em texto da contracapa do disco
É sabido que o Brasil é um país sem memória, ainda mais quando se trata daquela escrita pelo lado menos favorecido da sociedade, o povo. Num país onde cultura não raro é vista em segundo plano, principalmente a popular, não é de se estranhar que certos acontecimentos importantes desta não sejam nem computados nos anais. Ocorreu bastante disso, por exemplo, com o ritmo mais caracteristicamente brasileiro: o samba. Muitos que curtem seu sambinha hoje descompromissadamente, seja na balada ou no Spotify, nem imaginam que, há bem pouco tempo historicamente falando, este precisava entrar na fila antes de qualquer outro gênero, tanto nacional quanto internacional. Fenômenos como a extinta Princesa AM, rádio de Porto Alegre fundamental na resistência da cultura negra num estado “branco” como o Rio Grande do Sul, eram relegados a mera “coisa de preto”. O samba, assim, marginalizado no passado, mesmo com a explosão de grandes compositores a partir dos anos 60, responsáveis por sua modernização (leia-se Martinho da Vila, Paulinho da Viola, João Nogueira, Beth Carvalho, Jorge Aragão, entre outros), nunca havia decolado de fato na mídia. Isso, até um fenômeno aparecer na metade dos anos 80.
Sopros de resistência, entretanto, sempre houve. Tinha Jovelina Pérola Negra, Leci Brandão, Alcione, Almir Guineto, Bezerra da Silva e a galera do Cacique de Ramos: Fundo de Quintal, Originais do Samba, entre outros, que mantinham o samba de raiz em alto nível. Porém, precisou que aparecesse um jovem franzino e de voz gostosa, ligado à tradição do samba e frequentador de tudo quanto é pagode na Rio de Janeiro desde cedo. Trazendo algo “especial”, como lhe credita a madrinha Beth Carvalho, Zeca Pagodinho unia a nova cara do samba ao lirismo dos bambas do passado para, em 1986, lançar seu histórico primeiro disco. Se comparado ao que os sambistas de então já faziam, não há novidade em “Zeca Pagodinho”: estão ali o partido-alto clássico, a malandragem do morro e a batucada tocada nos terreiros da periferia. Samba urbano em essência. Mas é justamente esse “quê” peculiar de Zeca – hoje, mais de 30 anos depois, consagrado como um dos maiores artistas da música brasileira – que fez do disco um estrondoso êxito, com mais de 1 milhão de cópias vendidas e hits em todas as rádios do Brasil (não só na guerreira Princesa desta vez).
Sintonizado com a modernidade e a tradição, Zeca convoca compositores da nova geração, Arlindo Cruz, Nei Lopes e Mauro Diniz, ilustres desconhecidos da favela, como Beto Sem Braço, Sereno e Beto Gago, e os soma à velha guarda de Monarco e Ratinho. O resultado é um álbum em que todas as suas 12 faixas estouraram, feito que nem um “Cabeça Dinossauro” dos Titãs ou “Revoluções por Minuto” do RPM conseguiram com tamanha eficácia naquela década. A começar pela brilhante “S.P.C.”, parceria dele com Arlindo. Um dos mais inspirados temas do samba brasileiro, abre o disco trazendo a caprichada melodia característica dos dois, com a tônica no tom alto, que faz com que Zeca precise, já em sua estreia solo, mostrar sua capacidade vocal ao fazer as modulações em “Fá” com desenvoltura. A letra, igualmente, é um primor. Engraçada, cronística, sociológica. Conta a desavença conjugal de um casal da então classe baixa brasileira daquele Brasil de Planos Cruzados que, separando-se, entra em conflito por causa de roupas compradas no nome dela. “Precisei de roupa nova/ Mas sem prova de salário/ Combinamos, eu pagava/ Você fez o crediário/ Nosso caso foi prá cova/ E a roupa pro armário.” Agora, ele quer dar o troco deixando de pagar os carnês para queimá-la na praça. “E depois você quis manchar meu nome/ Dentro do meu métier/ Mexeu com a moral de um homem/ Vou me vingar de você, porque!/ Eu vou sujar seu nome no seu S.P.C.”. Quer situação mais corriqueira na vida da classe pobre brasileira do que essa? Genial.
O alto nível musical não só se mantém como aumenta na sequência com outra canção que virou um clássico na voz de Zeca: “Coração em Desalinho”. Samba-enredo tristonho e romântico dado de presente a ele pelo mestre Monarco, antes, quase foi parar no repertório de Martinho da Vila. Mas o velho portelense achou melhor alcançá-la ao promissor Zeca, que desde pequeno o perseguia pela rua querendo aprender-lhe sambas da antiga. A escolha não podia ser mais acertada. Além de ganhar uma interpretação brilhante, a música virou um tema indispensável nos shows de Zeca até hoje e em qualquer função na quadra de Madureira. A letra é digna dos melhores poetas lusófonos: “Dei afeto e carinho/ Como retribuição/ Procuraste um outro ninho/ Em desalinho/ Ficou o meu coração/ Meu peito agora é só paixão/ Meu peito agora é só paixão...”. No final, quando o tom sobe, elevando a emotividade, é impossível não se comover: ”Agora/ Uma enorme paixão me devora/ Alegria partiu, foi embora/ Não sei viver sem teu amor/ Sozinho curto a minha dor”.
Duas de Sereno, “Jogo de Caipira”, partido-alto em parceria com o craque Nei Lopes (“Isso aqui tá um jogo de caipira/ Quem tem bota banca, parceiro/ Quem não tem, se vira...”), e a romântica “Cheiro de Saudade”, esta, dele com Mauro Diniz (filho de Monarco), que fecha o lado A do formato LP. Antes, entretanto, dois outros sucessos: “Se Eu For Falar de Tristeza” (“Sei que o amor oferece tanta coisa boa/ Eu não vou me preocupar com uma coisinha à toa...”) e a maravilhosa “Quando eu Contar”, mais um partido-alto em que o cantor mostra seus dotes vocais. A rima ligeira e esperta, que remete ao samba-de-roda nordestino (”Iaiá, ô Iaiá/ Minha preta não sabe o que eu sei/ O que vi nos lugares onde andei/ Quando eu contar, Iaiá, você vai se pasmar...”) se adensa no clima de pagode muito bem captado na produção de Milton Manhães, seja pela sonoridade crua, pelo coro das pastoras ou pela descontração de Zeca comandando os microfones.
O partido-alto segue dando o tom no segundo lado com um pout-pourri arrasador, que emenda “Hei de Guardar teu Nome”, “Vou lhe Deixar no Sereno” e o domínio público “Macumba da Nêga". Daquelas que não deixam nenhuma roda de samba parada: é todo mundo chamando no pé! Em seguida, outro destaque do disco e mais um sucesso: “Casal Sem-Vergonha”. Na tonalidade alta típica de Arlindo, é um dos temas românticos mais verdadeiros já escritos na música brasileira, que retrata com docilidade e realismo a relação de um casal da classe baixa, que se desentende, tem ciúme, discute, mas se ama acima de tudo. “A minha vida é um mar de rosa em tua companhia/ Brigamos mil vezes ao dia/ Mas depois as brigas retorna a harmonia/ Às vezes ela é dengosa/ Às vezes é bicho de peçonha/ Sem vergonha/ Somos um casal sem vergonha”. Além da bela melodia, que rima estupendamente criativa que é “bicho de peçonha” com “casal sem vergonha”!
Outro dos nomes do samba moderno, Jorge Aragão, aparece na linda “Quintal do Céu” (“A luminosidade é a luz do nosso amor...”), mais uma que recebe um trato vocal de Zeca todo especial. Toques do samba rural na cadenciada “Cidade do Pé Junto” lembram Martinho, faixa antecessora de duas que, igualmente, tornaram-se clássicos do repertório de Zeca. A primeira é a sincopada “Judia de Mim”, de tamanho sucesso que virou tema de novela da Globo. Raro um brasileiro que não saiba cantar seu refrão: “Judia de mim, judia/ Se eu não sou merecedor desse amor”. O acerto da música não é coincidência, pois, além da letra e do refrão pegajosos, a melodia é rica e bem elaborada, fazendo com que harmonias mais rebuscadas do samba tradicional soem pop. O disco termina, obviamente, com hit: “Brincadeira Tem Hora”, outro infalível partido-alto, daqueles que incendeiam a roda de samba.
Honesta e bem acabada, a estreia de Zeca Pagodinho cumpriu aquilo que o amigo Arlindo lhe pedira: “fazer e segurar o seu sucesso”. Além de alçá-lo ao estrelato, o disco abriu as portas para que o samba, por tanto tempo perseguido, enfim, nunca mais deixasse de ser apreciado pelo grande público. Mauro Diniz, por sua importância e exemplo, considera-o “O” disco; Ubirany, do Fundo de Quintal, espanta-se ainda hoje: “Nunca vi 12 músicas tão bem gravadas e tão bem aceitas. Eu fui um desses que aceitei de coração”. Se a consequência natural foi a enxurrada de “pagodeiros” nos anos 90, não tem importância. O samba, gênero identificador da cultura brasileira, está aí hoje aceito, consolidado, inserido. E se uma joia como a rádio Princesa há muito não existe mais, ao menos, no tempo que viveu ajudou a escrever essa história em que Zeca é um dos protagonistas. Na prática, todos fizeram o que clamam os versos daquela velha canção: “Não deixe o samba morrer/ Não deixe o samba acabar”.