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quinta-feira, 3 de dezembro de 2020

"Sonata de Outono", de Ingmar Bergman (1978)


 

Não sei quanto a vocês, mas de minha parte, tem algumas coisas nas artes pelas quais eu tenho um certo respeito. Por mais ordinário que seja o ato de se ouvir uma música, ver um filme, ler um livro, para algumas obras ou seus autores, guardo uma certa reverência que, supostamente, segundo essa minha proteção, os resguarda de uma possível vulgarização. Por exemplo, quando estou escolhendo um disco pra ouvir, passando os dedos pelos LP's ou pela estante de CD's, se paro num "Sargent Pepper's...", num "Velvet Underground & Nico", num "Kind of Blue", não raro penso comigo, "Não, cara. Agora não. Esse tem que ouvir ouvindo, prestando atenção. Não lavando louça!". Uma obra de arte como essas não pode ser "usada" assim como se a vida estivesse seguindo normalmente. Se vou escolher o próximo livro, passando os olhos pela estante, se estanco num Saramago, num Dostoiévski, num Machado, mutas vezes penso, "Não. Agora, não. Deixa pra ler numa viagem, pra quando estiver com a cabeça mais tranquila, pra poder saborear cada linha."

Para filmes também acontece muito, tanto que muitas vezes opto por ver uma "porcaria", uma aventura de tiro-porrada-e-bomba ou um terror bem sanguinolento, para não assistir a algum longa de um grande diretor ou de uma temática mais complexa, exatamente para poder dedicar aquelas duas horas com integral atenção e carinho. Um dos diretores com quem isso mais acontece é Ingmar Bergman. Eu sempre penso duas vezes antes de ver ou rever um filme do Bergman. Parece que um filme dele é sempre mais que um filme e, por isso mesmo, sempre acabo me questionando se estou suficientemente preparado para aquilo. Essa minha reserva fez com que eu atrasasse a apreciação de diversos filmes de sua obra, que só vim a descobrir muito tarde, como é o caso de "Sonata de Outono" (1978), filme do qual eu ouvia muito falar mas que sempre deixava para depois e depois... Só o assisti há pouco tempo e, de fato, ele corresponde a tudo o que se falava sobre ele e justifica, segund meus critérios, toda minha precaução. É mais que um filme. Uma obra à qual o espectador tem que estar atento a cada nuance, a cada expressão, a cada traço de comportamento. Bergman conduz de uma maneira magistral o drama familiar em que uma filha, Eva, recebe, depois de sete anos de afastamento, a visita de sua mãe, Charlotte, em sua casa interiorana, onde vive com o marido e com a irmã Helena, uma jovem com necessidades especiais e que fora anteriormente internada pela mãe. O que poderia-se imaginar num primeiro momento e o que seria natural, como uma visita amistosa, carinhosa, repleta de saudades e gostosas lembranças, não é o que acontece em momento algum. Em momento algum o clima é agradável por mais que as duas, cada uma à sua maneira, tentem fazer com que a atmosfera fique mais 'leve'. Digo "cada uma à sua maneira", porque Eva, a filha, interpretada magnificamente por Liv Ulmann, embora tenha lá suas mágoas de infância, até gostaria de ter realmente um momento bom com a mãe e, de certa forma, acreditava que aquele reencontro pudesse proporcionar essa reaproximação. 

Acima, um momento que poderia ser agradável,
mãe e filha tocando piano, mas se transforma numa dura troca de acusações.
Abaixo, Charlotte, a mãe, forçando alguma leveza e simpatia
diante da filha Eva.

 
Mas o problema é que a mãe, Charlotte, uma pianista que sempre priorizou a carreira às família, vivida por Ingrid Bergman, numa atuação ainda mais espetacular que a de Liv Ulmann, e que lhe rendeu a indicação para o Oscar de melhor atriz, ainda que se esforce, disfarce, simule, não consegue demonstrar carinho e empatia. É uma pessoa fria, insensível, egoísta que já machucou muito a filha na infância e que agora, mesmo sem querer, continua ferindo, simplesmente porque é de sua natureza. Mais do que não saber ser mãe, de não aceitar abdicar de sua vida em nome de outras, Charlotte parece ser aquele tipo de pessoa que não sabe amar. E não somente aos outros, mas talvez até a si mesma.

O diretor conduz como bem entende as situações numa verdadeira montanha-russa de emoções, em cenas que vão de cordialidades a grosserias, de amabilidades a acusações ferrenhas, de sorrisos a lagrimas, atravessando a linha entre uma sensação e outra com rara sutileza e habilidade. A cena da conversa à noite, na insônia de Charlotte, é de tal modo tão envolvente que o espectador não consegue se desligar dela ou ficar indiferente. Cada posição de câmera, cada cor, cada movimento, é tudo pertinente e perfeito. Os closes de Bergman são um descortinamento das almas, eles vão no fundo do personagem, o que neste caso, em especial, pelas duas atuações impecáveis das protagonistas, ganha em intensidade e emoção. 

Um filme sobre pais e filhos que faz com que reavaliemos muito sobre nossas relações dessa ordem ou mesmo de outras naturezas e, até por isso mesmo, um daqueles filmes que é bom se assistir de novo e de novo. Certamente o farei, mas agora que já assisti, assim como outros de sua filmografia, "Sonata de Outono" entra naquela lista dos que, de tão bons, de tão relevantes, não dá pra assistir a qualquer hora.

Não é toda hora que se está preparado para um filme de Ingmar Bergman.

Rostos duros, expressões severas.
Bergman captava, como poucos, o interior em imagens.




Cly Reis


segunda-feira, 10 de outubro de 2016

" 'Crime e Castigo' : Graphic Novel" - adaptação para HQ do romance de Fiódor Dostoiévski - por David Zane Mairowitz e Alain Korkos - ed. L&PM (2016)



Normalmente me interesso por adaptações em quadrinhos para clássicos da literatura e não foi diferente quando me deparei numa livraria dessas da vida com "Crime e Castigo" do escritor russo Fiódor Dostoiévski em versão HQ.
A publicação embora bem acabada e caprichada, não conta com uma arte notável. Rostos e movimentos do ilustrador Alain Korkos carecem em alguns momentos de uma expressividade maior mas talvez por isso mesmo, quando resolve enfatizar estas expressões, o faz de modo quase exagerado, o que poderia ser considerado defeito se não acabasse tendo o interessante efeito, combinada à opção pelo preto e branco, de dotar sua obra de uma identidade visual que remete muito ao expressionismo alemão de Murnau e Wiene.
Esse visual sombrio é pano de fundo mais que apropriado para a suplício psicológico do atormentado Roskólnikov que em meio a problemas cotidianos comuns como falta de dinheiro, família, desigualdade,, tem que conviver com a inquietação de um vazio interior que o leva a formular ideias pouco recomendáveis, digamos assim. E á na identificação desses elementos cotidianos que reside a grande sacada dos elaboradores da graphic novel. Por certo a abordagem de questões sociais e humanas ainda hoje tão relevantes e tão atuais foram por certo encorajadores para que os adaptadores audaciosamente ambientassem a obra aos dias atuais, confirmando que os tormentos, anseios, questionamentos do jovem Roskolnikóv permanecem tão pertinentes quanto na época em que o romance original fora escrito. Mas o maior mérito da adaptação é o de conseguir sintetizar uma obra tão extensa e complexa, como é o caso de "Crime e Castigo", e pinçar com grande sabedoria momentos-chave onde os questionamentos filosóficos propostos por Dostoiévski são mais significativos e urgentes. A riqueza da obra permanece intacta.



Cly Reis