Duas variações da capa do álbum |
"Quando você morrer, e, em
seguida,
abrir os olhos, se não estiver tocando ao fundo essa música,
provavelmente você está indo para o lugar errado."
Robert Christgau,
crítico musical
sobre “Blue Bell Knoll”
Era uma vez uma falange de anjos que, de saco cheio da exigência de
serem angelicais o tempo todo, se revoltaram e desceram dos Céus. Desafiadores,
eles vieram cair na Terra de propósito, justo neste planetinha atrasado dentre
os tantos bilhões que podiam escolher na galáxia. Claro que foi, justamente,
para desafiar as divindades. Se aqui achariam a inveja, a tristeza, a ganância,
a incompreensão, a violência, era exatamente onde suas almas jovens e rebeldes
queriam ficar. Como filhos desgarrados que precisavam se autoafirmar, puseram
toda a revolta para fora. E como se não bastasse, inventaram de formar uma
banda de rock, para desespero dos santos. Queriam seguir Lúcifer e não o chato
do Gabriel. Assombro geral no firmamento.
No começo, foi o punk. Jogaram fora as auréolas e trajaram roupas de
segunda mão rasgadas e sujas. Muito couro duro e escuro; nada de sedas leves e
brancas como antes. Na música que criavam, todo esse inconformismo era transmitido
na forma de depressão. Compunham canções soturnas, carregadas, chorosas, em que
a guitarra mais parecia gemer pedindo clemência. O baixo, grave em sonoridade e
intenção, e a bateria, marcada, repetindo uma interminável marcha fúnebre. Eram
chamados não apenas de punks, mas de gothic-punks,
ou seja, os punks de espírito dark. E
na voz da anja, dor. Muita beleza e afinação divina. Mas dolorida. Gravaram o
primeiro disco assim, em 1982, chamado “Garlands”, onde descarregaram as mágoas
e aflições que vinham guardando desde casa, quando romperam com o Pai em busca
do reconhecimento de si mesmos.
Acontece que uma vez anjo, sempre anjo. Os desgarrados, à medida que
iam produzindo, iam também, pouco a pouco, amenizando a raiva. E, não
coincidentemente, voltando a serem cada vez mais angelicais. O bom “Head Over
Heells”, segundo deles, de um ano depois, é o meio termo entre esses dois polos
de estado evolutivo. Avançam mais um pouco no sentido da suavização e chegam já
praticamente renovados no referencial "Treasure", de 1984, que, embora lírico,
ainda guarda um pouco da densidade dark
dos anos iniciais. Já com as asas de volta, depois do astral “Victorialand”
(1986), atingem o ápice da manifestação de suas almas celestiais com “Blue Bell Knoll”. Os querubins em
questão são Elizabeth Fraser (voz), Robin Guthrie (guitarras, teclados) e Simon
Raymonde (baixo): os escoceses do Cocteau Twins.
Maduros tecnicamente e afeitos aos estúdios da 4AD, eles mesmos produzem
um álbum altamente delicado e sofisticado, bastante marcado pelas texturas
espaciais dos teclados e pelas programações de ritmo. É assim que começa a
faixa-título, numa das aberturas de disco mais belas da discografia do pop britânico dos anos 80: um ataque de
teclados que lembra o som de cravo junto com a guitarra e bateria só no bumbo e
chipô. Camadas sonoras preenchem o espaço. Não demora, subindo um tom, entra a
deslumbrante voz de Liz Fraser articulando de improviso a letra em cima de uma
melodia vocal. Já começa nesse nível. Em seguida, a bonita “Athol-Brose” antecipa
uma das melhores do disco: “Carolyn’s Fingers”, encantadora, que, se for
considerar o tema, essa tal Carolyn deve realmente ter dedos mágicos. Brit-pop clássico, com a tradicional
batida funkeada em tempo 2/3, mas com o também tradicional riff twiniano. E o mais relevante: Liz Fraser dando um show de
vocal, adicionando uma carga erudita ao pop-rock
como poucas vezes se tinha visto. Deste jeito, jamais.
Guthrie, um guitarrista de qualidade, como boa parte de sua geração (Will Sergeant, Barney Sumner, Daniel Ash, irmãos Reid) não chegava aos pés em
técnica de um Jimmy Page, Eric Clapton ou um Jeff Beck (no pós-punk, não raro o baixista era mais hábil que o guitarrista na
banda). Porém, sua criatividade para compor e aproveitar os recursos sensoriais
e de textura que as cordas lhe proporcionam é gigantesco. Foi a mente inventiva
e observadora de Guthrie que cunhou uma rica assinatura melódica para a banda.
Ele sintetizou uma espécie de “base de riffs”
para o Cocteau Twins, a qual transmite, em notas geralmente de som cintilante,
exatamente esse espírito suave e etéreo que lhes é característico. Trata-se de
uma combinação de notas em tempo 7/7 que se assemelha ao andamento de uma valsa
mas que, avaliando bem, é bastante hipnótica visto sua estrutura cíclica em
arpejo. Com essa base, Guthrie é capaz de criar infinitos riffs, infinitas combinações valendo-se da variação de tom, das
texturas, dos arranjos, dos timbres e por aí vai. Como um pintor que se vale
das mesmas tintas para pintar quadros diferentes. É tão inteligente e marcante
que pode até nem conter todas as 7 notas (6, 5 ou até 4 apenas), mas percebe-se
o mesmo esqueleto ao se ouvir. O que apareceu pela primeira vez em 1983, na
linda “Sugar Hiccup” (e que já vinha sendo já largamente usada por eles, basta
ouvir “Pandora”, do “Treasure”, ou várias de “Victorialand”), é claramente
repetido em “Carolyn’s Fingers”, na melodiosa "Suckling the Mender",
cujo arranjo vocal do refrão a faz ganhar cores orientais, e em "Spooning
Good Singing Gum", outra linda, que chega a pôr o ouvinte para voar.
O estilo Ethereal criado pelos Twins, impressionista e sofisticado, é
fruto de uma improvável mescla de pós-punk,
ambient music, new age, folclore celta e música barroco-renascentista, Isso
é evidente em "The Itchy Glowbo Blow" e noutra balada, "A Kissed
Out Red Floatboat", com seus sons espaciais e um lindo refrão, onde Liz,
em overdub, põe o tom lá em cima.
“Ella Megalast Burls Forever” é outra magnífica balada que evoca, aliás, tanto o
sentido moderno do termo (canção sentimental em andamento lento) quanto sua
acepção primeira, medieva, de uma forma de poesia lírica em estrofes. Chega a
ser litúrgica de tão elevada, pois faz vir à mente suntuosas igrejas em que o
som se propaga às alturas. Os ecos, as sobreposições e os contracantos só fazem
aumentar essa sensação.
A voz de Liz Fraser, aliás, é um caso à parte. Ela não ficou conhecida
no meio pop-rock alternativo como “a
voz de Deus” por acaso. Talvez a melhor pupila de Cathy Barberian – mas também
bastante inspirada em Meredith Monk, Joni Mitchell e nos intrincados arranjos
de voz de Philip Glass – Liz foi, desde o início dos Twins, o maior destaque da
banda. Soprano – diferente de Barberian, uma mezzo –, foi aperfeiçoando a técnica e soltando seu canto até
chegar ao status que adquiriu. A
capacidade de alcance dos agudos e a fluência pelas escalas são típicas de uma
voz treinada e, acima de tudo, emocionalmente livre. “Cico Buff”, balada ambient muito terna, e "For Phoebe
Still a Baby", cheia dos ornamentos vocais, foram escritas para que ela as
conduzisse. Até o conteúdo do que ela canta tem sentido superior quando cria
melismas e inventa palavras ininteligíveis e sem sentido semântico nenhum,
apenas experenciando a musicalidade da pronúncia e dos encadeamentos. Não é
possível – nem necessário – entender o significado, pois a música é sentida na
essência, e essa é a própria concretização da linguagem universal da arte
musical. Provavelmente, seja esse o idioma dos anjos.
Depois de “Blue...”, a sina desses anjos na Terra permaneceu no caminho
de iluminação e de cores, influenciando diretamente bandas como Lush, Stereolab, My Bloody Valentine, The Cranberries, The Moon Seven Times, entre outras. Nos anos
seguintes, vieram os também ótimos “Heaven or Las Vegas” (1990, considerado
para muitos o melhor do grupo), “Four-Calendar Café” (1993) e “Milk &
Kisses” (1998), este, o último antes da dissolução após apenas nove discos de
estúdio (contando com o em parceria com o compositor vanguardista Harold Budd,
“The Moon & The Melodies”, de 1986).
Nessa trajetória, eles viram que tinham razão quando se autoexpurgaram,
pois o mundo precisa, sim, de um pouco de Satanás para sair do conformismo e
quebrar barreiras. O Diabo, afinal, é o pai do rock. Mas compreenderam,
igualmente, que havia uma inquestionável beleza naquilo que Gabriel representava
– e que ele não era o chato como eles pintavam. Foi em “Blue Bell Knoll” que aprenderam
isso e a não fugirem de seus próprios destinos, e que aceitar e elaborar suas
próprias naturezas era o caminho mais acertado. Isso vale tanto para anjos
quanto para pessoas. Quem sabe, então, não foi este, desde o início, o designo
divino aos Twins quando vieram em missão: ensinar aos humanos que o importante
é seguir o próprio coração?
vídeo de "Carolyn's Fingers" - Cocteau Twins
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FAIXAS:
1. "Blue Bell
Knoll" - 3:24
2.
"Athol-Brose" - 2:59
3. "Carolyn's
Fingers" - 3:08
4. "For Phoebe
Still a Baby" - 3:16
5. "The Itchy
Glowbo Blow" - 3:21
6. "Cico
Buff" - 3:49
7. "Suckling the
Mender" - 3:35
8. "Spooning Good
Singing Gum" - 3:52
9. "A Kissed Out
Red Floatboat" - 4:10
10. "Ella Megalast Burls Forever" - 3:39
todas as composições de autoria
de Fraser, Guthrie e Raymonde.
por Daniel Rodrigues