A lenda da soul brasileira
na quadra dos Bambas.
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Mais um privilégio que tenho como morador de Porto Alegre e admirador
da black music do Brasil. Depois de
assistir ao memorável primeiro show do pernambucano Di Melo, em julho, agora, a
festa Voodoo, responsável por trazer essa turma malemolente à minha cidade,
presenteou os porto-alegrenses como eu com a vinda de outra lenda da soul brasileira: Gerson King Combo. Mais um dos artistas que caiu no ostracismo com
o declínio do estilo nos anos 80, King Combo foi redescoberto no estrangeiro
(Inglaterra e Japão) e, atualmente com 70 anos, voltou a ser cult de alguns anos para cá ao universo do
entretenimento.
O dançarino SoulBalaMachine ditando o ritmo da galera. |
Dono de uma voz possante, que salta daqueles senhores pulmões, o
carioca Gerson Côrtes (irmão de outro precursor da soul no País, Getúlio Côrtes) entra no palco muito bem iluminado da
Quadra dos Bambas da Orgia vestindo sua tradicional capa, esta azul-claro misto
de boxeur e super-herói, mais calças do
mesmo tecido lânguido e da mesma cor, casaco, colete, camisa de golas largas, colares
no pescoço, sapatos bicolor e chapéu. Uma figura exótica e impressionante. A
imponência do porte e do vozeirão, no entanto, se amenizam com o tratamento
educado e a simpatia, que dão o clima alegre da festa. A animação foi bastante
ampliada ainda pela presença do
dançarino Rafael SoulBalaMachine, que, vindo especialmente do Rio, ajudou a
ditar o ritmo com seus passos mágicos e incentivando o público a fazer o mesmo.
Nós curtindo o balanço de Gerson King Combo. |
Sem voltar a Porto Alegre desde 2001, o Rei da Soul Brasileira (que
leva o reinado já no nome), não poderia começar a apresentação com outra
música: “Estou voltando”. Os versos dizem tudo: “Está voltando com mais força (força)/ Pois nunca teve ausente/ Presente
nessa guerra/ Esperou o tempo certo pra voltar”. “Uma chance”, do seu
grande álbum de 1977, fez o clima ficar ainda mais quente, mesmo com a
torrencial chuva que caía lá fora. “Deixe Sair o Suor” e, mais ainda, “Eu vou
Pisar no Soul”, traduzem o sentimento do seleto público que, corajoso, não se
intimidou com o temporal e compareceu: “Já
separei a minha beca, engraxei os meus sapatos/ Espichei os meus cabelos,
detonei os caras chatos/ Por que.../ Eu vou pisar no soul/ Eu vou dançar um Black”.
O mestre da soul com a cozinha afiada da Ultramen. |
O irresistível groove de “Funk
Brother Soul”, outro de seus clássicos – este, do LP “Gerson King Combo Volume
II”, de 1978 –, antecipa “Soul da paz” e a pacífica “Força e poder”. Das
surpresas do show, King Combo, com toda autoridade que tem, encarna o
conterrâneo e contemporâneo Tim Maia e manda uma brilhante versão de “Rational
Culture”, a faixa em inglês da viagem esotérica de Tim presente no disco “Racional
Vol.1”. A banda, os rapazes da Ultramen (Júlio Porto, guitarra; Pedro Porto,
baixo; Zé Darcy; bateria; e Leonardo Boff, teclados) mais dois sopros (sax e
trompete excelentes, diga-se de passagem), funcionaram perfeitamente bem assim
como ocorrera no show de Di Melo, no mesmo formato. Apreciadores e fãs, eles sabem
de cor as canções dos mestres – segundo King Combo, ensaiaram com ele apenas
uma vez na tarde daquele mesmo dia. O “síndico” foi novamente revisitado com a cover de um de seus maiores hits, “Sossego”, num dos melhores
momentos do show. King Combo convidou da plateia duas pessoas para cantarem com
ele, uma delas a cantora gaúcha Nani Medeiros, que o incentivou a tocar a
balada “Foi um sonho só”, que contém na original um coro feminino e que havia
sido tirada do set-list por não ter quem
o acompanhasse. Achou-a.
Chamando Nani Medeiros ao palco
para dividir o microfone.
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Herdeiro de James Brown no Brasil, King Combo, que integrou as bandas
de Erlon Chaves e de Wilson Simonal e grupos seminais da soul brasileira, como a Black Rio e a Fórmula 7, é dos poucos que tem procuração para cantar o Godfather of Soul. E foi o que fez em dois momentos.
Primeiro, numa quente “I Feel Good”, dos maiores clássicos da música negra
mundial. Claro que todo mundo cantou e dançou junto. A outra foi dentro do
maior sucesso do próprio King Combo: “Mandamentos black” (“Dançar, como dança um black/ Amar,como ama um black/ Andar, como anda
um black/ Usar, sempre o cumprimento black/ Falar, como fala um black...”),
um dos hinos da cena dos anos 70. Nesta, inseriram “Sex Machine”, outro hit de
Brown, incendiando de vez a quadra dos Bambas.
Na despedida do público. |
Se “Estou voltando” iniciou o show, o recado final foi dado com “Good
Bye”, outra bem conhecida do King of Brazilian Soul, que, particularmente,
considero sua melhor música. Funk da melhor qualidade: ritmo contagiante,
sopros inteligentes, letra romântica e cantarolável e aquilo que só quem faz funk no Brasil sabe: um toque de samba.
Ah! Aí é insuperável, e Gerson King Combo é um dos principais representantes! Quando
eu pensei que, por não ser a banda original de Kink Combo, a Ultramen não
incluiria a pitada brasileira, o baterista Zé Darcy, na segunda parte, engendra
um ritmo de samba. Um final perfeito.
Se continuarem assim as promoções da Voodoo, trazendo lendas da soul brasileira, vou querer ver também
Hyldon, Carlos Dafé, Toni Tornado, Cassiano, Bebeto, Tony Bizarro, Arthur
Verocai... Estão me acostumando mal.
fotos: Jord Hare