carreira. Caso de “Vento No Canavial”, que abre o álbum entregando já de pronto tudo aquilo que este se propõe. Dando a largada, um rico arranjo de metais característico de Donato, tomado de bom gosto na escolha das notas e alternâncias entre os sopros. A fineza sem igual da voz de Emílio, na sequência, entra para cantar os versos do irmão e corrente parceiro musical de Donato, Lysias Ênio: “Vento no canavial/ Sopra uma saudade assim/ Vento que vem me contar/ Que você não gosta mais de mim”. O toque do piano de Donato, algo sambado e caribenho ao mesmo tempo, também é uma marca inconfundível.

“E Vamos Lá”, de Donato e Joyce Moreno, sensualiza uma rumba que faz Emílio subir ao palco para gingar com a voz, brincando com modulações e tempos, o que fazia com maestria. Já em “E Muito Mais”, outro clássico de Donato e Ênio, vem novamente forte o latin jazz muito bem aprendido por Donato dos tempos de Estados Unidos e na convivência com músicos como Mongo Santamaría, Tito Puente e Bud Shank. O casamento harmonioso do toque do piano com o dos metais é pura classe, sem falar na adequação do vocal de Emílio, simplesmente perfeito.  

O bolero romântico “Nunca Mais” dá uma diminuída no ritmo da música, mas não do coração. Que beleza esta parceria de Donato com Arnaldo Antunes e Marisa Monte, top 5 entre as canções de autoria da carreira dos três. Feita para a voz de Marisa, que a gravou um ano antes em “Managarroba”, de Donato, aqui é Emílio, no entanto, que rouba para si a música. Mais duas da dupla Donato e Ênio: o irresistível cha-cha-cha “Então Que Tal”, rumbado e apaixonado; e o clássico “Até Quem Sabe”, faixa do célebre disco de Donato “Quem é Quem”, de 1972, quando se ouviu pela primeira vez a voz doce e pequena do autor numa gravação. Aqui, no entanto, não precisa, pois Emílio, senhor dos microfones, dá o devido tom a esta triste canção de despedida (“Até um dia, até talvez/ Até quem sabe/ Até você sem fantasia/ Sem mais saudade”).

Outro clássico do cancioneiro de Donato diversas vezes revisitado por ele é “Sambolero”, cuja original, somente instrumental, data de 1965. Noutro patamar, contudo, a letra de Carmen Costa, incluída nos anos 90, ganha o aveludado do vocal de Emílio, que desvela os versos no gogó: “Quero voltar/ A ver meu céu/ A ver meu sol, minhas estrelas a brilhar”. Já em “Everyday (A Little Love)”, num inglês perfeito, o cantor faz revelar um jazz ainda mais classudo e Broadway, desta vez acompanhando apenas o piano de Donato. 

Para “Os Caminhos” (com Abel Silva), Donato põe novamente os lindos arranjos de sopros atuando no ponto médio da arquitetura sonora, a qual é tão sofisticada e equilibrada formalmente, que dá liberdade para os músicos efetuarem sutis variações sem saírem da escala. Mesma observação para outras duas com Ênio: a animada “Pelo Avesso”, misto de Havana e Zona rural do Rio de Janeiro, e “Mentiras”, mais uma de “Quem é Quem”. Porém, se naquela ocasião quem a canta é Nana Caymmi num samba-canção melancólico, nesta nova versão Donato põe Emílio para deslizar sua vocalidade sobre um suingue funkeado semelhante aos do colega Arthur Verocai, outro craque dos arranjos na música brasileira.

Igual ao que Caetano Veloso fez quando escreveu e tocou “Surpresa” com Donato para seu “Cores Nomes”, em 1982, Emílio canta-a também somente sobre as notas salpicadas do teclado. A letra, pequena e sensual, diz assim: “Que surpresa/ Beleza/ Luz acesa/ Certeza/ Que saudade/ Verdade/ Já chegou/ Então/ Vem cá”. Se na primeira havia o timbre límpido do baiano, agora ganha-se na carga interpretativa de Emílio. 

Quase fechando, outros duas de Donato com parceiros. Primeiro, noutra com Arnaldo na não menos malemolente e a mais recente do repertório “Clorofila Do Sol (Planta)”. Mas claro, não podia faltar ele, que ficou para o gran finale: Gilberto Gil, aquele com quem Donato escreveu algumas de suas mais célebres canções, como “Emoriô”, “Ê Menina” e a própria “Bananeira”, o pontapé inicial da carreira de Emílio nos anos 70. Neste disco, porém, a escolhida foi outra clássica, e que não podia ser escolha melhor: “A Paz”. Emílio, que já havia capturado para si “Nunca Mais”, impõe novamente a mesma autoridade, dando à “Leila IV” – título da original da música, de 1986, quando ainda não havia ganhado letra de Gil e mudado de nome – a dimensão exata do intérprete: emocional, técnica, sensível. Perfeita. 

Que se trata do melhor disco brasileiro de todos os tempos, talvez seria exagero dizer. Mas que este trabalho marca o encontro de dois ases raros e irrecuperáveis, não o que negar. Completando 20 anos deste lançamento e 10 da morte de Emílio, a recente despedida de Donato faz evidenciar o quanto a música brasileira perdeu em riqueza nestas últimas duas décadas, seja na composição e instrumentalização, no seu caso, quanto na interpretação em relação ao colega. “Emílio Santiago Encontra João Donato” é, acima de tudo, um exemplar lapidado de onde a MPB chegou em termos de sonoridade, estética e inspiração. Como dizem os versos da canção, sem semear fantasia ou melancolia, o fato é que “nunca mais” haverá uma comunhão assim, de tamanho talento e representatividade. Nunca mais, nunca mais, nunca mais.

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FAIXAS:
1. “Vento No Canavial” (João Donato, Lysias Ênio) - 2:41
2. “E Vamos Lá” (Joyce, Donato) - 2:57
3. “E Muito Mais” (Donato, Ênio) - 2:52
4. “Nunca Mais” (Arnaldo Antunes, Marisa Monte, Donato) - 3:53
5. “Então Que Tal” (Donato, Ênio) - 4:03
6. “Até Quem Sabe” (Donato, Ênio) - 3:09
7. “Sambolero” (Carmen Costa, Donato) - 3:15
8. “Everyday” (Donato, Norman Gimbel) - 3:04
9. “Os Caminhos” (Abel Silva, Donato) - 3:42
10. “Pelo Avesso” (Donato, Ênio) - 2:53
11. “Mentiras” (Donato, Ênio) - 4:00
12. “Surpresa” (Caetano Veloso, Donato) - 2:14
13. “Clorofila Do Sol (Planta)” (Antunes, Donato) - 3:10
14. “A Paz” (Gilberto Gil, Donato) - 4:11



Daniel Rodrigues

segunda-feira, 23 de julho de 2018

Morcheeba - "Big Calm" (1998)



"Seria impossível para nós não 
soar como Morcheeba." 
Ross Godfrey

Os anos 90 foram, em termos de música pop, muito bem resolvidos, obrigado. Além dos remanescentes das gerações anteriores ainda a pleno vapor, como Peter Gabriel, Sting, The Cure, U2, Madonna, R.E.M. entre outros, houve uma série de bandas e artistas oriundos da última década do século XX que souberam aproveitar o melhor dos que os antecederam e valerem-se, igualmente, das novas possibilidades técnicas e sonoras de então. Se antes não era uma realidade comum o incremento dos elementos do hip hop ou da música eletrônica, por exemplo, ao pop-rock noventista isso estava na veia. Tinha Smashing Pumpkins, que sabia oscilar do heavy metal à mais delicada balada; a Portishead, original mistura de gothic punk, rap e dream pop com pitadas jazz; a The Cranberries, verdadeiros seguidores de Smiths e Cocteau Twins; a Jamiroquai, dignos da linhagem jazz-soul; a Massive Attack, onde o trip hop encontrava a medida certa da psicodelia indie rock e o clubber; ou a Air, a engenhosa dupla francesa que vai do clima das trilhas dos anos 50 a eletro-pop num passo.

Mas uma dessas bandas parecia unir todas as qualidades de suas contemporâneas. Tinha os samples e scratches do rap; a batida druggy do dub; a voz feminina adocicada; uma guitarra criativa e hábil; a atmosfera soturna; as texturas eletrônicas; os hits cantaroláveis. A dois anos de fechar a década de 90, os ingleses do Morcheeba catalisavam tudo isso em “Big Calm”. Completando 20 anos de lançamento, o segundo álbum da banda liderada pela cativante cantora Skye Edwards e os talentosos irmãos Paul, DJ, e Ross Godfrey, guitarrista e vários outros instrumentos, é certamente um dos mais bem acabados que a música pop já produziu.

Acordes de baixo e guitarra wah-wah anunciam a entrada da voz macia de Skye, que diz os versos: “Flocking to the sea/ Crowds of people wait for me” (“Flocando para o mar/ Multidões de pessoas esperam por mim”). É “The Sea”, um dos hits do disco. Uma batida funkeada arrastada, peculiar do estilo downtempo, entra para ajudar o arranjo a se avolumar aos poucos. Ao final, já se somaram à cozinha scratches e uma orquestra de cordas, além de solos de guitarra de Ross. Pode-se compará-la em clima e estrutura a “All I Need”, da Air, e “It’s A Fire”, da Portishead. A marcante faixa de abertura é seguida da brilhante "Shoulder Holster", esta, um funk bem mais empolgado e onde aparecem pela primeira vez as influências indianas, seja nos samples de vozes, seja no som de cítaras e percussões típicas da terra de Ravi Shankar.

Outra faceta da Morcheeba está em "Part of the Process", que é o folk-rock. O violão de cordas de metal de Ross segura o riff, enquanto sua slide guitar solta frases em todo o decorrer do tema. Igualmente, o violino bem country de Pierre Le Rue. Tudo, claro, não sem diversos efeitos eletrônicos. O refrão, daqueles que pegam no ouvido, vem numa batida funky, enquanto Skye canta: “It's all part of the process/ We all love looking down/ All we want is some success/ But the chance is never around”. Num estado parecido, mas injetando a sonoridade indiana, a boa instrumental "Diggin' a Watery Grave" funciona quase como uma vinheta em que Ross destrincha sua habilidade com a cítara e uma guitarra pedal steel muito country, aproximando oriente e ocidente.

Retomando a atmosfera viajandona do downtempo de “The Sea”, outro hit de “Big Calm”: "Blindfold".  Mais que isso: exemplo de perfect pop. Acerto do início ao fim: estrutura melódica, composição, execução, arranjo, produção.  A negrinha Skye dá um show de vocal com sua voz afinadíssimo e cujo timbre suave, quase frágil, mas com uma pitada de rouquidão que a aproxima das cantoras da soul. Ao final, mais uma vez as cordas adensam a emotividade da canção. E outro refrão de cantarolar junto com ela:  “I'm so glad to have you/ And it's getting worse/ I'm so mad to love you/ And you evil curse.” 

Os sucessos (e os clássicos) de “Big Calm” não param: na sequência, vem "Let Me See", misto de trip hop e canção pop. Arrebatadora. Aqui, o grande responsável pela melodia é Paul Godfrey, visto que a música se constrói a partir dos beats e scratches criados ele. Já Skye, de tão bem que está, exala sensualidade. Dá pra viajar no seu canto lânguido e penetrante. Detalhe para a flauta doce que executa os solos do veterano Jimmy Hastings.

A outra “instrumental” do disco, “Bullet Proof”, mostra o quanto a Morcheeba é competente com a melodia e a instrumentalização. Trip hop típico, com samples psicodélicos e descontínuos que formam a base, tem como diferencial – além dos scratches do DJ convidado First Rate, que montam uma espécie de linha vocal com as vozes sampleadas – a brilhante guitarra de Ross. Ele mostra ser de uma linhagem de guitarristas britânicos do pós-punk, como Robin Guthrie e Johnny Marr: criativos e habilidosos, mas que usam o instrumento a serviço da ideia musical (efeitos, ambiências, texturas, etc.), sem necessariamente recorrer a rebuscamentos de solos extensos e desnecessários.

Já as baladas "Over and Over" e a rascante "Fear and Love” parecem ter saído de alguma sessão de gravação do Abbey Road em que George Martin arregimenta uma orquestra sobre a concepção musical de Lennon e McCartney. Românticas, têm, antes de mais nada, melodias caprichadíssimas. "Fear and Love”, em especial, conta com um violão que sustenta a base enquanto as cordas e metais formam o corpo sonoro ao fundo, fazendo lembrar bastante o arranjo também de um clássico do pop anos 80: “Please, Please, Please, Let Me Get What I Want”, dos Smiths. Precisa de mais referências que estas?

Mais uma joia, o reggae “Friction”, assim como Jamiroquai também cumprira com sua “Drifting Alone”, faz uma deferência aos mestres jamaicanos do gênero – ainda mais pela novamente linda voz de Skye, uma oferenda ao deus Jah. O disco finaliza com a lisérgica da faixa-título, em que concentram em 6 minutos o que há de melhor da banda. Sobre uma base em compasso 2/2, os irmãos Godfrey deitam e rolam. Paul, com a programação rítmica funk cadenciada, e, principalmente, Ross, que comanda os sintetizadores e a guitarra wah-wah, com a qual dá um verdadeiro show. O rapper Jason Furlow, coautor da música, engendra seus versos rappeiros enquanto o DJ Swamp lança scratches ao psicodélico tecido sonoro. Arrematando, Skye ainda faz suaves melismas, e o disco acaba num clima apoteótico.

Mesmo sendo um extra da versão em CD, "The Music That We Hear", outro hit, vale muito ser referida. Espécie de ula-ula estilizado, traz as síncopes do ritmo havaiano para dar forma a outro perfect-pop em que, mais uma vez, a melodia de voz – e a própria voz! – de Skye encantam. Com esta, termina um dos discos mais impecáveis da música pop, certamente um dos 10 melhores da sua década. Capaz de sintetizar aquilo que de bom ocorria à sua volta, a Morcheeba concebia assim, o seu estilo. Psicodélico, chapado (afinal, o pessoal gostava da erva:“morcheeba” significa “maconha” e “big calm” faz referência ao efeito tranquilizante da droga) e, acima de tudo, musicalmente rico. O que dizem os versos de “The Music...” parecem até, de certa forma, traduzi-los: “A música que fazemos curará todos os nossos erros e nos guiará”.

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FAIXAS:
1. "The Sea" – 5:47
2. "Shoulder Holster" – 4:04
3. "Part of the Process" – 4:24
4. "Blindfold" – 4:37
5. "Let Me See" – 4:20
6. "Bullet Proof" – 4:11
7. "Over and Over" – 2:20
8. "Friction" – 4:13
9. "Diggin' a Watery Grave" – 1:34
10. "Fear and Love" – 5:04
11. "Big Calm" – 6:00 (Godfrey/Godfrey/Edwards/Jason Furlow)
12. "The Music That We Hear" – 3:49 (bonus track)
Todas as composições de Paul Godfrey, Ross Godfrey e Skye Edwards, exceto indicada

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OUÇA O DISCO:
Morcheeba - "Big Calm"


Daniel Rodrigues