Trecho do “Sutra do Coração da Grande Sabedoria Completa”, da filosofia budista Mahayana, século I
Pode-se entender como um impulso natural por parte de músicos modernos que queiram sair do óbvio o movimento em direção à música do Oriente. O esgotamento do sistema harmônico tonal, adotado pelo Ocidente a partir do século XVIII, levou artistas mais antenados a naturalmente procurarem saídas para esta armadilha diatônica. De Claude Debussy a David Bowie, de Dave Bruback a Philip Glass, a milenar cultura oriental vem servindo de baú de descobertas para aqueles que tentam suplantar as limitações impostas por aquilo que está estabelecido. Esta inquietação, claro, contaminou profundamente a música pop. Tanto é que as duas bandas mais influentes do rock, The Beatles e Velvet Underground, tiveram, cada uma a seu modo, a contribuição diferenciada das sonoridades vindas do outro lado do mundo, mastigando estes elementos para a música pop. E se George Harrison, pelos ingleses, e a dupla Reed/Cale, para com os nova-iorquinos são os principais mobilizadores desta busca, antes deles uma figura foi fundamental para que o Oriente chegasse ao Ocidente já depurado: Lou Harrison.
Nascido em Portland, no Oregon, em 1917, Harrison é um dos mais inovadores e influentes compositores da vanguarda norte-americana, tornando-se, junto a Iannis Xenakis, uma referência na música percussiva na vanguarda do século XX. Ex-aluno de Arnold Schöenberg, sua carreira inclui trabalhos como compositor, performer, professor, teórico musical, etnomusicólogo, maestro, fabricante de instrumentos, poeta, calígrafo, crítico, dançarino, marionetista e dramaturgo. O interesse música para percussão data da década de 1930, quando começou a apresentar concertos com o mestre John Cage. Nos anos 40 e 50, já um referencial professor universitário e diversas vezes premiado (inclusive com um Pulitzer), Harrison sentia que precisava buscar novos horizontes. E o achou. No Oriente. Passa a se interessar pela música asiática e seu sistema de afinação de “entonação justa” e muda radicalmente sua concepção musical, introjetando uma leitura original desses elementos a seu trabalho.
Obra temporã, “La Koro Sutro”, de 1972, que completou 50 anos de lançamento em 2022, é fruto de todos os elementos estilísticos, teóricos e conceituais construídos por Harrison ao longo de então cinco décadas. Porém, diferentemente do que poderia ocorrer a um autor acadêmico, “La Koro Sutro” não resulta carregada de elementos, que tornariam facilmente sua audição hermética e difícil. Pelo contrário: Harrison depura as influências orientais e a incrementa à sua música, tornando “La Koro Sutro” algo bastante pop aos ouvidos. Se o termo já era comum ao enterteinment naqueles idos de geração hippie, há de se supor, no entanto, que constituir uma obra palatável ao público menos especializado é um grande mérito vindo de um teórico.
A veia popular de “La Koro Sutro”, no entanto, explica-se de uma forma menos óbvia. Contrariando o que seria bem mais fácil a qualquer compositor, Harrison não recruta elementos da música do Ocidente para “poptizar” o “exótico”, facilitando a vida do receptor. Estudioso profundo, ele encontra na sonoridade oriental tais pontos de aproximação com o ouvinte. Essas observações vinham sendo percebidas por Harrison fazia tempo. No início dos anos 60, incentivado por uma conferência em Tóquio, inicia um estudo mais sistemático da música do Leste Asiático, viajando para a Coréia e Taiwan. Peças como “Pacifika Rondo” (1963) revelam a maneira altamente original com que Harrison empregou esses estilos. Em 1967, ele conhece Bill Colvig, um eletricista e músico amador que se torna seu parceiro de vida. Colvig projeta instrumentos para a ópera “Young Caesar” (1971), de Harrison. No início dos anos 1970, a dupla já estudava e tocava música tradicional chinesa em conjunto.
Harrison e o parceiro de vida e obra Colvig comandando seus instrumentos inventados
Para “La Koro Sutro”, é fundamental a contribuição de Colvig, desta vez na construção do gamelão americano. Incitado pelo amigo e igualmente importante compositor da vanguarda norte-americana Harry Partch, Harrison buscou na feitura manual dos próprios instrumentos os sistemas de afinação que não só lhe conferisse personalidade como, igualmente, trouxesse esse arejamento à desgastada música ocidental. Caso do gamelão, instrumento musical coletivo típico da Indonésia composto por uma série de metalofones, xilofones, tambores e gongos, podendo algumas variantes incluir ainda flautas de bambu e instrumentos de cordas percutidas ou tocadas com arco. Harrison, então, estuda com o mestre javanês K.R.T. Notoprojo, com quem soube identificar aquilo que queria: adaptar a sonoridade complexa do instrumento para a sua realidade. Eis o gamelão americano, usado pela primeira vez na obra de Harrison em “La Koro Sutro”.
O título da peça é a tradução da língua universal esperanto para “Sutra do Coração”, que é um dos textos sagrados da tradição budista Mahayana, que descreve o caminho que se deve seguir para alcançar a destilação pura da sabedoria (Nirvana). O uso que Harrison faz do esperanto é uma clara declaração social e política que reflete sua esperança em um mundo unido e na transcendência das fronteiras étnicas e nacionais. Esse texto é brilhantemente ornado de corais, que se atrelam a uma orquestra de formação única (composta, conjuntamente ao coro, para percussão, harpa, órgão e gamelão americano), que extrai sonoridades improváveis.
Certa vez, o compositor e amigo Bill Alves escreveu que “como compositor, artista, poeta, calígrafo, ativista pela paz, Lou Harrison dedicou sua vida a trazer beleza ao mundo”. Com o potente e poético “La Koro Sutro”, Harrison atingiu este objetivo, formal e conceitualmente. A pequena obra, capaz de agradar os ouvidos mais incultos aos mais exigentes, é uma síntese de décadas de trabalho musical, acadêmico é uma declaração de amor de um artista que buscou incessantemente militar por uma arte mais democrática num campo em que facilmente os colegas se escudam no hermetismo inatingível. E ainda de quebra abriu portas para que o rock, a música mais pop do século 20, tirasse de si o exemplo da “ocidentalidade”. Os Beatles jamais teriam buscado Ravi Shankar ou os cantos orientais não fosse George Harrison pegar essa trilha, o mesmo que a dupla Reed e Cale fez com a Velvet Underground quando encontrou o oriente em La Monte Young. Reed e George, pode-se afirmar que, sim, ambos são, além da coincidência linguística, um pouco de Lou Harrison.
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FAIXAS:
La Koro Sutro
1. Kunsonoro Kaj Gloro - 2:27
2. Strofo 1 - 4:42
3. Strofo 2 - 3:45
4. Strofo 3 - 1:24
5. Strofo 4 - 4:08
6. Strofo 5 - 4:27
7. Strofo 6 - 2:27
8. Strofo 7 - Mantro Kaj Kunsonoro - 5:04
Varied Trio*
9. I. Gending3:15
10. II. Bowl Bells3:07
11. III. Elegy3:29
12. IV. Rondeau In Honor Of Fragonard3:12
13. V. Dance2:05
Suite For Violin And American Gamelan**
14. First Movement - 7:20
15. Estampie - 5:28
16. Air - 3:58
17. Jhala - 2:24
18. Jhala II - 1:19
19. Jhala III - 2:00
20. Chaconne - 5:29
* ** Faixas presentes na versão do CD de 1987, com The Chorus and Chamber Chorus of University of California at Berkeley com regência de Philip Brett, Karen Gottlieb, arpa, Agnes Sauerbeck, órgão, William Winant, American Gamelan
Os Jogos Paralímpicos, ocorridos recentemente no Rio de Janeiro, trouxeram
à tona o velho questionamento – muitas vezes, retórico e demagogo – das
dificuldades e enfrentamentos que deficientes físicos têm de passar em suas
vidas. Na arte, mesmo em tempos modernos como os de hoje, as barreiras são
semelhantes. Quando se pensa sobre artistas famosos com deficiência logo vem à
mente Stevie Wonder e Ray Charles, dois cegos que passaram por cima de seu
problema físico por mérito, perseverança e, claro, talento. Mas outra cabeça
genial também se enquadra nessa lista de artistas deficientes que souberam
suplantar esse aspecto tanto pela superação quanto, igualmente, pela capacidade
criativa. Está se falando do inglês Robert
Wyatt, fundador e integrante da Soft Machine e um dos principais
representantes da chamada cena de Canterbury, grupo de bandas e músicos do
final dos anos 60/início dos 70 que misturavam com muita propriedade rock
progressivo, psicodelia e jazz. Mas não só isso quando se fala de um criador de
alta estirpe como Wyatt.
A inventividade harmonia e rítmica que Wyatt tirava da bateria na Soft
Machine já denotava algo que seria determinante em sua obra solo a partir de 1º
de julho de 1973. Pois neste fatídico dia, numa festa regada a muita droga,
Wyatt, numa crise depressiva, se atira do terceiro andar de um prédio.
Resultado: fica paraplégico. O que seria trágico para quem tem de usar as
pernas para operar seu instrumento por completo foi transformado por Wyatt. Com
dor e sacrifício, ele se reinventa como pessoa e como músico. Se sua figura hoje
lembra a de um mago – barba branca e espessa, sobrancelhas angulosas e olhar
firme –, não é coincidência. A expressão guarda as marcas de alguém que, talvez
inconscientemente, tenha tido que buscar nas profundezas mais místicas de si
próprio uma forma de fazer nascer um novo homem e artista diante da condição
limitadora que a cadeira de rodas impõe. Impossibilitado de tocar bateria, ele,
em contrapartida, especializa-se em vários outros aparatos musicais,
tornando-se multi-instrumentista. Sua musicalidade provou, assim, ir além do
instrumento em si, pois é de sua natureza, independente do timbre que produza
ou da técnica que precise usar. Dentro de uma extensa e profícua discografia
(tanto solo quanto em outros projetos), “Shleep”,
de 1997, é uma joia que condensa seus melhores predicados.
O brilhante afro-pop “Heaps Of Sheeps” abre o disco em alto nível. Uma
levada de guitarra soul, um baixo bem marcado e uma base de teclados norteiam
esta embalada melodia, repleta de percussões e efeitos de sintetizador. Ademais,
“Shleep” conta com a produção do mais habilidoso profissional das mesas de
estúdio do rock internacional: Brian Eno. Artista de formação plural, alia sua
sensibilidade e conhecimento musical e artístico a serviço do conceito dos
trabalhos que produz, tornando-se, não raro, um coautor não creditado como tal
– assim como ocorrera em “Zooropa”, do U2, ou “Dream Theory in Malaya”, de John
Hassell. Mesmo também não coassinando este, é visível sua interferência na
estrutura do repertório, na arquitetura sonora e nas marcantes participações,
seja de seus teclados e sintetizadores, vocais ou arranjos. Ouvindo “Heaps...”,
por exemplo, é impossível não lembrar-se de outras faixas de abertura de
projetos de Eno, como “Home” (em “Everything That Happens Will Happen Today”, com David Byrne), “Lay my Love” (de "Wrong Way Up", com John Cale) ou “No One
Receiving” (“Before and After Science”, solo). E como não perceber no refrão o
toque de Eno no coro com aquele ar étnico? O vocal de Wyatt, entretanto, é um
elemento único. Sua quase sufocada voz transmite ao mesmo tempo sapiência e
sofreguidão.
“Shleep” segue com a engenhosidade harmônica das duas linhas de piano
de “The
Duchess” – uma em tempo 1 x 2 e outra 3 x 3, mas meticulosamente dessincronizadas
–, que dão-lhe um caráter quase atonal. Lembra bastante a obscuridade da The
Residents – banda, aliás, bastante influenciada por Wyatt. As frases do sax de
Evan Parker, combinadas com uma flauta e o violino polonês de Wyatt, ao mesmo
tempo emprestam dissonância e cores a esta canção de ninar macabra, que podia
tranquilamente integrar a trilha de um filme de terror com criança. A atmosfera
muda totalmente em “Maryan”, quando o trompete de Wyatt, sobre o
dedilhar de um violão, começa a canção serpenteando acordes hispano-árabes. O
djembê africano de Gary Azukx e o violino oriental de Chikako Sato adicionam-se. World music in natura. É quando entra a
intrincada melodia de voz de Wyatt, a qual inclui a da esposa e parceira
musical Alfreda Benge, formando a provavelmente mais complexa e bela canção do
disco. Isso sem mencionar o solo de guitarra de outro fera que participa das
gravações: o mestre Phil Manzanera. Tudo, claro, orquestrado pela maestria de
Wyatt.
De fato, a inteligência musical de Wyatt sempre foi além do óbvio.
Ligado às artes plásticas (é de sua autoria as pinturas e desenhos que ilustram
todas as capas de seus discos), sua visão de arte vai além apenas dos sons. Por
isso, sua música é tão completa e complexa. Do rock progressivo ele faz suscitar
o dodecafonismo e a eletroacústica; sua leitura do jazz engloba a avant-garde e projeta o pós-jazz; a
psicodelia não fica somente nos clichês, mas vai em busca de texturas próximas
do concretismo, do minimalismo e do microtonalismo; as referências exóticas não
se restringem apenas à música indiana ou oriental, mas bebem nos timbres e
ritmos da Espanha muçulmana e da África negra e egípcia. “Was A Friend”, nessa
proposta politonal e polirrítimica, é um jazz dissonante que quebra novamente o
ritmo da sequência de faixas, o que, em termos de conceito de obra, é um expediente
empregado por Eno na construção temática dos álbuns que produz afetuosamente
aos amigos (“Everything...”, com Byrne, e “Outside”, com David Bowie, por
exemplo, respeitam essa ordem).
Noutro destaque, a emocionante “Free Will And Testament” (“Livre
vontade e testamento”), dá para captar na voz sentida e em registro agudo de
Wyatt (de difícil afinação) o sofrimento pela condição da paraplegia, bem como
a culpa pelo ato suicida que ainda o rondava mesmo quase 25 anos depois do
acidente. “Vou ter a minha liberdade, mas
dentro de certos limites/ Eu não posso desejar para mim ilimitadas mutações/ Eu
não posso saber o que eu seria se não fosse ele/ Posso apenas imaginar a mim
mesmo”. Um lamento do fundo da alma que gerou uma canção excepcional.
Mudando de sintonia de novo, o pós-jazz “September The Ninth” remonta a Chick Corea de "Mad Hatter", a Carla Bley de “Escalator Over the Hill” e até ao
microtonalismo de Harry Partch na ópera-lóki “Revelation in the Courthouse
Park”.
“Alien”, composição de Wyatt e Alfreda, tem claramente o dedo de Eno no
arranjo. Basta notar os característicos teclados espaciais ao fundo, os mesmos
que se ouvem lá em "Low", de Bowie, e em outros vários trabalhos de Eno,
principalmente os de ambient music. Aos
belos vocais longilíneos de Wyatt somam-se percussões africanas bastante
rítmicas e um baixo alto e bem marcado, revelando aos poucos outra grande faixa
do álbum – a qual retraz, agora, a pegada world
music experimentada por Eno com os Talking Heads em "Remain In Light", de
1979.
“Out Of Season”, intensa, também interliga vários pontos díspares:
música de teatro, atonalismo, Debussy, jazz modal. E como se tudo estivesse
propositadamente disperso, fora da estação. Porém, na montanha-russa proposta pelo
autor, logo há uma nova tentativa de encontro de um centro tonal (e emocional)
mais acolhedor, o que se nota na colorida – mas não menos dispersa – “A Sunday in Madrid”. Aqui, Wyatt narra uma onírica
e viagem à capital espanhola, numa letra de grande teor literário: “Pa chega à cidade das portas fechadas/ É
recebido por mineiros das Astúrias/ Sua limusine estriada guarda as últimas
brilhantes gavetas-caixas gigantes/ Amontoados para o calor/ Ele é depositado
em sua câmara interna/ Mais tarde, Pa encontra o urso representando uma árvore/
Para confundir sentido de cheiro dos cães dos portões do inferno...”
Mais uma ótima é “Blues In Bob Minor”, um blues embalado que é levado
numa base de órgão. O canto ininterrupto de Wyatt conta outra longa história,
esta da existência sem sentido dos personagens Roger e Martha em meio à célere
e burocrática vida urbana. Nessa, a guitarra carregada do ex-Roxy Music Manzanera
faz um duo de improviso com a jazzística de Philip Catherine, noutro momento
especial do disco. “The Whole Point Of No Return”, composição do amigo Paul
Weller (Jam e Style Council), é uma pequena vinheta altamente lírica que
encerra o disco numa versão tão personalizada que em nada lembra a original, de
1982. A base se sustenta num coro ao estilo do canto medieval, soturno e
litúrgico, assinado pelo próprio Weller. O piano de Wyatt solta notas esparsas,
dando a liberdade perfeita para seu trompete solar, que desfecha “Shleep” com a
mesma complexidade e beleza que o perfazem desde o início.
Da discografia de Wyatt, muitos destacariam “Rock Bottom”, de 1973,
como o pesquisador musical italiano Piero Scaruffi, que o coloca como o 2º maior
álbum de rock de todos os tempos e entre dos 15 trabalhos mais importantes da
música mundial na segunda metade do século XX. Não é para menos: gravado
imediatamente após o acidente, é um registro fiel e pungente do então novo
Robert Wyatt que o destino reservara (o título, pertinentemente quer dizer “fundo
do poço”). Entretanto, o também celebrado “Shleep”, além de contar com a mão
mágica de Eno na produção, é resultado de um artista, então aos 52 anos,
maduro, tanto no que se refere à sua música e arte quanto a ele próprio
enquanto pessoa e cadeirante. “Levei muito tempo para me recuperar do
acidente”, confessou em entrevista na época do lançamento de “Shleep”. As
questões da depressão estão igualmente presentes, bem como a reflexão de quem
se é a busca de significados maiores. Se Wyatt chegou às respostas, só ele pode
confirmar. O disco, no entanto, dá pistas desse olhar autocurador que ele
lançou para dentro de si. Terapêutico para ele e um deleite para quem escuta.
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FAIXAS:
1. Heaps Of Sheeps
(Alfreda Benge/Robert Wyatt) - 4:56
2. The Duchess - 4:18
3. Maryan (Philip
Catherine/Wyatt) - 6:11
4. Was A Friend (Hugh
Hoppe/Wyatt) - 6:09
5. Free Will And
Testament - 4:13
6. September The Ninth
(Benge/Wyatt) - 6:41
7. Alien (Benge/Wyatt)
- 6:47
8. Out Of Season (Benge/Wyatt)
- 2:32
9. A Sunday In Madrid
- 4:41
10. Blues In Bob Minor
- 5:46
11. The Whole Point Of
No Return (Paul Weller) - 1:25
todas as composições de Robert Wyatt,
exceto indicadas.
fica o orgulho de dividir alguns momentos da música
com o
Brasileiro Antonio das águas de março,
do matita, do porto das caixas, do
amparo, das luísas,
da sinfonia de Brasília, das saudades do Brasil.
O maior
compositor da música popular
de todos os países.”
Edu Lobo, sobre Tom Jobim
Há momentos em que uma obra-prima surge do acaso. Não foi assim com o
sonho em comum tido por Salvador Dali e Luís Buñuel na mesma noite e que os
motivou a filmar “Um Cão Andaluz”? Ou o processo intuitivo de Jackson Pollock,
que formava seus quadros com tintas de pura aleatoriedade? Pois em música
acasos como estes também acontecem. Em 1981, Edu Lobo, cantor, compositor e arranjador, um dos mais criativos e
respeitados artistas da música brasileira pós-Bossa Nova, estava de saída de
sua então gravadora, a PolyGram. Como era de praxe, haveria de realizar um
disco com a participação de vários artistas, como uma despedida festiva pelos
anos de casa. Em cumplicidade com o produtor Aloysio de Oliveira, o primeiro a
ser convidado sem pestanejarem foi Tom Jobim.
Num clima de admiração mútua, auxiliados pela direção não menos afetuosa
e sábia de Aloysio, chamaram Tom para tocar piano em “Pra dizer adeus”, faixa
de um dos primeiros discos de Edu, logo após esse ser descoberto por Vinícius de Moraes, no início dos anos 60. Tom o fez, mas não sem lançar contracantos, cantar
alguns versos e ainda adicionar-lhe acordes, os quais passariam a partir dali a
integrar a partitura da canção. Ou seja: chegou para uma participação e mudou a
música para sempre. Ao final da gravação, visto que todos estavam felizes com o
resultado e com a egrégora formada no estúdio, Tom pergunta: “Era só isso?”. Aloysio propôs, então,
de modo a não desapontar o maestro, que se gravasse outra de Edu, desta vez,
uma parceria com aquele que representava o elo entre os dois: Vinicius. Edu,
claro, gostou da ideia.
Mandaram ver, então, “Canção do Amanhecer”, esta, do primeiro álbum de
Edu, de 1965, dando à precoce parceria daquele jovem músico de 22 anos com o
tarimbado e mítico poetinha uma versão amadurecida. A presença de Vinicius,
como ele gostava de fazer com os amigos, mesmo que imaterial nesta ocasião só vinha
a reforçar a afinidade entre Edu e Tom. Como no primeiro take, o resultado foi incrível novamente: sintonia pura,
descontração e musicalidade aflorando. Quando termina, Tom capciosamente solta
de novo a pergunta: “Era só isso?”.
Aloysio, que conhecia bem o parceiro desde os anos 50 – época em que já
compunham juntos clássicos como “Dindi” e “Inútil Paisagem” –, entendeu o
recado e ligou para o executivo da gravadora. Estava claro que o “canto do
cisne” de Edu Lobo na PolyGram não teria vários músicos convidados, mas apenas
um: Antonio Carlos Jobim. O maior deles.
Com trabalhos solo recentemente lançados, ambos tinham poucas novidades
em suas pautas. Uma das inéditas, entretanto, abre o lado A do LP: a graciosa
“Ai quem me dera”, composição antiga de Tom em parceria com Marino Pinto até
então guardada para uma ocasião especial. A ocasião surgiu. Sente-se o sabor
dos primeiros temas da Bossa Nova, aquele mais carioca e gingado, com Tom e Edu
cantando em uníssono com perfeição. É nítida a afinidade entre os dois. Outra
de ânimo florescente é “Chovendo na Roseira”, composição instrumental de 1970 regravada
por Elis Regina quatro anos depois com a participação de Tom e já com a letra lírico-ecológica
do próprio autor. Aqui, esta valsa de cores tipicamente debussyanas (“Olha, que chuva boa, prazenteira/ Que vem
molhar minha roseira/ Chuva boa, criadeira/ Que molha a terra, que enche o rio,
que lava o céu/ Que traz o azul!”) recebe um tratamento harmônico de alto
requinte. A voz de Edu se apropria de tal forma que parece um tema coescrito
por ele.
Equilibrando as autorias – ora de um ora de outro com ou sem parceiros
–, escolheram-se mais duas em que Tom assina letra e melodia. Uma delas é
“Ângela”, das obras-primas do compositor. Tema da segunda fase da Bossa Nova
presente no clássico disco “Matita Perê” (1973), a romântica e melancólica
“Ângela” guarda traços da complexidade harmônica da música de Chopin. Ivan
Lins, um dos ilustres aprendizes do “maestro soberano”, contou certa vez que
esta é canção que ele gostaria de ter escrito – precisa dizer mais? A outra,
igualmente lírica e impressionista, é “Luíza”, a segunda e última inédita do
disco, das mais queridas do cancioneiro jobiniano e que abre o lado B do vinil.
Composta recentemente por Tom para o tema de uma novela da Globo, de tão
vigorosa, saiu neste álbum e ainda na trilha sonora da novela, ficando meses
nos ouvidos dos brasileiros todos os dias sem que jamais tenha se desgastado. E
que letra! “Rua/ Espada nua/ Boia no céu
imensa e amarela/ Tão redonda a lua/ Como flutua/ Vem navegando o azul do
firmamento/ E no silêncio lento/ Um trovador, cheio de estrelas/ Escuta agora a
canção que eu fiz/ Pra te esquecer, Luiza...”.
Os parceiros de Tom e de Edu são de extrema importância no repertório
afetivo escolhido pela dupla para este projeto quase acidental. É o caso de Chico Buarque. Assim como Vinicius, o autor de “Olhos nos Olhos” é outro que os
liga musical e afetuosamente. Parceiro de Tom desde os anos 60, tivera a mão de
Edu nos arranjos da trilha de sua peça/disco “Calabar/ChicoCanta”, em 1973.
Mas, por incrível que pareça, toda a grande obra da parceria Chico-Edu, que
hoje faz parte do inconsciente coletivo da música brasileira, veio somente depois
de “Moto-contínuo”, esta, sim, a primeira dos dois, escrita naquele ano e
lançada praticamente junto com a versão do álbum “Almanaque”, de Chico. Já na
estreia da parceria, Chico se esmerava na letra, uma de suas melhores. Ao
expressar em hipérboles a admiração intrínseca do homem pela figura feminina,
lança, através de anáforas e epíforas (“Um
homem pode...” e “se for por você”),
versos da mais alta beleza poética: “Juntar
o suco dos sonhos e encher um açude/ se for por você (...) Homem constrói sete
usinas usando a energia/ que vem de você”. Ainda, Tom faz-se presente
categoricamente, introduzindo neste samba cadenciado e denso ricos contracantos
de seu piano e a voz em uníssono com Edu – com timbres muito parecidos, aliás.
Outros dois sambas melancólicos: “É Preciso Dizer Adeus”, de Tom e
Vinicius (“É inútil fingir/ Não te quero
enganar/ É preciso dizer adeus/ É melhor esquecer/ Sei que devo partir/ Só nos resta
dizer adeus”), representando a reverência à parceria gênese de toda a
geração da qual Edu pertence; e “Canto Triste”, mais uma dele com Vinicius,
esta imortalizada, assim como “Chovendo...”, por Elis (“E nada existe mais em minha vida/ Como um carinho teu/ Como um silêncio
teu/ Lembro um sorriso teu/ Tão triste”), fechando o disco de forma
altamente melodiosa: só ao violão e a voz de seu autor.
Não sem antes, entretanto, registrarem a talvez melhor do disco: “Vento
Bravo”. Faixa do obscuro e hoje cult
“Missa Breve”, gravado por Edu em 1972, trata-se de uma composição feita com
outro parceiro e amigo em comum com Tom: Paulo César Pinheiro. Em entrevista
para o programa O Som do Vinil, do Canal Brasil, Edu comenta que não entendera
bem porque Tom, que pedira para incluí-la no set-list, gostava tanto desta música. Parece, porém, evidente. A
letra, com marcas da literatura regionalista – remetendo à prosa de Guimarães Rosa de “Sagarana” e a de Monteiro Lobato de “Urupês” –, confere estilisticamente com o que o próprio Pinheiro escrevera para Tom anos antes
para a música "Matita Perê". As leis dos homens e da natureza, com emboscadas e
perseguições, bem como a implacável ação do tempo, são marcas de ambas as
obras. “Vento virador no clarão do mar/
Vem sem raça e cor, quem viver verá/ Vindo a viração vai se anunciar/ Na sua
voragem, quem vai ficar/ Quando a palma verde se avermelhar/ É o vento bravo/ O
vento bravo”, diz a letra, que narra a fuga de um escravo mata adentro. O
refrão, melodicamente intrincado e encantador, ainda diz: “Como um sangue novo/ Como um grito no ar/ Correnteza de rio/ Que não
vai se acalmar...”. Ao contrário da sinfônica peça de Tom, porém, traz uma
melodia intensa baseada no som dos violeiros folclóricos do sertão. Remete ainda,
no trítono do piano que lhe faz base, às trilhas de filmes e séries policiais norte-americanas
dos anos 50/60, as quais Edu sempre soube adicionar à sua música com
brilhantismo.
E como conjugar tanto talento, tanta sabedoria musical e sensibilidade
artística e de tão vastos cancioneiros? Por incrível que pareça, nem sempre juntar
isso resulta em boa coisa, pois se pode pecar para mais ou para menos. Em “Tom
& Edu”, primeiro, a opção foi por uma estética limpa, enxuta. Nada de grandes
bandas ou orquestra. Pretendeu-se, já que “só tinha de ser com você”,
reproduzir o clima de admiração mútua. A ausência das cordas, que chegou a ser
motivo de crítica à época do lançamento na “vira-latas” imprensa brasileira –
que achava um desperdício dois regentes dispensarem a orquestração – é de um
acerto categórico. Basicamente, ouve-se o piano de Tom e/ou de Edu, o violão de
Paulo Jobim e Luiz Cláudio Ramos, o baixo dividido por Sérgio Barroso e Luiz
Alves e apenas a bateria como percussão, tocada por Paulo Braga. Quando muito,
o flugehorn impecável de Marcio
Motarroyos, como em “Chovendo...” e “Vento...”. E, claro, o canto dos dois experientes
artistas. A essência clássica de ambos, cujas musicalidades não à toa são
parecidas, retraz naturalmente harmonias ao estilo de Debussy, Ravel, Bach e
Villa-Lobos. Menos, para quem tem conteúdo, é sempre mais.
O segundo motivo de acerto do projeto é a presença de Aloysio como
produtor. Parceiro dos dois de longa data, o ex-dono do selo mítico selo Elenco
(pelo qual gravara e lançara inúmeros artistas fundamentais à MPB nos anos 60,
entre os quais o próprio Edu Lobo) tinha a mão apurada nas mesas de som,
conhecia com profundidade harmonia e composição, compartilhava-lhes do mesmo
carinho e, principalmente, tinha maturidade para saber influir apenas no que
devia. Afinal, quem ousaria mandar em Edu Lobo e Tom Jobim dentro de um
estúdio? Tendo recentemente coordenado dois projetos de Tom semelhantes àquele
(os discos com Miúcha de 1977 e 1981), Aloysio soube dar a arquitetura sonora
certa às faixas.
Já mais satisfeito ao final das 10 gravações que acabava de ajudar a deixar
para a história, Tom enaltece o pupilo: “Eu
vos saúdo em nome de Heitor Villa-Lobos, teu avô e meu pai”. Edu, por sua
vez, contou em entrevista que tem a felicidade de ter dito em vida a Tom de que
este era o maior nome da música brasileira de todos os tempos, palavras que,
segundo ele, emocionaram Tom. “De todos
os arquitetos da música da música que conheço, Antonio Carlos Brasileiro de
Almeida Jobim é, sem dúvida, o de traço mais amplo e perfeito”, pontuou o
seguidor inconteste do maestro. Tanta identificação, tanta confluência entre os
artistas, que somente o próprio Aloysio de Oliveira, no alto de sua sapiência,
para saber definir: “Edu e Tom, Tom e
Edu. E até, se você quiser, Tu e Edom”. Definitivamente, não foi por acidente que eles se juntaram para esse encontro, pois eram almas irmãs.
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FAIXAS:
1. Ai Quem Me Dera (Tom Jobim/Marino Pinto) - 2:13
Tá sempre morrendo gente pública por aí, sei. Mas nem sempre
tenho o que lamentar. Morre gente conhecida toda semana, o que não quer dizer,
necessariamente, que embora conhecidas de um relativo número de pessoas (às
vezes, milhares delas), sejam de fato importantes. Essa dialética é típica
desses tempos descriterizados e esquizofrênicos que vivemos. Lágrimas demais ou
de menos sem se saber o porquê. Mas não deixa de ser, no mínimo, questionável,
ainda mais quando, em menos de uma semana, morrem duas pessoas de extrema
importância e ocupantes cada um de uma dessas esferas: o quase ignoto e o
altamente popular. O quase ignoto por conta do mesmo descritério e
esquizofrenia que empurra as massas a rechaçarem qualquer profundidade; o outro,
altamente popular e cuja comoção pela morte foi gigantesca, é às vezes reduzido
a um percentual mínimo daquilo que ele mesmo representa.
De minha parte como jornalista, crítico e diletante, lamento
de verdade ambas as perdas. Falo de Pierre Boulez e David Bowie.
O rocker de batuta
Boulez, o compositor, maestro, professor e ensaísta francês,
desconhecido totalmente de um relativo número de pessoas, era o último
representante dos compositores da vanguarda erudita da primeira metade do
século XX. Junto com os contemporâneos John Cage, Kerlheinz Stockhausen, Luciano Berio, Edgard Varèse, Benjamim Britten e Luigi Nono, ele, seguindo a sina
aberta pela tríade de Viena nos anos 10 (Schöenberg, Berg e Webern), pôs de
ponta-cabeça toda a tradição musical, subvertendo todos os conceitos: tom,
harmonia, métrica, instrumentalização, timbrística. Raivoso e aferrado, Boulez
foi um roqueiro punk com 40 anos de antecedência ao movimento. De modos
elegantes e clássicos, por dentro era um punk total, combativo até no seu meio.
A mesma agressividade expressiva, a violência como método e estilo. À
imbecilidade ele respondia com doses desmedidas de cerebralismo. Era sua adaga
perfurante. “Acredito que a música deve
ser uma histeria coletiva de palavras violentas sobre o tempo presente”,
disse em 1948.
Anos atrás, quando de seu aniversário de 80 anos (morreu dia
5 de janeiro, aos 90), li um artigo que, pertinente e conscientemente, colocava
“Pli selon Pli”, uma de suas mais concisas e importantes obras, ao lado de
outras duas significativas revoluções na música do século XX: o nascimento da
bossa-nova com “Chega de Saudade”, com João Gilberto (1958), e a não menos
vanguardista “Gesang der Junglinge” (1956), obra referencial do alemão Stockhausen.
Dessa vez, Boulez foi notícia novamente, mas muita gente que
passou por esta não deu bola, o que é normal. Um compositor e maestro ligado a
antipopulares termos como dodecafonia, atonalismo, eletroacústica, serialismo
ou música aleatória só pode mesmo não ser popular. Ser desconhecido de um
grande número de pessoas era, certamente, um elogio para Boulez. O
desconhecido, afinal, nunca o assustou. Pelo contrário: era-lhe combustível. De
língua afiada e criatividade idem, o jovem que estudara com Messiaen, logo o mandou
às favas e o confrontou ideologicamente. Fez o mesmo com outro professor, Leibowitz,
sem resquício de culpa. Jamais lhe existiam mestres. Não são poucos seus
manifestos ferinos e altamente intelectualizados escritos ao longo da vida onde
expunha suas ideias, o que o colocaram como um importante ensaísta da arte do
seu tempo.
Boulez é responsável, na longa carreira que teve, por
promover pelo menos três revoluções na música mundial. Afora as marcantes obras da juventude, as
cantatas "Le visage nuptial" (revista por ele quase quatro décadas
depois), "Le soleil des eaux", onde explorava os ensinamentos do
dodecafonismo aprendidos com Messiaen, e da primeira obra totalmente
serializada, “Polyphonie X”, para 18 instrumentos, é entre 1953 e 1957 que
lança a que é considerada sua primeira obra-prima: “Le marteau sans maître”
para conjunto e voz, de relativo sucesso e uma síntese surpreendente das várias
correntes na música moderna, englobando os mundos sonoros do jazz be-bop, o gamelão
balinês, músicas tradicionais africanas e melodias tradicionais japonesas. Até
o por ele satanizado Igor Stravinsky deixou de fora as críticas que recebia e
aplaudiu de pé.
Outra radical criação: a já mencionada “Pli selon Pli”, cuja
“original” data do final dos anos 50. Trata-se de um concerto inspirado em
poemas do poeta francês Mallarmé onde passa a explorar com veemência a ideia de
“obra em movimento”. Revisto em sua estrutura e métodos nas décadas seguintes,
foi ganhando novas versões à medida que o irrequieto compositor reavaliava sua
linguagem, fazendo com que, por conceito, sua concepção final estivesse sempre
por vir. Tal como o já mencionado João Gilberto, que reelabora incessantemente
os clássicos sambas da música brasileira em seu filarmônico violão, cunhando ao
longo do tempo sempre versões únicas da mesma melodia, “Pli selon Pli” “nunca”
acaba. Entendimento que só poderia brotar de alguém que representou tão
firmemente a geração pós-Guerra, cujas marcas ainda são sentidas mais de 100
anos de eclodida a primeira delas.
Na maturidade, quando poucos compositores eruditos de sua
geração não mais se arriscavam depois de tanto inovarem nas décadas anteriores,
Boulez manteve-se na ponta da vanguarda, propondo novas experimentações. Se a
música eletrônica o havia decepcionado nos anos 50 por sentir-se insatisfeito
com o resultado das fitas magnéticas e seu processo “inorgânico” de realização,
nos 70 volta à carga para dar-lhe nova identidade. Os meticulosos resultados
dessa “velha descoberta” seriam sentidos em 1980, quando compõe “Répons” (para
dois pianos, harpa, vibrafone, sinos, címbalo, orquestra e eletrônica). Ali, dá
luz a uma obra em que a ressonância e a espacialização dos sons criados pelo
conjunto se processam todos em tempo real, inclusive os elementos eletrônicos,
normalmente criada penosamente em situações controladas. Nova síntese, nova
profusão de ideias.
O fato é que, como um punk, amoral e dono da sua razão,
Boulez jogou-se no labirinto do desconhecido e dali tirou o magma que brotaria
dos vulcões de sua criatividade pronto para queimar todas as concepções
preestabelecidas. Da tensão secular, criou uma linguagem densa e lírica. Sua
partida deixa uma lacuna insubstituível. Um pilar que cede. O planeta Terra não
tem mais nenhum representante da original vanguarda do século XX, a geração
pós-Wagner, que passa por Strauss, Mahler e Debussy. A geração que aprendeu com
– ou aprendeu a contrariar – Stravinsky, Eric Satie, Bela Bártok e Maurice Ravel.
O longevo Boulez ainda resistia, e agora leva consigo uma herança que, a ver
por esses tempos de descritério e esquizofrenia (e desmemoriados,
consequentemente), um dia possa se apagar da memória do homem. Quiçá, cheguemos
ao triste dia em que serão desmentidas oficialmente as barbaridades do Holocausto
que Boulez presenciou e da sua forma combateu. Quem sabe, foi bom mesmo ele não
viver tanto mais para ter de presenciar isso.
vídeo"Pli Selon Pli",Pierre Boulez
A batuta do rocker
Assim como para Pierre Boulez, o desconhecido também sempre
foi combustível a David Bowie. Se o maestro buscava esse estado
incessantemente, de modo a não repetir-se e recriar sua obra ao longo dos
tempos, Bowie, no meio domainstream, não só fazia isso como
transformava essa busca em produto “vendável”. Ninguém como ele se valeu do
universo de referências estilísticas da sociedade moderna e os reelaborou como
Bowie, forjando um trabalho próximo do público mas sem deixar de infundir-lhe
“dificultações”. Boulez, inventor de muitas dessas complexidades formais quase
sempre desconhecidas do grande público, até por isso era quase um completo
desconhecido do próprio. Bowie, na outra ponta, era popular mas impunha-se uma
tarefa provocativa e rara: a de propor essas “dificultações desconhecidas” e
torná-las, se não conhecidas, pop e assimiláveis.
Poderia falar longamente sobre vários dos períodos que Bowie
orquestrou. De Ziggy Stardust ao vilão mutante Nathan Adler de “Outside”,
passando pelo “Pin Up” à fase “limpa” de artifícios de Berlim. Mas em meio à
enxurrada de coisas a seu respeito escritas e ditas nos últimos dias creio que
o melhor recorte para esse momento é essa contribuição da desacomodação que o
artista britânico sempre trouxera. “Sou
uma prateleira de frascos vazios”, disse o poeta Fernando Pessoa em seu
“Livro do Desassossego”. Bowie foi esse frasco vazio, onde fazia caberem todas
as possíveis referências e mitos.
Escrevi sobre Bowie em meu livro, "Anarquia na Passarela",
algo que se baseia bastante na questão da moda e comportamento dos punks, mas
que vale tranquilamente para tal argumentação. Reproduzo dois:
“Vindo da cultura mod
londrina dos anos 60, logo foi formando um estilo próprio de dândi
ultrasofisticado e exagerado que desembocaria no seu ‘cameleônico’ individualismo
cênico. Bowie era uma estrela do rock que nunca é ele próprio como pessoa: ele
‘interpreta’ papéis num enorme ‘palco’ chamado show-business. Por causa deste distanciamento bretchniano que tem da cultura de massa logrou
influências vitais à cena [punk].”
“Tudo em Bowie era
estilo, o que se percebia na sua indumentária ultradandi, barroca e ‘camp’. Seu passado mod, os anos 50, o cinema expressionista, a Berlim ‘decadente’ e
suburbana, os anos pré-nazismo, o dandismo de Brummell, a androginia, a estética
dos cabarés. Tudo lhe era alimento para a formação de um estilo pessimistamente
decadente, cerebral e imaginário. Criava uma mitologia na qual nada era em vão;
em cada ‘máscara’ sua vinha um efeito estético e fantasioso.“
Por tudo isso, Bowie mostrou facilmente que fazer música pop
simplesmente é simplório e vago. Há de se adicionar personalidade e conceito
para que se produza algo significativo. Bowie entendeu isso cedo, catalisando
música, estilo, comportamento e equilibrando “alta” e “baixa” cultura – ou
melhor, quebrando as barreiras entre uma e outra. Entendeu que a vanguarda das
artes não existe apenas para impor a “alta cultura” de modo estanque e
autobajulador. É, sim, célula orgânica, viva, que, compreendida em seus
símbolos e elementos, podem e devem ser assimiladas, reelaboradas e deglutidas em
outros e diferentes níveis de cultura e conhecimento.
A carreira de Bowie, muito mais profunda do que apenas os
(ótimos) sucessos, é sabiamente contaminada pela vanguarda. "V-2
Schneider" contém claros traços de Boulez, Stockhausen e Varèse; o solo
atonal de piano de "Aladdin Sane" contém Cage e Ligeti; a trilogia berlinense (inclua-se "The Idiot", de Iggy Pop, da mesma leva), contém em sua sonoridade
pós-industrial os experimentos eletroacústicos fruto de ceticismo racional do
pós-Guerra; o recente “Blackstar” contém a sonoridade pós-jazz assimilada tanto
por maestros quanto músicos sem formação teórica como DJ’s, roqueiros e rappers. "Low" e “Heroes”, com Brian Eno, são tão estruturalmente minimalistas que o próprio “pai” do estilo, Philip Glass, homenageou a Bowie e Eno com o duo “Symphony” sobre ambos os álbuns. O
jornalista e crítico musical norte-americano Alex Ross, para quem Bowie foi um
roqueiro refinado, observa que, “em
meados dos anos 70, Bowie abandonou a forma ternária da estrutura pop em favor
de formas semiminimalistas, caracterizadas por ataques secos e pulsações
rápidas”.
É por isso que se torna tão penosa e simbólica a perda de
Bowie: quem mais fará isso? É alarmante, se não desolador, que este papel nunca
mais seja cumprido. Quem assumirá (compreenderá ou dará a devida importância) ao
papel de unir e mimetizar essa ponte vanguarda-pop? Numa época em que streamings e mp3 circulam
descontextualizados de suas obras de origem (quando esta, de fato, existe, se é
que já não fora criada sem contexto algum), é salutar que um artista de quase
70 anos e 50 de carreira assombre o universo do entretenimento com o lançamento
de um disco, uma obra que se constitui em si própria. Uma obra.
Walter Benjamin provavelmente ficaria instigado com esse episódio
emblemático da morte de Bowie, e mais possivelmente ainda o ligaria com a já historicamente
simultânea perda do pilar oposto a ele, a de Pierre Boulez. A vanguarda e o pop
perderam seus calços, deixando um questionamento de dupla interpretação: a obra-de-arte
na música morreu também junto com os dois? Findaram-se duas eras basais para a
história da música através dos tempos? Todas as releituras de “Pli selon Pli” e
o obscuro “Blackstar” darão ainda muito a se desvelar se se quiser, a depender
do grau de (des)critério dos tempos (esquizo)frênicos que vierem adiante neste
século XXI recém iniciado. O que se sucedeu, com a morte dos dois, talvez tenha
sido um lampejo de que a arte musical esteja mais viva do que nunca. Ou, se
não, é porque se enterrou de vez junto com Bowie e Boulez. Aí, será quando o
desconhecido se tornará definitivamente desimportante.
Eu
voltei da Europa na turnê que eu fiz com o Paulo Moura,
logo depois do show do
Bituca com o ‘Clube da Esquina’.
É um disco que eu compus todo na Europa,
chamado ‘Matança do Porco’.
Música que, inclusive, tem no disco ao vivo do
Milton,
o ‘Milagre dos Peixes Ao Vivo’.
Você vê que as ideias estavam ali.
Foi
a nossa época de laboratório mesmo.
Serviu para o resto das nossas vidas.”
Wagner Tiso
Milton Nascimento foi sempre o cabeça e congregador do chamado Clube da
Esquina, esse time de artistas de Minas Gerais que mudou a cara da MPB desde a
conturbada segunda metade dos anos 60 de Ditadura Militar no Brasil. Em torno
de Bituca – e muitas vezes até motivados por ele, como no caso de Fernando Brant e Lô Borges – se configurou a movimentação musical que trouxe novas
linguagem e referências à música brasileira e até mundial se se considerar seu
pioneirismo naquilo que passou a se chamar tempo depois de world music. Wayne Shorter, Sarah Vaughan, Quincy Jones, Eric Clapton, Paul Simon, Carminho entendem isso muito bem. Porém, dos diversos
talentos surgidos à época e/ou junto com Bituca, um deles é quase tão
fundamental: o maestro Wagner Tiso. Surpreendentemente autodidata (o
saxofonista e clarinetista Paulo Moura, exímio arranjador, apenas lhe deu
toques sobre teoria), é naturalmente dono de um estilo de tocar piano e de
orquestrar que bebe no colorido de Claude Debussy e na força expressiva de
Richard Wagner, além de sua veia sacra, a qual adquiriu ainda pequeno nas
igrejas do interior de Minas que frequentava. Se Milton é o símbolo do Clube da
Esquina, principal compositor e propulsor da cena, Tiso é o centro harmônico, o
homem que aperfeiçoou a ideia e lhe deu lastro.
Tiso, sempre muito ligado a Milton Nascimento (ambos são naturais de
Três Pontas), já era o principal arranjador e regente dos trabalhos deste desde
o LP “Milton”, de 1970, mesmo ano em que, juntamente com Luis Alves (baixo), Frederyko
(guitarra) e Robertinho Silva (bateria) forma uma banda de apoio para o
parceiro. Assim surgiu a Som Imaginário,
para a qual ainda foram convocados para completar o grupo nada mais, nada menos
que três craques: Tavito (violão), Zé Rodrix (voz, órgão, flautas) e Naná
Vasconcelos (percussão). Um time de primeira. Além das essenciais participações
nos trabalhos de Milton e na de gente do calibre de MPB-4, Marcos Valle, Gal Costa, Odair José, Sueli Costa, dentre outros, a banda mantinha também carreira
própria. Depois de dois discos em que Rodrix comandava os microfones (“Som
Imaginário”, de 1970, e “Nova Estrela”, de 1971) a Som Imaginário, sem este e
Naná, sintetiza sua sonoridade psicodélica e até lisérgica e compõem um álbum
totalmente instrumental: “Matança do
Porco”, de 1973. Nele, a MPB se junta com felicidade ao rock progressivo,
ao jazz e à música clássica em seis canções assinadas por Tiso em que todos os
músicos se esmeram nos instrumentos. Solos magníficos, arranjos deslumbrantes e
orquestrações idem, cujas regências tiveram ainda a fina colaboração de Moura,
maestro Gaya e Arthur Verocai. Este último trabalho de estúdio do grupo é uma
obra-prima da música instrumental no Brasil.
“Armina”, com sua melodia valseada e melancólica, não apenas abre o
disco com o piano altamente erudito de Tiso como, igualmente, recorta-o todo,
aparecendo em vinhetas/excertos entre os outros cinco temas durante todo o
decorrer, desfechando-o também, inclusive. A canção dá o clima do álbum, cujo
peso do rock, o swing do samba-jazz e a energia do fusion são ciclicamente reconduzidos à
atmosfera do tema-tronco, o qual traça uma linha entre o litúrgico e o a
herança modernista do folclórico bachiano de Villa-Lobos. Entretanto, na
alquimia natural da Som Imaginário, de cara se ouve um potente jazz-rock de baixo-guitarra-bateria-órgão,
que faz um pequeno preâmbulo para, aí sim, dar lugar ao piano de Tiso. Depois
de um lindo solo, que traz delicadeza ao número, a banda retorna vigorosa – a
melodia lembra “I Want You (She's So Heavy)”, dos Beatles, na parte do “She so heavyyyy...”, para ver o nível
de grandioculência – para um exímio e longo solo da guitarra rasgante de Frederyko,
ao estilo de John McLaughlin. Por volta de 4 minutos e meio, param todos os
instrumentos elétricos para novamente ouvir-se o dedilhado acústico do piano,
fazendo ressurgir a valsa tristonha.
Agora sob o som de um piano elétrico, “A 3”, extremamente moderna, sintoniza
com o que Hermeto Pascoal, Airto Moreira e João Donato vinham fazendo nos
Estados Unidos àquela época e embasbacando os gringos: um jazz brasileiro com
ritmo, harmonias complexas e uma habilidade musical peculiar dos trópicos. Show
de perícia de toda a banda, que, levados pelos teclados, ganham o
acompanhamento da percussão do mestre Chico Batera e da flauta de outro professor,
Danilo Caymmi. Uma curta e orquestrada “Armínia”, arregimentada por Verocai – e
na qual se notam os toques de sua sofisticação harmônica, principalmente na
predileção pelos metais ouvidos ao final –, antecipa “A nº 2”, que inicia como
um samba cadenciado conduzido por uma linha de órgão. Vão se adicionando as
melodiosas vozes dos Golden Boys, solos da guitarra e cordas, num crescendo de
emoção. Até que, pouco antes dos 5 minutos, o baixo de Luis manda um groove e a música dá uma virada para um jazz-funk estupendo. Tiso troca o órgão para
o Hammond; Luis e Fredera, mantendo a base em repetições ágeis; Robertinho;
segurando o ritmo na variação caixa/prato de ataque. Arrasador. Digno de um
“Headhunters”, de Hancock, ou “On the Corner”, de Miles Davis.
A faixa-título, que eu conheci no disco de Milton, “Milagre dos Peixes
Ao Vivo” (1974), surpreendendo-me por demais já daquela feita, não perde em
nada no estúdio. Aliás, até ganha, tendo em vista que os registros ao vivo da
época eram deficitários tecnologicamente (o caso). Além do mais, o próprio
Bituca empresta aqui a sua voz. Então: serviço completo, nada faltando.
Sugestivo, o título remete ao arcaico ritual de abate de suínos típico do
folclore português e que, obviamente, devido a seus requintes de crueldade,
exprime algo de visceral e funesto vivido à época no Brasil de Regime Militar.
Como se tratava de uma canção “sem letra”, os milicos a consideraram inofensiva
e deixaram passar pela censura. Isso faz com que “Matança do Porco”, música e disco,
alinhem-se, pela via de um “silêncio resistente”, a “Milagre dos Peixes” de
estúdio, daquele mesmo ano de 1973, que os militares censuraram praticamente
todas as letras, transformando-o, forçadamente, num álbum semi-instrumental.
Este aqui é instrumental de propósito, pois não há palavras para exprimir o
sentimento nefasto que se presenciava. Os sons, dados à imaginação, falam por
si.
Nos mais de 11 minutos da canção “Matança do Porco”, ponto alto do
disco, deságuam boa parte da musicalidade construída pela turma do Clube da
Esquina. Seguindo a atmosfera erudita que domina o álbum, trata-se de um pequeno
réquiem transgressor, entre o rock e o jazz. Traz o vigor de um rock
progressivo, que lembra o Pink Floyd psicodélico pré-"Wish You Were Here",
ainda mais pela novamente excelente performance
de Frederyko debulhando a guitarra – e não deixando nada a dever a um David
Gilmour. O primeiro “movimento” inicia lento com acordes 2/2 de Tiso ao piano,
que exercita uma breve introdução (Kyrie e
Gloria) enquanto vão entrando aos poucos
os outros instrumentos até chegar na guitarra, que, distorcida, se adona do
campo. São quase 5 minutos de um solo dividido em dois momentos (algo que se
poderia intitular como “A Preparação”, Credo,
e “A Desforra”, Sanctus) que vai num crescendo
e toma uma carga emotiva tamanha com o poder de carregar consigo os outros
integrantes, ao final igualmente em êxtase. Robertinho dá um show de rolos e
condução; Tiso, centro da peça, lança impressionantes ataques e improvisos
jazzísticos. O ritual de morte chega a seu ápice. O sangue escorre. Morte.
Valendo-se fartamente de seu conhecimento erudito, Tiso corta mais uma
vez a canção para, numa fusão para um segundo ato, arregimentar a partir dali
uma volumosa orquestra Odeon (conduzida por Gaya), a qual toca uma melodia
triste (um Benedictus), como uma
prece à ignorância humana. Entram o coro dos Golden Boys formando um cantochão
gregoriano. Junto, para realçar ainda mais a beleza melancólica do tema, a
guitarra volta a marcar a base e Milton soma ao coro o seu inconfundível
timbre, executando vocalises arrepiantes. O final, no órgão, desfecha-a num
evidente tom fúnebre de Missa dos Defuntos, até voltar ao toque quase de
cantiga de roda dos primeiros acordes. Agnus
Dei. Um desbunde. O porco e o cidadão brasileiro, perseguidos e sem voz,
foram abatidos. “Quem é animal e quem é
gente?”, fica a pergunta.
Depois de tanta magnitude, uma gostosa “Armina” com ares de bossa-nova ameniza
o astral visitando Tom Jobim e Billy Blanco. “Bolero”, na sequência, é uma
balada com riff bem rural escrita em
parceria com Luis, Robertinho e Milton, este último de quem evidentemente
partiu a ideia do violão-base tocado por Tavito, outro dos coautores. Nova
mostra de habilidade dos músicos em que Tiso, principalmente, se destaca
manipulando os dois pianos, assim como a flauta de Danilo Caymmi. O filho do
gênio baiano é quem dá os primeiros acordes de “Mar Azul”, outro samba-jazz moderníssimo feito para os
dedos de Tiso maravilharem num Hammond, tanto quanto Tavito ao violão 12
cordas. Da segunda metade para o fim, é geral o show de improvisos. Jazz
brasileiro puro.
A intensidade orquestral finaliza este histórico álbum com a quarta e
última seção de “Armina”, novamente com o toque de Verocai, que carrega nas
cordas e metais no início para, aos poucos, verter a sonoridade para as
madeiras, numa transição extremamente apurada e apenas perceptível quando a
flauta entoa a última nota, haja vista que aumenta um tom para terminar não num
registro suave, mas grave como deveria ser. Na capa da reedição em CD, de 2003,
vê-se um plano geral de uma mesa dá bem a dimensão do período de tristeza e
decadência que o País um dia se colocou: copos, garrafas de cerveja e de
uísque, todos vazios, acompanham um cinzeiro lotado de cinzas e baganas e um papel
surrado sobre um dos copos – que bem pode ser uma carta a um ente querido
impossível de ser postada por causa do cerco da ditadura ou uma confissão de
suicídio.
Naquele 1973, o enganoso “milagre brasileiro” do governo Médici
escondia ainda mais as torturas, perseguições e exílios promovidos desde o
AI-5, de cinco anos antes. As guerrilhas eram enfraquecidas e a população,
quando não ignorante, se calava à força. Sem precisar dizer quase nenhuma
palavra, “Matança do Porco” e “Milagre dos Peixes” formam um dos mais potentes
libelos contra a opressão da ditadura militar no Brasil, duas sinfonias em nome
da liberdade que todo brasileiro decente de então merecia. É o poder da música,
é a magia dos sons. Sons capazes de despertar o imaginário de quem consegue
entender o que é dito pelo coração.
Chego ao meu 50° ÁLBUM FUNDAMENTAL por um motivo especial. Embora todos
os discos sobre os quais escrevi sejam caros a mim, quando percebi que chegava
a essa marca não queria que fosse apenas mais um texto. Tinha que ser por um
motivo especial. Escreveria sobre os artistas brasileiros a quem ainda não
resenhei: Chico Buarque, Edu Lobo, Milton Nascimento, Paulinho da Viola? Ou das minhas queridas bandas britânicas, como The Cure, The Smiths, Cocteau Twins,
Echo and The Bunnymen? De algum dos gênios da soul, Gil Scott-Heron, Otis Reding, Curtis Mayfield, que tanto
admiro? Do para mim formativo punk rock
(Stranglers, Ratos de Porão, New York Dolls)? Obras consagradas de um Stravinsky ou alguma sinfonia de Beethoven? Outro de John Coltrane ou Miles Davis? Nenhum desses, no entanto, me pegava em cheio. A resposta me veio no
último dia 11 de junho, quando o saxofonista norte-americano Ornette Coleman deu adeus a esse
planeta. Aos 85 anos, Coleman morreu deixando não apenas o mérito da criação do
free-jazz como uma das mais revolucionárias
obras do jazz. A cristalização da proposta de inovação musical – e espiritual –
de Coleman veio pronta já em seu primeiro disco, o memorável “The Shape of Jazz to Come”.
Gravado no mesmo ano de 1959 que pelo menos outros dois colossos do
jazz moderno – "Kind of Blue", de Miles, arcabouço do jazz modal (agosto), e
“Giant Steps”, de Coltrane, a cria mais madura do hard-bop (dezembro) –, “The Shape...”, vindo ao mundo a 22 de maio,
não aponta para o lado de nenhum deles. Pelo contrário: engendra uma nova
direção para a linha evolutiva do estilo. Nascido no Texas, em 1930, Coleman
era daquelas mentes geniais que não conseguiam pensar “dentro da caixa”. No
início dos anos 50, já em Nova York, nas contribuições que tivera na banda de
seu mestre, o pistonista Don Cherry, ele, saudavelmente incapaz de seguir as
progressões harmônicas do be-bop, já
demonstrava um estilo livre de improvisar não sobre uma base em sequências de
acordes, mas em fragmentos melódicos, tirando do seu sopro microtons e notas
dissonantes, arremessadas contra às dos outros instrumentos, contra si
próprias. Fúria e espírito. Carne e alma.
Seu processo era tão complexo que, exorcizando clichês, atinge um
patamar até psicanalítico de livre associação e reconstrução do inconsciente
coletivo, o que levou um dos pioneiros do cool
jazz, John Lewis, a dizer: “Percebi
que Coleman cunhou um novo tipo de música, mais semelhante ao ‘fluxo de
consciência’ de James Joyce do que o entretenimento operado por Louis Armstrong com sua variação sobre uma melodia familiar”. Se na literatura este é seu
melhor comparativo, faz sentido colocá-lo em igualdade também a um Pollock nas
artes plásticas ou um Luis Buñuel no cinema. Na música, remete, claro, a Charlie Parker e Dizzie Gillespie, mas tanto quanto a compositores atonais da avant-garde como John Cage e György
Ligeti.
Em “The Shape...”, a desconstrução conceitual já se dá na formação da
banda. Traz o desconcertante sax alto de Coleman, a bateria ensandecida de Billy Higgins, o duplo baixo de outro craque, Charlie Haden (de apenas 22 anos
à época), e o privilégio de se ter o próprio Cherry, com sua mágica e não menos
desafiadora corneta. Nada de piano! Tal proposta, tão subversiva da timbrística
natural do jazz a que Coleman convida o ouvinte a apreciar, assombra de pronto.
“Lonely Woman”, faixa que abre o disco, é uma balada fúnebre e intempestiva. O free jazz, consolidado por Coleman um
ano depois no LP que trazia o nome do novo estilo, dá seus primeiros acordes nesse
brilhante tema. Dissonâncias na própria estrutura melódica, compasso
discordante da bateria e um baixo inebriado que parece buscar um plano etéreo,
longe dali. Algo já estava fora da ordem, anunciava-se. Coleman e Cherry,
pupilo e mestre, equiparados e expondo uma nova construção composicional aberta,
incerta, em que a música se cria no momento, numa exploração dramática conjunta.
Na revolução do free jazz, cada
membro é tão solista quanto o outro. “Eventually”, um blues vanguardista em
alta velocidade, e “Peace”, com seus 9 minutos de puro improviso solto, sem as
amarras do encadeamento tradicional, são mostras disso. Cada músico está ligado
ao outro primeiramente pelo estado de espírito, não apenas pela habilidade
técnica. E eles perdem o apelo momentâneo? Jamais, apenas o centro melódico é
outro. Os riffs e o tom estão lá como
os do be-bop; a elegância do blues trazida
do swing também. Mas o conceito e a
dinâmica aplicados por Coleman e seu grupo fazem com que se desviem das formas
tradicionais a as diluam, direcionando a uma tonalidade expandida como
praticaram Debussy, Messiaen e Stravinsky.
Nessa linha, "Focus on Sanity" se lança no ar inquieta, mas
logo freia para entrar o maravilhoso baixo de Haden, suingando, serenando-a.
Não por muito tempo: por volta dos 2 minutos e meio, Coleman irrompe e o grupo
retorna em ritmo acelerado para seu novo solo da mais alta habilidade de fúria
lírica. O mesmo faz Cherry, que entra raspando com o pistão e forçando que o
compasso reduza-se novamente. “Foco” e “sanidade”, literalmente. A inconstância
desse número dá lugar ao blues ligeiro "Congeniality". Mais
“comportada” das faixas, traz, entretanto, a fluência do quarteto dentro de um
arranjo em que se prescinde da referência harmônica das cordas – o piano. Pode
parecer um be-bop comum, mas, ditado
pela intuição e não pelo arranjo pré-estabelecido (tom, escala, variação),
definitivamente não é. Fechando o álbum, “Chronology” mais uma vez ataca na desconstrução
da progressão acorde/escala. As explosões emocionais súbitas de Coleman e seu
modo atritado e carregado de tocar estão inteiros neste tema.
Wayne Shorter, Anthony Braxton, Eric Dolphy, Albert Ayler, Pharoah
Sanders e o próprio Coltrane, mesmo anterior a Coleman, não seriam os mesmos depois
de “The Shape...”. O fusion e o pós-jazz nem existiriam. Coleman
influenciou não apenas jazzistas posteriores como, para além disso, roqueiros do
naipe de Jimi Hendrix, Don Van Vliet, Frank Zappa e Roky Erickson. Ele seguiu aprofundando esse alcance em vários momentos de sua trajetória. No ano seguinte
ao de sua estreia, emenda uma trinca de discos, começando pelo já referido
“Free Jazz” (dezembro) mais “Change of the Century” (outubro) e “This Is Our
Music” (agosto). Em 1971, surpreende novamente com a sinfonia cageana “Skies of
America”, para orquestra e saxofone. No meio da década de 70, ainda, adere ao fusion, quando lança o funk-rock “Body Meta” (1976),
recriando-se com uma música dançante e suingada.
Além disso, Coleman teve a coragem de legar ao jazz um sobgênero, o
que, juntamente com o contemporâneo “Kind of Blue”, referência inicial do jazz
modal, ajudou a desafiar conceitos e padrões estabelecidos. O jornalista e
escritor Ashley Kuhn, em “Kind of Blue: a história da obra de Miles Davis”,
recorda a receptividade de “The Shape...” à época entre músicos e críticos, os
quais vários deles (como um dos pioneiros do fusion, o pianista Joe Zawinul),
colocavam os dois discos em polos opostos: free
jazzversus modal. No entanto,
como ressalta Kuhn: “No fim das contas,
Coleman e Davis parecem mais filosoficamente compatíveis do que musicalmente
opostos: ambos dedicaram suas carreiras a reescrever as regras do jazz”.
Desde que meu amigo Daniel Deiro, que mora em Nova York, disse-me anos
atrás tê-lo assistido em um bar da Greenwich Village, fiquei esperançoso de
também vê-lo no palco um dia. Não deu. O astronauta do jazz, capaz de fazer
quem o ouve também flutuar sem gravidade, deixa como suficiente consolo uma
obra gigantesca e densa a ser decifrada, sorvida, descoberta. Como a de um
Joyce, Pollock ou Buñuel. Se a função do astronauta é desbravar o espaço,
Ornette Coleman cumpriu o mesmo papel através da arte musical, que ele tão bem
soube explorar em sua dinâmica atômica e imaterial através da propagação dos
sons no ar, na atmosfera. E o fez de forma livre, como bem merece um free jazz. Agora, então, foi ele que se
libertou para poder voar sobre outros planetas igual à sua própria música.