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terça-feira, 10 de dezembro de 2013

Donald Fagen - "Kamakiriad" (1993)



“O ápice da música pop:
Steely Dan e os solos Donald Fagen.
Eu nunca escutei NADA melhor e mais inteligente que isso.
Numa coleção de quase 30 mil discos esses são meus favoritos,
poderia escutar somente isso a vida toda.
Está tudo sintetizado numa coisa só:
soul, pop, jazz, rock, broadway, soundtrackish jazz, folk, funk, reggae, etc.”
Ed Motta


Gosto do Steely Dan desde 1972, quando ouvi na Continental 1120, pela primeira vez “Do It Again”. Meu próximo encontro com a banda seria dois anos depois quando “Rickie, Don't Lose That Number” fez sucesso. Mas só fui levar a banda a sério aos 17 anos, quando ouvi “Aja”. Claro que não entendi de imediato aquela mistura de música pop com jazz, já eu que estava me iniciando no assunto. Só fui começar a decifrar o SD e virar fã quando saiu o “Gaucho”, que eu comprei na Flora Viaduto o LP usado, mas inteiro, como vários de nós fizeram naqueles tempos.
Toda esta introdução tá aí em cima pra dizer que meu disco favorito da turma não é do Steely Dan, mas do cantor e tecladista do grupo, Donald Fagen, metade da laranja criativa que ele formou com o guitarrista e baixista Walter Becker, depois que demitiu todo mundo e resolveu que era muito mais interessante usar os músicos de estúdio à disposição em Los Angeles e em Nova Iorque.
O disco se chama “Kamakiriad” e foi lançado em 1993, onze anos depois do Fagen colocar nas lojas – e fazer muito sucesso – com seu primeiro trabalho solo, “The Nightfly” e a canção I.G.Y. (International Geophysical Year). Desde 1981, ele e Walter não se falavam. O guitarrista tinha produzido um monte de gente, especialmente a cantora e compositora Rickie Lee Jones em seu CD “Flying Cowboys”. Mas, em 1993, resolveram deixar de lado as diferenças e partiram para a produção do segundo disco solo de Fagen. E deu muito certo.
“Kamakiriad” é uma viagem conceitual beirando a science-fiction. Fagen inventou um carro, o tal Kamakiriad, que é autossustentável, tem até uma horta hidropônica dentro. E as faixas do disco contam os passeios malucos que Fagen faz dentro deste veículo maluco. Parece disco de bandas de prog rock mas não é. Tem um balanço e um swing digno dos melhores trabalhos do Steely Dan. Confesso que minha escolha por este disco é puramente sentimental. Comprei ele em 93 e nunca consegui parar de ouvir nestes 20 anos.
As viagens de Fagen em seu “Kamakiriad” começam com “Trans-Island Skyway”, onde Becker e o outro guitarrista Georg Wadenius criam uma teia de sons, enquanto o baixo (também tocado por Becker) segura o ritmo com o baterista Leroy Clouden. E estamos ouvindo um disco do Steely Dan. Já em “Countermoon”, Donald Fagen faz uso extensivo das possibilidades dos backing vocais, especialmente no final da canção onde Katherine Russell se estrebucha cantando “All Beware!!” sob o sax tenor do havaiano Illinois Elohainu. Como sempre fez. “Springtime” inicia com o baixo e uma percussão que parece ser programada mas não é. Assim como a bateria. Neste disco, fica mais claro o fascínio de Fagen & Becker por um ritmo mais estático, ao contrário dos discos do SD, onde nomes como os dos bateristas Steve Gadd, Jim Gordon, Ed Greene, Bernard Purdie e Jeff Porcaro brilhavam sobre as harmonias intrincadas e jazzísticas da dupla. E como em todo o disco, os sopros estão em contraponto com as guitarras e os teclados.
Esta predileção por steady rhythms - se vocês me permitem o inglês - fica bem marcada em “Snowbound”. Chris Parker mantém a batida, enquanto o órgão Hammond B-3 de Fagen vai pontuando ao lado das guitarras e do naipe de sopros. O fender rhodes tece aquelas harmonias steelydanescas. E a gente vai batendo o pezinho, se o Arthur de Faria me permitir usar esta “figura de linguagem”. “Tomorrow's Girls” é o que de mais aproximado temos no disco de um “hit”. Virou inclusive clip da MTV. Como todas as letras do Steely Dan são quase indecifráveis, devido ao intrincado jogo de palavras e referências que os rapazes criam, o clip também ficou “difícil”. Mas a canção é irresistível. Daquelas que a gente ouve e sai cantando pela rua, mesmo que ela tenha TRÊS refrãos diferentes, dentro da mesma métrica, é claro. Também aqui os produtores dão todo espaço a uma bateria de backing vocais que vão de Amy Helm (filha da mulher de Fagen, Libby Titus com o baterista do The Band, o falecido Levon Helm) aos irmãos Brenda & Curtis King. No final, Becker sola enlouquecidamente sobre uma cama de sopros.
“Florida Room” é uma das preferidas do disco. Tem um clima caribenho. E o refrão fala disso: “Quando o verão se vai / eu me apronto / para fazer aquela corrida pro Caribe / Tenho de ter /algum tempo sob o sol / Quando o vento frio chega / Eu sei onde as dálias florescem / Acabo voltando / pro seu quarto na Flórida”. O naipe de saxofones, trompetes e trombones está presente toda a música, sobre aquele ritmo “latino versão americana”. Mas o destaque absoluto é pro solo de sax tenor do grande e falecido Cornelius Bumpus. Um mestre em colocar as notas certas num espaço exíguo dos compassos que a dupla lhe dava.
Já em “On the Dunes” o clima não é tão ensolarado, pra não dizer sombrio mesmo. Fagen e Bekcer viram tudo do avesso. Começam com teclados e guitarras fazendo esta harmonia durante toda a canção. Na letra, o Kamakiriad para na praia e acontece um homicídio nas dunas, enquanto “barcos bonitos passeiam pela orla/ nas luz que escasseia/ mulheres bonitas com seu amantes a seu lado/ é como se fosse um sonho terrível/ que eu tenho toda a noite”. Mais uma vez, Bumpus manda ver no seu tenor. Entretanto, a estrela total desta canção está nos quase 4 minutos de solo de bateria de Christopher Parker sobre a harmonia final que vai se mantendo, como se fosse um ostinato. E não é um solo comum. Parker vai pontuando dentro dos espaços arquitetados por piano acústico, baixo, guitarras e sintetizadores. Genial.
“Teahouse on the Tracks” é o destino final do “Kamakiriad”, o local onde o narrador desta viagem se encontra com sua garota e diz que ela tem uma última chance de “aprender a dançar no Teahouse on the Tracks”. Aqui de novo, a bateria parece ser programada. Muita guitarra rítmica e teclados fazem a cama onde o trombone de Birch Johnson se esbalda.
Como em todos os discos do Steely Dan, Donald Fagen & Walter Becker trabalham com estruturas reconhecidas pelos ouvidos acostumados com a música pop, mas radicalizam nos detalhes, nas harmonias diferenciadas e na utilização do potencial de cada músico para cada canção. Eles sabem escolher quem vai tocar em seus discos. “Kamakiriad”, por isso, pode ser ouvido despretensiosamente. Mas se você prestar a atenção, tenho certeza que será fisgado.
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FAIXAS:
1. "Trans-Island Skyway" (Fagen) – 6:30
2. "Countermoon" (Fagen) – 5:05
3. "Springtime" (Fagen) – 5:06
4. "Snowbound" (Walter Becker, Fagen) – 7:08
5. "Tomorrow's Girls" (Fagen) – 6:17
6. "Florida Room" (Fagen, Libby Titus) – 6:02
7. "On the Dunes" (Fagen) – 8:07
8. "Teahouse on the Tracks" (Fagen) – 6:09

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OUÇA:

domingo, 5 de fevereiro de 2012

cotidianas #135 - Dentro



“... se conduzíssemos o otimista crônico pelos hospitais,
enfermarias e salas de operações cirúrgicas,
pelas prisões, câmaras de tortura e choças de escravos, por campos de batalha e locais de execuções;
se abríssemos para ele todas as moradas da miséria (...)
e, finalmente, deixássemos que ele olhasse para dentro dos famintos calabouços de Ugolino,
 também ele iria compreender, afinal, a natureza deste ‘melhor de todos os mundos possíveis’”.

de “O Mundo como Vontade e Ideia”


Tudo rangia. “Que saco!”, praguejava. Mas também não fazia nada para arrumar. “Que importa?” Lembrava-se de sua mãe, curvada e ridiculamente velha, dizendo: “apartamento velho é assim” – como se ela também não fosse; como se ela também não rangesse. Mas quando o apartamento é velho e descuidado, o resultado não pode ser outro. Tudo rangia: portas, chão, pia, janelas, cama, latrina, cadeiras, sofá. Arrepiava-se sempre que tinha que adentrar ao quarto, pois o som que a porta e o piso produziam sinfonicamente juntos era quase uma frase atonal: torta, irritante e sem sentido. Mas nem por isso fazia alguma coisa. Deixava assim. Ia deixando. “Uma hora isso se resolve. Ou então que vá tudo prum buraco mesmo!”
Sempre que ia à privada, por exemplo, a engrenagem da descarga produzia um urro sufocado que parecia humano, e que ia ficando cada vez mais humano semana após semana. Na verdade, a tubulação toda produzia tanto ruído que lhe parecia haver uma comunidade inteira viva por detrás do reboco, com pessoas que hora e outra conversavam, discutiam, riam, choravam, mexiam-se, e isso mesmo quando não corria água – o que lhes justificaria minimamente a existência dentro daqueles canos de metal tomados de ferrugem e limo. Às vezes tinha clara a impressão de que morava gente ali.
Mas o que importavam esses “dejetos materiais”, os objetos, as coisas inanimadas? Era tudo um saco, mas viver sozinho, pelo menos, lhe garantia que ninguém ia lhe importunar. Nenhuma voz pra incomodar, nem de mãe, nem de filho, nem de ex-mulher, nem de putas. Uma vez, depois de gozar dentro de uma vadia, acometeu-lhe uma certeza inexplicável de que só se sentira feliz nessa vida porca e suja quando estivera no útero. Hoje, ele ri do episódio, pois acha engraçado lembrar como terminou aquela transa: mandando-a embora de sua casa, irado e chorando, a golpes com o fio do abajur. Ela gritava: “pára! Pára, seu merda!” E ele dizia, sabe-se lá porque: “Ixíon, sua vadia!! Ixíon!!” Esbravejava, num prazer enlouquecido bem melhor do que o da gozada. Acordou todo o prédio aquela noite.
Agora, lembrava-se e ria, ria. Ria muito, convulsivamente. Babava-se. E para si. Para a casa. Pois nada fazia diferença: podia gritar ou emudecer-se que não faria a menor diferença. Para que mantinha aqueles livros empoeirados na estante? Letras, Filosofia, mais letras, hunff! Para que, se já lera e embaralhara tantas nesses mais de 50 anos? O que isso lhe trouxe? E as fotos sobre a mesa: “para quê?”, indagava-se, mas não achava resposta alguma. Estavam lá os porta-retratos do filho crescido e ausente, outro do filho morto, outro da ex-mulher – infelizmente viva e presente –, da sacal mãe e até daquele cachorro insuportável que enchia de pelo toda a casa (e que graças a Deus já morreu também!). E por que não os recolhia e socava tudo num baú? Não sabia. Talvez porque não tivesse baú... só por isso.
Sem ter outra coisa pra fazer, foi mijar. Acendeu a luz do banheiro, tão clara que resplandecia até o teto daquele pé direito tão alto que parecia tocar o céu. Descarregou a urina com toda a autocomplacência que nem achava que merecia e, num automatismo estúpido e sem vontade, deu a descarga.
- Ei, você.
Falou.
- É, você mesmo.
Fez-se um breve silêncio, mas logo em seguida, na boa acústica típica dos banheiros, a voz reverberou novamente:
- Não vai me responder? – disse, naquele tom falsamente choroso de quem fica magoado pelo silêncio do outro.
- Si... sim, mas... o que você quer? – respondeu àquela voz que emanava de dentro do vaso como se aquilo fizesse algum sentido.
- É, meu amigo: “Quanto mais distintamente o homem souber, mais dor ele terá”, não é, senhor das vontades já cumpridas?
Silêncio (de concordância).
- Está em Schopenhauer...
- Quê, Schopenhauer?! – saltou-lhe com violência da boca a pergunta, que recebeu, em troca, uma resposta cinicamente leve:
- É: Schopenhauer. Arthur Schopenhauer – disse a voz –. Sei que se decepassem tua cabeça do corpo agora ela ia imediatamente cravar os dentes no teu braço. Iam lutar entre si como idiotas, feito uma formiga-buldoque, não é? Rárá! Claro que sim! Eu sei, eu sei. Tu bem sabes também.
- É... eu sei...
A voz do urro, até então irônica mas sempre no mesmíssimo timbre sufocado de quando só urrava, endureceu:
- Então, o que vai ser?
- ...
- E?...
- É, eu vou.
- Muito bem, meu rapaz! Muito bem. Assim é que se fala. Isso: faça assim mesmo como estás.
Hesitou um pouco no silêncio gélido do banheiro. Mas foi. Não tirou nem a roupa. Entrou dentro do vaso, escorregando com desenvoltura pela louça. Já totalmente lá dentro, tirou para fora o antebraço e, com o indicador, deu um toquinho no tampo, que caiu quicando sobre o assento.
Depois daquele estrondo, o eco se perdeu e a calmaria reinou. Tudo ficou escuro, quente e úmido outra vez.

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