Noite gélida. A garoa fina que parece inofensiva mas que, não à toa é conhecida também como "chuva-de-molhar-bobo", castiga pacientemente os corajosos que atrevem-se a encarar a noite de inverno de Porto Alegre. Entre esses poucos valentes, caminha pela noite uma mulher que a julgar pela idade, pela fragilidade de sua compleição física, franzina, mirrada, não teria como suportar aquelas condições. Mas ela segue na noite, segue pelas ruas mal iluminadas. E não voltará para casa antes de encontrar o que procura. Seus olhos grandes e arregalados percorrem nervosamente cada canto, cada esquina.
"Chuvisco!", é o que se ouve num chamado agudo e esticado que rompe o silêncio da escuridão. É a mulher. Não, ela não faz confirmar a evidente situação climática daquele momento. Chuvisco é um nome. Chuvisco é seu gato.
"Chuviiiisco", chama mais uma vez.
Ela não cansa, não descansa, não desiste, percorre todas as rumas do bairro, bate de casa em casa, toca campainhas e logo vem dar na nossa casa. Nosso terreno em extensão é vizinho dos fundos do terreno onde mora, solitária ... ou melhor, apenas na companhia de Chuvisco.
A mãe do Chuvisco como costumávamos chamar, nem lembro se sabíamos mesmo o nome dela, nos provocava arrepios. A começar pelo seu aspecto esquálido, quase cadavérico, que transmitia uma sensação sinistra, mas muito também pelo fato de termos um conhecimento impreciso e preconceituoso na nossa inocência de crianças de que aquela senhora era, como diziam, "da macumba". Aquilo nos parecia extremamente ameaçador como se à mínima desconfiança dela de que fizéramos algo a seu amado gato, teríamos uma irreversível maldição jogada sobre nós. Além de tudo, o lugar onde morava, no tal terreno contíguo, ficava numa espécie de cortiço labiríntico, um conjunto de casebres de madeira envelhecidos e amontoados de aspecto muito pouco convidativo. Uma espécie de Vila do Chaves mal-assombrada onde ela era a Bruxa do 71, até pela semelhança física, e o seu gato, que ainda era preto para piorar alimentada a superstição infantil, era o Satanás do episódio do seriado no qual as crianças tem que entrar na casa para deixar o jornal.
Pois a velha zanzava, zanzava, parava em frente ao nosso portão, vasculhava um pouco ao redor e finalmente decidia entrar. Tocava a campainha e perguntava-nos se víramos o Chuvisco. Invariavelmente respondíamos que não, pois, obviamente, não fazíamos a menor ideia de onde poderia estar o bicho e não tínhamos o menor interesse no seu paradeiro. Ela desconfiada olhava-nos com seus ameaçadores olhos arregalados como se pudéssemos estar escondendo alguma coisa dela e, não muito convencida, virava as costas e saía decidida novamente para vagar pela noite atrás do bichano.
Não sem uma pontinha de dúvida de que não tivesse naquele curto instante nos posto algum feitiço, ficávamos aliviados por termos nos livrado daquela presença macabra. Mas sabíamos que ela voltaria. Tínhamos certeza. A cada noite que o gato resolvesse dar sua fugidinha noturna, ela encararia o clima que fosse para encontrá-lo.
Fechávamos a janela da frente e voltávamos ao que estivéssemos fazendo, jantar, assistir a um filme, o que fosse. Horas depois ainda ouviríamos, ao longe, na noite fria, aquele longo e estridente chamado da velha. "Chuviiiiiisco".
Cly Reis