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terça-feira, 2 de maio de 2017

Talking Heads – “77” (1977)



“Sem essa de Elvis, Beatles, ou Rolling Stones/
(...) Em 1977, eu espero ir para o céu.”
Da letra de “1977”, do The Clash


O ano de 1977 pode ser considerado o do nascimento oficial do punk-rock. As duas principais bandas da cena, Sex Pistols e The Clash, lançavam seus primeiros discos naquele ano, empestando o ar do Velho Mundo com o mau cheiro de um som cheio de fúria e crítica junto com Buzzcocks, Damned, Wire, The Stranglers e outros. Do outro lado do mundo, “Rocket to Russia”, do Ramones, tornava-se um clássico imediatamente que chegava às lojas; a dupla do Suicide trocava guitarras por teclados, forjando um som tão sujo quanto o de qualquer grupo de formação tradicional; “Marquee Moon”, do Television, espantava público e crítica pela inventividade de Paul Verlaine e Cia.; e Richard Hell, com “Blank Generation”, carimbava seu documento definitivo na história do rock. Decididamente, o espírito do “faça você mesmo”, surgido no underground norte-americano desde a segunda metade dos anos 60 – através da música, da moda, da arte gráfica, entre outros –, chegava, enfim, ao grande público. Sem mais Baetles, Rolling Stones ou Elvis Presley: a vez era do punk.

Porém, a contestação ao establishment, elemento chave da cultura punk, era nutrido de múltiplas interferências. Tanto que não era preciso necessariamente andar esfarrapado como Joey Ramone, arranjar confusão como os arruaceiros dos Dead Boys ou ser um junkie declarado como Syd Vicious. Havia aqueles que comungavam das mesmas ideias transgressivas, mas à sua maneira: sem briga, sem drogas e, universitários que eram, vestindo a roupa que seus pais lhe enviavam de presente no Natal. Com cara de bons moços, os Talking Heads contribuíam sobremaneira para a cena mandando ver, isso sim, no som.

Foi no hoje mítico bar CBGB, em Nova York, que David Byrne (voz, guitarra), Chris Frantz (bateria), Tina Weymouth (baixo) e Jerry Harrison (guitarra e teclado) trouxeram a gênese do som que conquistaria o mundo pop por mais de uma década. Este rico embrião está num dos discos mais marcantes do ano de 1977, cuja história, hoje, transcorridos 40 anos, mostra não ser coincidência chamar-se justamente “77”. O debut da banda une a crueza da sonoridade punk a um estilo muito peculiar das composições, cujos elementos melódicos e harmônicos já apontavam claramente para referências além da combinação de três acordes do punk. Byrne, líder e principal compositor, já denotava preferências por harmonias fora do tempo, variações bruscas no compasso, a incursão de ritmos latinos e exóticos, a desaceleração em comparação ao ritmo frenético do tipo “hey, ho, let’s go!” e, claro, seu inigualável vocal, de timbre bonito e considerável alcance mas não raro propositalmente rasgado ou picotado. Resultado dessa química esquisita é um disco que abre portas para aquilo que viria na esteira do punk, a new wave.

Produzido por Lance Quinn e Tony Bongiovi – este último, responsável por dar corpo a outro marco do punk naquele mesmo ano, o já mencionado “Rocket to Russia” –, “77” traz uma sonoridade potente e muito bem equalizada, dando destaque a todos os instrumentos, que soam com vivacidade. "Uh-Oh, Love Comes to Town" abre mostrando que, além disso, eles não eram convencionais de fato na composição. Nada de batida acelerada e guitarras arrotando distorção. Os Heads dão seus primeiros acordes num funk estilo “I Want You Back“, dos Jackson Five, porém com as guitarras sujando o espaço sonoro e a voz de Byrne funcionando quase como um arremedo yuppie à do pequeno Michael Jackson.

Uma das joias do disco, “New Feeling”, por sua vez, já começa a apresentar a faceta atonal de Byrne e sua turma. As duas guitarras cumprem, cada uma num tempo, duas linhas melódicas diferentes. Isso fora o ritmo quebrado, que dá a sensação de desequilíbrio e descompasso que tanto explorariam em discos como “Fear of Music” (“Paper”, “Mind”), de 1979, ou “Speaking in Tongues” (“Swamp”), de 1983. A paródia militar "Tentative Decisions" – cuja ideia se verá noutras canções do grupo mais adiante, como “Thank You for Sending Me an Angel” e “Road to Nowhere” – abre caminho para uma canção mais linear, “Happy Day”, balada quase pueril que traz outras peculiaridades da banda, que são o refrão criativo – um dos motivos dos Heads se tornarem empilhadores de hits – e a guitarra “percutida”, em que as cordas são raspadas, friccionadas, extraindo do instrumento um som exótico, africanizado, diferente do tradicional.

“Who Is It?” retraz o funk, agora mais desengonçado (ou seria “com atitude punk”?) do que nunca. É muito interessante ver como Byrne desmembra os ritmos da raiz da música pop para, logo em seguida, reescrevê-lo à sua maneira. A faixa antecede uma das melhores do álbum e das principais sementes plantadas pelos Heads em termos de musicalidade: “No Compassion”. A exemplo de outros temas que a banda viria a escrever, como “Warning Sing” (1978) e “Give Me Back My Name" (1985), esta carrega uma atmosfera densa e que a faz naturalmente soar como um clássico desde que se ouvem os primeiros acordes. A batida forte e cadenciada de Frantz; o baixo de Tina impondo-se; a primeira guitarra de Harrison executando uma base dividida em dois tempos; a guitarra solo desenhando um riff sinuoso. A sonoridade é tão bem produzida que servirá de matriz para o que desenvolveriam junto a Brian Eno em “More Songs About Buildings and Food”, no ano seguinte. Além disso, é das poucas que tem momentos de punk-rock pogueado, mostrando que o Talking Heads estava, sim, muito próximo de seus companheiros de CBGB.

O segundo lado do formato vinil começa ainda melhor que o primeiro com "The Book I Read". A guitarra “percutida”, como um cavaquinho ou algo parecido, anuncia um riff um tanto dissonante. Mas o que se apresenta quando a banda e o vocal entram juntos é um belíssimo pop-rock em que Byrne dá um show de vocal – ao menos, a seu estilo, que vai do melódico ao rascante. Destaque especial para o baixo da competente Tina, que além da base muito bem executada é quem faz o “solo” num acorde de quadro notas junto com o cantarolar (“Na na na na”) de Byrne. Diz-se “solo” entre aspas pois, afinal, eles são uma banda punk, sem a habilidade dos dinossauros do rock de então, mas que sabiam resolver ideias com muita criatividade – o que, convenhamos, é até melhor em muitos casos.

Mais um exemplo típico da musicalidade diferenciada de Byrne é “Don't Worry About the Government”, canção cheia de sinuosidades, mas bastante melodiosa, visto que sua base é um toque semelhante ao de uma delicada caixa de música. Outra das brilhantes é "First Week/Last Week... Carefree", um rock com toques latinos e a cara do que os Heads formaram enquanto estilo ao longo dos anos haja vista várias outras músicas de semelhante ideia como: “Crosseyed and Painless” (1980), “Slippery People” (1983), "The Lady Don't Mind" (1985) e “Blind” (1988). Estão em “First Week...” elementos como os instrumentos afro-latinos (reco-reco, marimba), o canto gaguejado de Byrne, seus vocalizes malucos e o uso de metais, que lançam frases sonoras típicas de um “Ula Ula” havaiano.

Como todo grande disco, “77” tem seu hit. E neste caso é a imortal (com o perdão da expressão) "Psycho Killer". Engenharia de som perfeita: o baixo inicial e todos os outros instrumentos que entram são claramente notados, conjugando-se com a voz mais uma vez liberta de Byrne para um riff matador (sic) e uma melodia de voz daquelas que não desgrudam da mente – ou da psique. Tanto que é quase impossível os acordes tocaram e alguém não saber cantarolar o refrão: “Psycho killer/ Qu'est-ce que c'est/ Fa, fa, fa, fa, fa, fa, fa, fa, fa, far better/ Run, run, run, run, run, run, run, away”. Ouvem-se sem erro em “Psycho...” Gang of Four, P.I.L., Polyrock, Replacement e outras bandas advindas com o post-punk anos mais tarde. Além de um clássico, revela o estilo próprio da banda e porque ela foi/é tão influente a toda uma geração do rock.

A talvez mais punk-rock, a agitada “Pulled Up", encerra o disco, um dos grandes de estreia da história do rock – figura em 68º da lista dos 100 melhores primeiros álbuns pela Rolling Stone, entre os 300 dos 500 maiores da história da música pop, pela mesma revista, e entre os 1001 essenciais de se ouvir antes de morrer, conforme livro de Robert Dimery. “77” aponta a rota que a banda e, mais amplamente, a própria cena punk iriam tomar. Fora os já mencionados grupos post-punk, dá para dizer com segurança que um ano depois o álbum já se fazia essencial: a Devo, produzida por Eno, não existiria sem o exemplo dos Heads e nem o Blondie rumaria com tamanha assertividade a uma “popficação” de seu som sujo original. Junto ao que os também estreantes Sex Pistols, The Clash, Television, Richard Hell e outros, o Talking Heads assinalava aquele ano como um dos mais estelares da história do rock, um ano capitulado como “77”.

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Talking Heads - “Psycho Killer”



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FAIXAS:
1. "Uh-Oh, Love Comes to Town" – 2:48
2. "New Feeling" – 3:09
3. "Tentative Decisions" – 3:04
4. "Happy Day" – 3:55
5. "Who Is It?" – 1:41
6. "No Compassion" – 4:47
7. "The Book I Read" – 4:06
8. "Don't Worry About the Government" – 3:00
9. "First Week/Last Week ... Carefree" – 3:19
10. "Psycho Killer" (Byrne, Chris Frantz, Tina Weymouth) – 4:19
11. "Pulled Up" – 4:29
Todas as faixas compostas por David Byrne, com exceção da indicada.

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OUÇA O DISCO


por Daniel Rodrigues

sábado, 10 de dezembro de 2016

Janelle Monáe - The ArchAndroid" (2010)




“ ["The ArchAndroid"] é uma múltipla visão
da música do passado e do futuro
nos Estados Unidos.”
The New York Times




Dance music, cinema, arte pop, funk, ficção científica, soul, estilo, disco music, hip-hop, ousadia. Estes são alguns dos elementos combinados com muito talento por Janelle Monáe em seu disco de estreia, o surpreendente "The ArchAndroid". Um disco cheio de proposições e alternativas que só quem é do ramo, quem tem a manha da coisa sabe fazer e a jovem Janelle demonstrava logo de cara, em seu segundo trabalho, que dominava a arte com autoridade.
Depois de uma introdução altamente cinematográfica "Suite II - Overture" o disco se desenvolve numa sequência frenética numa sucessão de músicas pop de alta qualidade de tirar o fôlego. "Dance Or Die", que não por coincidência lembra a diva Grace Jones remetendo ao nome de uma de suas canções, "Do Or Die" invoca visões sombrias de um futuro convocando uma resistência à desumanização que o mundo tenta nos impor, numa audaciosa peça musical que vai do charleston ao hip-hop com impressionante agilidade. Sem deixar respirar emenda na acelerada "Faster", um pop jazzístico contagiante que por sua vez passa quase sem percebermos para a ótima "Locked Inside" uma charmosa releitura disco, e só então o disco dá uma desacelerada com a balada "Sir Greendown", na qual um órgão elétrico lhe confere um estilo todo vintage.
"Cold War", um pop-rock impetuoso repleto de ficção científica e "Come Alive", uma espécie de rockabilly soul alucinado minhas preferidas do álbum. A interessante "Tightrope" tem uma batida alta, intensa, e uma pegada mais hip-hop; "Oh, Maker" é uma balada folk acompanhada por uma batida ritmada; e a voz modificada de Janelle "Mushroom and Roses" lhe confere uma atmosfera ao mesmo tempo robótica e psicodélica em mais uma que parece saída de um filme sci-fi, com destaque especial para o trabalho de guitarra na canção.
"Neon Valley Street" e "Say You'll Go" são típicas representantes do soul americano, esta segunda em especial, excelente, muito ao estilo de Marvin Gaye de "What's Going On" ou de Michael Jackson antes de ficar branco e chato. "More The Bus" e "Wondaland" por sua vez são canções pop mais convencionais, mas não menos interessantes e qualificadas, e "57821" por sua vez, é uma canção lenta, frágil, que parece querer se desvanecer no ar a qualquer momento.
Abrindo omo uma trilha para filme de 007 e metamorfoseando-se como uma criatura mutante, "BaBopByeYa" fecha o disco refirmando seu caráter cinematográfico que, na verdade, por conta de suas vinhetas espalhadas ("Suite II", "Suite III", "Neon Gumbo"), finais estendidos e introduções dramáticas não tem como não ser notado, isso sem falar na capa e no visual Metropolis.
"The ArchAndroid" é tão diversificados em suas alternativas, musicalidade, recursos e interpretações vocais que poderia até parecer uma trilha sonora para algum filme feita por vários artistas. Mas não! Incrivelmente é uma só e, por sinal, uma das mais talentosas e completas que pintaram por aí nos últimos tempos. Prova de que para fazer música pop nos dias de hoje não precisa necessariamente ser repetitiva ou apelativa. Sei que muitos se contentam com a mesma batida, uns gemidinhos e uma bunda balançando, mas muitos de nós ainda querem isso: qualidade, criatividade e talento.
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FAIXAS:

  1. Suite II Overture 2:31
  2. Dance Or Die 3:12
  3. Faster 3:19
  4. Locked Inside 4:16
  5. Sir Greendown 2:14
  6. Cold War 3:23
  7. Tightrope 4:23
  8. Neon Gumbo 1:37
  9. Oh, Maker 3:47
  10. Come Alive (The War Of The Roses) 3:22
  11. Mushrooms & Roses 5:42
  12. Suite III Overture 1:41
  13. Neon Valley Street 4:11
  14. Make The Bus 3:19
  15. Wondaland 3:36
  16. 57821 3:16
  17. Say You'll Go 6:01
  18. BabopbyeYa
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Ouça:
Janelle Monáe The Archandroid


Cly Reis

quarta-feira, 3 de agosto de 2016

Museu de Cera de Petrópolis - Petrópolis - RJ










A fachada do Museu de Cera de Petrópolis.
 Estive há pouco tempo em Petrópolis onde já havia ido algumas vezes e já visitara tradicionais pontos turísticos da cidade como o Museu Imperial, a Casa de Santos Dumont, a bela catedral de estilo neogótico, entre outros, mas como não ia lá a fazia alguns anos não conhecia o Museu de Cera, atração relativamente nova, inaugurado em 2011, e que me surpreendeu positivamente.
Ele é modesto, pequeno, não é nenhum Madame Tussaud de Londres mas não decepciona. Se não tem um grande número de peças, as que apresenta são de um modo geral, ótimas reprodução de impressionantes semelhanças, feitas, a propósito, por um escultor norte-americano que tem obras no mencionado famoso museu londrino.
A reprodução de Dom Pedro II, embora, obviamente, nunca tenha visto pessoalmente o monarca brasileiro, espanta pelo realismo; Michael Jackson e Gilberto Gil também são extremamente vivos e reais; Einstein e o Papa João Paulo II merecem destaque igualmente; e há ainda os personagens de cinema como Batman, Jack Sparrow, o extraterrestre ET, entre outros, não menos bem representados em suas estátuas.
Se for à serra fluminense, em especial a Petrópolis, além da bela paisagem, dos prédios históricos e da boa gastronomia, vale a pena conhecer o Museu de Cera, um dos poucos do gênero no país e, com certeza, pelo padrão de qualidade das obras, um dos melhores.

Ayrton Senna, logo na entrada da exposição.

Dom Pedro II impressiona pelo realismo.

Ótima escultura do Papa João Paulo II.

Einstein e suas anotações.

Gilberto Gil muito semelhante também.

Michael Jackson, outra das obras que chama a atenção.

O mestre do suspense Hitchcok.

O blogueiro tentando tirar uma casquinha da Marylin.
(Ih, é cera!)


Museu de Cera de Petrópolis
endereço: Rua Barão do Amazonas, 35 – Centro - Petrópolis - RJ - tel: (24) 2249-1595
visitação: terça a domingo, das 10h às 17h. Sábados: 10h às 18h.
ingresso: R$ 32,00 e R$ 16,00 (estudantes e idosos)
grupos acima de 15 pessoas terça a sexta : inteira R$28,00 / meia R$14,00.
moradores de Petrópolis: R$25,00 c/comprovante



Cly Reis

sexta-feira, 4 de março de 2016

Talking Heads - "True Stories" (1986)




“Quando terminamos as bases e os vocais
para aquela leva de músicas,
 começamos a ensaiar um material
que poderia render ainda mais um disco,
mas que eu havia composto para o filme.
Quando ‘Little Creatures’ saiu,
 eu já estava no Texas para filmar ‘True Stories’.
Levei as fitas de multicanal com as nossas faixas-base
para as músicas do filme até o set de filmagens em Dallas
e adicionei um pouco do tempero texano”.
David Byrne,
em seu livro
“Como funciona a música”.



O ano de 1986 é especial para quem pegou o rock dos anos 80. Talvez junto apenas com o ano anterior (que viu nascerem "Meat is Murder", dos Smiths"The Head on The Door", do The Cure, e "Psycho Candy", da The Jesus and Mary Chain), tanto no Brasil quanto fora houve discos essenciais de bem dizer todas as grandes bandas e artistas da cena pop da época. No cenário internacional, em especial, muitos se superariam no sexto ano da chamada “década perdida”. Siouxsie and the Banshees poria na praça o sucesso “Tinderbox”, a P.I.L; de John Lydon chegaria ao auge com "Album" e Smiths e New Order estourariam nas rádios com “The Queen is Dead” e "Brotherhood" respectivamente, para ficar em apenas quatro exemplos. Embora de sonoridades distintas, mesmo que afim em certos aspectos, o ponto que os unia era o fato de que, já trilhados alguns anos e discos lançados, todos chegavam naquele momento mais maduros e donos de sua música. Assim, 1986 trouxe uma culminância de grandes álbuns não por coincidência, mas por que representou o desenvolvimento artístico da geração vinda do punk.

Essa onda atingiu outra grande banda do final dos 70/início dos 80: o Talking Heads. Liderados pelo talentoso esquisitão David Byrne, os Heads, surgidos na cena punk nova-iorquina, haviam largado com o referencial "77", daquele ano, passado pela brilhante trilogia com Brian Eno (“More Songs about Bouildings and Food”/"Fear of Music"/"Remain in Light") e pelo bom “Sepeaking in Tongues”, além de mais três registros ao vivo. Nesse transcorrer, atravessaram a virada dos anos 70 para os 80 avançando em estilo e personalidade. Se no começo, comandados pelo produtor Toni Bongiovi, foi o proto-punk e, logo em seguida, Eno os tenha empurrado para o experimentalismo pós-punk e para a world-music, em “Speaking...”, de 1982, passam a produzir a si próprios e mostram uma intenção pop-rock mais refinada. Afinal, a criatividade de Byrne, seu principal compositor, nunca correspondeu exatamente à tosqueira do punk-rock genuíno dos colegas de CBGB Ramones e Richard Hell. Veio, então, outra joia da safra 1985: “Little Creatures”, para muitos o melhor trabalho da banda e um dos ápices do pop-rock dos Estados Unidos. De admirável musicalidade, trazia pelo menos dois hits marcantes: “Lady Don’t Mind” e “And She Was”. Seriam Byrne & cia. capazes de superar aquele feito? A resposta veio um ano depois, no fatídico 1986, não apenas em um disco, mas num até então incomum projeto multimídia: o disco-filme-livro “True Stories”, que está completando 30 anos em 2016.

Para a época, o que hoje é comum no showbizz, em que um artista grava o CD, DVD, videoclipe e um documentário num mesmo espetáculo sem precisar gastar uma fortuna, foi bem impressionante a ousadia de Byrne, o verdadeiro “head” do projeto. Não se via uma proposta naquele formato até então, no máximo os abastados clipes-filmes de Michael Jackson. Neste, entretanto, de feições quase intimistas, Byrne, dentro de um mesmo tema, dirigiu um filme, atuou nele, lançou um livro de fotos e textos e ainda criou de cabo a rabo um disco, componto-o e produzido-o por inteiro. E mais: tudo de altíssima qualidade! Da turma que aprendeu com Andy Warhol a transformar produto em arte, Byrne e seus habilidosos companheiros de grupo – a ótima baixista Tina Weymouth, o competente baterista Chris Frantz e o versátil guitarrista e tecladista Jerry Harrison – traziam três “produtos culturais” interligados mas independentes entre si. Pode-se ver o filme e não comprar o disco ou ler o livro e por aí vão as combinações. Há quem teve o primeiro contato com a obra, por exemplo, através dos clipes da MTV (de certa forma, um quarto tipo de produto cultural) e depois ouviu o disco ou assistiu ao filme.

Para se falar sobre as músicas, no entanto, é fundamental que se comece abordando sobre o filme. Em "Histórias Reais" (tradução nos cinemas no Brasil), um narrador, encarnado pelo próprio Byrne, percorre como um repórter a pequena Virgil, no estado do Texas, em plena comemoração dos 600 anos da cidade, onde encontra diversos personagens hilários e típicos. Conforme as situações vão se apresentando, as músicas da trilha vão surgindo. Byrne, escocês radicado nos EUA, cria um filme no qual engendra com delicadeza e humor uma crônica cotidiana da vida norte-americana, tudo permeado por um olhar aparentemente infantil mas carregado de perspicácia e ligado à relação emocional do autor com o seu lugar. Lindamente poético, algo entre o documental e a fantasia, o longa sintetiza as belezas e as fragilidades do povo do país mais poderoso do mundo.

Como se vê, no filme está a razão do trabalho musical, pois este funciona como uma trilha sonora que veste a narrativa da história filmada ao mesmo tempo em que é “apenas” mais um disco de carreira do Talking Heads, seu sétimo de estúdio. Na seara de avanço de seu próprio estilo, eles repetem acertos do passado, principalmente de seu trabalho antecessor “Little Creatures”. A começar, assim como o disco anterior, um pouco por coincidência “True Stories” também tem dois hits marcantes. O primeiro deles é “Love for Sale”, que o abre. A letra já denota com humor e distanciamento crítico o caráter pueril e materialista do ser norte-americano, que põe tudo à venda, até – e principalmente – o amor. “O amor está aqui/ Venha e experimente/ Eu tenho amor pra vender”, canta, enquanto, no clipe, imagens de publicidade pulam na tela em cores vibrantes e kitch. Divertido, o clipe é a própria cena extraída do filme, numa total interação entre as obras. E que grande música! A batida lembra a de “Stay up Late”, de “Little...”, só que mais acelerada, e o riff, memorável, é daqueles que se reproduz o som com a boca. Pode-se colocá-la na classificação de perfect pop, músicas de estrutura perfeita e próprias para tocar no rádio mas que guardam qualidades genuínas de estilo e composição.

Com uma pegada bastante Brian Eno pela base no órgão, “Puzzlin' Evidence“ – no filme, a cena de um culto religioso em que se projeta um vídeo com as maravilhas da tecnologia e do poderio bélico e financeiro yankee – tem o vigor do gospel, principalmente no refrão, com o coro cantando com Byrne: “Puzzling Evidence/ Done hardened in your heart/ Hardened in your heart”. Em seu livro “Como Funciona a Música”, de 2012, ele comenta que compôs as faixas de “Little...” e “True...” praticamente ao mesmo tempo, por isso as semelhanças entre um e outro. No caso do segundo, o que já se diferenciava em sua cabeça era a aplicação: seriam músicas para o filme que ainda pretendia rodar. Assim, já no Texas para inteirar-se das locações, levou consigo as demos ainda por finalizar e lá teve a ideia de inserir os elementos mais peculiares do folk norte-americano, como o acordeom Norteño, a steel guitar e o coral de igreja protestante de “Puzzlin'...”.

Durante todo o disco, a bateria de Chris é especialmente amplificada, ótimo ensinamento pescado da faixa “Television Man”, de “Little...” – resgatada, porém, de antes, pois já nota-se isso em “Electric Guitar”, de “Fear of Music”, de 1979. Pois a caribenha “Hey Now” é marcada com essa batida forte, acompanhada de bongôs e de uma guitarrinha ukelele, a mesma que faz um solo totalmente no espírito ula-ula. Por conta de seu ritmo e melodia quase lúdicos, no filme, Byrne a arranjou diferentemente: são crianças, todas com instrumentos improvisados como pedaços de pau e latas, quem, numa das passagens mais bonitas, entoam os versos: “I wanna vídeo/ I wanna rock and roll/ Take me to the shopping mall/ Buy me a rubber ball now”.
“Papa Legba”, das melhores de “True...”, é outra que mostra como a banda aprendeu consigo própria. A programação eletrônica faz intensificar o ritmo sincopado da música africana, que começa com percussões típicas do brasileiro Paulinho da Costa, um craque, e um canto quase tribal extraído por Byrne. Visível influência dos trabalhos com Eno, principalmente do world-music “Remain in Light”. O tema em si é lindo: um canto ritualístico do vudu haitiano (“Papa Legba” significa aquele que serve como intermediário entre a loa – mundo dos espíritos – e o homem) que é usado no filme quando o personagem de John Goodman, um homem em busca de uma carreira como cantor, recorre a esta espécie de pai-de-santo – vivido pelo cantor Pops Staple, que a canta lindamente. No disco, é Byrne quem está nos microfones, esbaldando-se em seu vocal rasgado e emotivo.

O segundo lado no formato LP abre com outro hit e outro perfect pop: a sacolejante "Wild Wild Life", marco dos anos 80 e da música pop internacional. Impossível ficar parado se estiver tocando numa pista. Além da letra ácida, a canção, bem como seu clipe, também extraído do filme, é superdivertida, num convite a se assumir o “lado selvagem”. Várias pessoas, os integrantes da banda e atores, sobem num palco em um programa de tevê fazendo playback e interpretando as figuras mais exóticas. O refrão, de versos móveis, é daqueles inesquecíveis de tão naturalmente cantaroláveis: “Here on this moutain-top/ Oh oh/ I got some wild wild life/ I got some news to tell ya/ Oh oh/ About some wild wild life...”.

Alegre e ritmada, "Radio Head" lembra a levada das bandinhas folclóricas europeias (as que migraram para os EUA em várias localidades), ainda mais pelo uso da gaita-ponto. Mas, claro, com o toque todo dos Heads, desde a forte batida de Chris, as percussões de Paulinho da Costa – contribuinte costumaz da banda –, e o vocal aberto de Byrne, perito em criar refrãos pegajosos, como o desta: “Transmitter!/ Oh! Picking up something good/ Hey, radio head!/ The sound... of a brand-new world”, “Radio Head” guarda uma curiosidade: é a música em que Byrne se inspirou num verso de Chico Buarque – de “O último blues”, da trilha do filme “Ópera do Malandro” – e que, por consequência, inspirou o nome da banda inglesa, que juntou as duas palavras.

A melódica “Dream Operator” – que no filme transcorre numa engraçada sequência de um desfile, mais bizarro e brega impossível – tem uma bela letra, a qual versa sobre o eterno estado de sonho em que vivem os norte-americanos: “Todo sonho tem um nome/ E nomes contam a sua história/ Essa música é o seu sonho/ Você é o operador de sonho”. Algo nem bom nem ruim: apenas verdadeiro. Outra clássica do álbum, “People Like Us”, tema-chave do filme, é, assim como “Creatures of Love”, de Little...”, um típico country-rock, com direito a guitarra com pedal steele de Tomy Morrell. Uma verdadeira declaração de amor do estrangeiro Byrne para os EUA, reverenciando a cultura daquele país e ao mesmo tempo totalmente integrado nela. Os versos iniciais dizem tudo: “Quando nasci, em 1950/ Papai não podia comprar muita coisa para nós/ Ele disse: ‘Orgulhe-se do que você é’/ Há algo de especial em pessoas como nós”. E o refrão, dentro da mesma ideia de “Creatures...”, não deixa por menos, impelindo-nos a enxergar a alma norte-americana com um olhar mais humano: “Não queremos liberdade/ Não queremos justiça/ Só queremos alguém para amar”.

De ritmo parecido a outra faixa de “Little...”, “Walk it down”, bem como a outras daquele álbum no refrão de coro em tom entoado, como “Perfect World” e “Road to Nowhere” (a ideia vem desde o primeiro trabalho com Eno, em “The Good Thing”, de 1978), “City of Dreams” desfecha a obra com puro lirismo. A letra fala da perda de identidade provocada pelas aculturações e dizimações, algo muito presente na formação de sociedades modernas como a norte-americana: “Os índios tinham uma lenda/ Os espanhóis viviam para o ouro/ O homem branco veio e os matou/ Mas eles não sabem quem realmente foram”. Porém, artista sensível como é, Byrne joga luzes otimistas sobre o futuro daquela nação e suas gentes, tendo como metáfora a pequena Virgil: “Vivemos na cidade dos sonhos/ Nós dirigimos na estrada de fogo/ Devemos despertar/ E encontrá-la por fim/Lembre-se disso, nossa cidade favorita”.
Se “True...” deve muito a “Little...”, que lhe serviu de espelho em vários aspectos, também é fato que o disco de 1986 supera seu antecessor em completude conceitual, uma vez que conversa o tempo todo com a obra filmada e, consequentemente, com o trabalho fotográfico posto em páginas. Além do mais, o sucesso alcançado por “True...”, seja motivado pela mídia televisiva e radiofônica ou pelas telas do cinema, foi consideravelmente maior de tudo o que já jamais conseguiriam, tendo em vista que “Wild Wild Life” ficou por 72 semanas no 25º posto da Billbord, melhor posição de uma música da banda nesta parada. Comparações afora, o fato é que ambos os discos revelam um grupo no auge de sua capacidade criativa, produzindo música pop sem descuidar das próprias intenções e aspirações.

Tudo isso está ligado bastantemente à iniciativa de David Byrne que, com o passar do tempo, foi se tornando cada vez mais o principal compositor e criador da banda, a ponto de passar a ser o único. Assim, se “True...” é o ápice dos Heads, também é o começo de seu declínio. A redução paulatina mas permanente da participação de Chris, Tina e Jerry enfraqueceu-os enquanto conjunto, sufocando os companheiros de Byrne. O fim estava próximo. Ainda tentaram um sopro de comunhão, “Naked”, de 1988, mas o mais fraco álbum deles só serviria para denotar que não tinha mais saída que não a separação de uma das grandes bandas do pop-rock mundial. Os discos, porém, estão aí até hoje, longe de se datarem e donos de alguns dos melhores momentos do que se produziu nos anos 80, a tal “década perdida” – que, aliás, de “perdida” não teve nada em termos de rock. Basta uma audição de “True Stories” para se certificar de que essa história, por mais onírica que tenha sido, é real e muito especial.

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O filme “Histórias Reais” tem, aliás, uma trilha sonora própria, a qual traz temas incidentais. Apenas “Dream Operator”, em versão instrumental arranjada por Philip Glass (“Glass Operator”), se repete, além da faixa “City of Steel”, que é, na verdade, a melodia de “People Like Us”, também só com instrumentos. As outras são de artistas variados, como “Road Song”, da genial Meredith Monk, “Festa para um Rei Negro” (“Olê lê/ Olá lá? Pega no ganzê/ Pega no ganzá...”), com a banda brasileira Eclipse, e a mexicana “Soy de Tejas”, de Steve Jordan, além de seis composições do próprio Byrne que só se encontram em “Sounds From True Stories”.
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FAIXAS:
1. "Love for Sale" – 4:30
2. "Puzzlin' Evidence" – 5:23
3. "Hey Now" – 3:42
4. "Papa Legba" – 5:54
5. "Wild Wild Life" – 3:39
6. "Radio Head" – 3:14
7. "Dream Operator" – 4:39
8. "People Like Us" – 4:26
9. "City of Dreams" – 5:06

todas as canções compostas por David Byrne.

vídeo de "Wild Wild Life" - Talking Heads

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OUÇA O DISCO




quarta-feira, 6 de janeiro de 2016

“Os Oito Odiados”, de Quentin Tarantino (2015)



Quentin Tarantino ataca outra vez. Seu autointitulado oitavo filme “Os Oito Odiados” merece uma rápida reflexão. Pra começar, o diretor volta ao Oeste – que foi retratado em “Django Livre” – e se utiliza de alguns símbolos do gênero, como a música de Ennio Morricone (inferior à de clássicos como as partituras compostas para Sergio Leone) e a utilização do 70 mm Panavison como antigamente, deixando a tela cheia.

Como sempre, Quentin se esforça para subverter os cânones do gênero. Ao invés das pradarias verdejantes dos westerns de John Ford, vemos uma paisagem insólita, coberta de neve, que vai percorrer toda a projeção. Os personagens não estão divididos entre mocinhos e bandidos. Todos são foras-da-lei. Novamente, ele se preocupa em usar o racismo, tão presente em “Django Livre”, e especialmente a misoginia. Samuel L. Jackson é o Major Marquis Warren, caçador de recompensas que carrega os cadáveres, enquanto seu “colega” John Ruth – maravilhosamente interpretado por Kurt Russell – prefere levar os condenados vivos. No caso, a condenada Daisy Domergue (Jennifer Jason Leigh, num daqueles papéis destinados pelo diretor para reavivar carreiras, como realizado com Pam Grier e Robert Forster).

A paisagem insólita e opressiva é um dos elementos da narrativa.
Interessante é que sem querer estragar as inúmeras surpresas que o roteiro em capítulos permite, “Os Oito Odiados” traz no centro de sua trama a figura feminina de Daisy, envolvida numa grande confusão quando os personagens ficam todos isolados em um armazém no meio do nada em Wyoming. Tarantino usa o exíguo espaço como um palco de teatro, onde os personagens vão se apresentando uns aos outros e tudo chega a um clímax muito antes do final. Como ele havia feito em "Bastardos Inglórios", na famosa cena do bar quando os soldados americanos são confrontados por um oficial alemão e tudo termina em carnificina.

Narrando um flashback, o diretor desvenda o mistério e transforma o banho de sangue em uma espécie de anticlímax, quando o espectador fica se perguntando “qual será o ‘coelho’ que ele vai tirar da cartola para resolver a trama?”. Só posso dizer que a justiça é feita. Todos os atores em cena têm seus momentos de brilho. Destaque especial para o veterano Bruce Dern – redescoberto em "Nebraska" - usado como um dos personagens mais reacionários em cena, o General Sandy Smithers, que dizimou uma tropa de negros durante a Guerra de Secessão. Pode-se dizer que Tarantino escalou Dern, um reconhecido rebelde de Hollywood, num papel exatamente o oposto da personalidade do ator. O diretor também coloca em cena seu elenco de preferidos como a dublê Zoe Bell, Michael Madsen e Tim Roth (lembram dele sangrando durante todo “Cães de Aluguel”?).

Russel, de atuação destacada.
O banho de sangue sempre presente em seus filmes ganha um status de quase caricatura em “Os Oito Odiados”. Para resolver o imbróglio, Tarantino faz uma autocitação, usando o prólogo de “Bastardos Inglórios” para introduzir o personagem do galã Chaning Tatum, aqui quase irreconhecível. A fotografia de Robert Richardson, velho companheiro de Tarantino, valoriza cada canto da cabana onde os personagens ficam isolados. A direção de arte consegue recriar o ambiente daqueles armazéns do velho oeste e os efeitos especiais valorizam a violência proposta pelo diretor.

Aqui no Brasil, não há intervalo, como nos Estados Unidos, o que não permite ao espectador um segundo de folga. De uma maneira geral, a crítica não tem gostado de “Os Oito Odiados”, reclamando de sua duração, de passagens dispensáveis no roteiro e dos diálogos nada inspirados. Se um dos trunfos do diretor em trabalhos anteriores era a conversa, sempre afiada, irônica e demolidora, aqui parece ter se estendido em demasia e se utilizado do termo racista “nigger” uma centena de vezes, reforçando o preconceito. Um trabalho menor na filmografia de Quentin Tarantino, “Os Oito Odiados”, mesmo assim merece ser visto.


trechos de "Os Oito Odiados"






terça-feira, 2 de junho de 2015

Caetano Veloso – “Circuladô” (1991)


Considero ‘Circuladô’
um dos momentos mais altos
da produção de Caetano.
É um CD no qual ele retoma
a interessante linha de experimentalismo
do disco ‘Araçá Azul’, de 1973,
harmonizando-o com o cantabile
de suas canções mais pulsivas e singelas”.
Haroldo de Campos




Meu amor por Caetano Veloso resplandecia quando escutei “Circuladô”. Como qualquer brasileiro, hora ou outra ouvia alguma música desse artista baiano por aí. Porém, na infância (época em que já me ligava em música, vale dizer), meu interesse por aquele cara que apresentava um programa que achava meio chato na Globo com o Chico Buarque era menor do que para com as bandas de rock da época, RPMLegião UrbanaTitãs, entre outros. Essas realmente me empolgavam. Fui escutá-lo com atenção e identificação pela primeira vez em 1988 (aos 9), quando meu irmão trouxe para casa um cassete com um dos discos dele, o qual tinha uma sonoridade leve e acústica que me dava condições de perceber com clareza as ricas construções melódicas, o timbre cristalino da voz e a habilidade composicional de Caê. O disco era “Caetano Veloso”, de 1986, feito para o mercado norte-americano que continha coisas de várias épocas de sua obra, como “Trilhos Urbanos”, “Cá Já”, “Terra” e duas versões magníficas em inglês: “Billy Jean” (Michael Jackson) e “Get Out of Town” (Cole Porter). Foi então que percebi: aquilo era, evidentemente, diferenciado. Tinha que passar a ouvi-lo com mais atenção de modo a não correr o risco de perder algo espetacular que se apresentava à minha frente.

E teria perdido mesmo. Apaixonei-me por seu álbum seguinte, “O Estrangeiro”, de 1989, outro fundamental e no qual ele inicia a grande fase da parceria com o Ambitious Lovers Arto Lindsay e com o eclético maestro Jacques Morelembaum. Mas o disco que realmente me fez entrar de vez na órbita de Caetano foi “Circuladô”, de 1991. No momento em que a MTV brasileira se estabelecia como um canal bom e vendável, a indústria musical nacional, claro, se ligou neste filão. Como já ocorria nos Estados Unidos, músicos passaram a produzir com a mente não só na execução das rádios, mas no videoclipe que produziriam para passar na Music Television. Com o antenado Caetano Veloso, não foi diferente. A música de trabalho do álbum estreou na emissora com um ótimo clipe da Conspiração Filmes (com a participação do grupo de teatro Intrépida Trupe), onde o compositor apresentava algo interessantíssimo: quase só voz e percussão durante os versos, com uma guitarra wah-wah de leve ao fundo, explodindo num samba-reggae no refrão com percussões e samples, “Fora da Ordem” trazia a inteligente verborragia político-filosófica de Caetano sobre sua visão discordante – mas ao mesmo tempo poética – da Nova Ordem Mundial, então recentemente anunciada por Bush “pai”: “Eu não espero pelo dia em que todos os homens concordem/ Apenas sei de diversas harmonias bonitas, possíveis sem Juízo Final”, versava Caetano.

“Fora da Ordem”, mesmo sem um ritmo identificável (não é exatamente rock, reggae, funk ou samba) estourou e virou, em pouco tempo, um hit dos mais tocados na MTV. Ao seu final, engenhosas repetições da frase central da letra (“Alguma coisa está fora da ordem/ Fora da Nova Ordem Mundial...”) ditas em outros idiomas que não o português, como francês, japonês, espanhol e inglês, intercalando vozes do cantor e femininas – entre estas, a de Bebel Gilberto. Esta faixa abre o disco, que adquiri na época com grande interesse de descobrir o que mais conteria. Já na primeira audição, o lado A do meu cassete me arrebataria, sensação que se repete até hoje. Isso porque, depois da música que não cansava de rever todos os dias na TV, viria uma sequência de emocionar. A começar pela faixa que traz a ideia central do álbum: “Circuladô de Fulô”, poesia do filólogo, ensaísta e poeta Haroldo de Campos musicado por Caetano com absoluta genialidade. O compositor já exercitava isso desde os anos 60, tendo posto música sobre poemas de Waly Salomão, Torquato Neto, Gregório de Matos, Paulo Leminski, entre outros. Mas essa é sua obra-prima neste sentido. Remetendo ao baião e ao repente do mais embrionário folclore nordestino, ao mesmo tempo traz a dissonância da vanguarda erudita, a polifonia dos motetos populares medievais e um toque da milenar sonoridade oriental. Caetano desliza o poema sobre os sons, cantando linda e tecnicamente os versos que merecem ao menos a reprodução de um trecho: “O povo é o inventalínguas na malícia da maestria no matreiro da maravilha no visgo do improviso/ Tenteando a travessia/ Azeitava o eixo do sol...”. Algo da melhor poesia já escrita em nossa literatura.

O próprio Haroldo de Campos comentou sobre a canção: “Devo destacar que o trabalho que ele fez, ao musicar o fragmento 'Circuladô de Fulô', de minhas 'Galáxias', é particularmente admirável por retratar com fidelidade seu conteúdo. Ele soube restituir-me com extrema sensibilidade o clima do meu poema, que é, todo ele, voltado à celebração da inventividade dos cantadores nordestinos no plano da linguagem e do som, na grande tradição oral dos trovadores medievais”.

Minhas emoções não parariam. De surpresa, a voz adolescente do filho mais velho de Caetano, Moreno Veloso (ainda não o músico profissional que se tornaria) inicia, juntamente a uma orquestra de cordas arranjada por Morelenbaum, uma das mais belas melodias de todo o cancioneiro de seu pai: “Itapuã”. Lírica, graciosa. Impossível não ser tocado todas as vezes que escuto: “Itapuã, o teu sol me queima e o meu verso teima/ Em cantar teu nome/ Teu nome sem fim”, ou: “Abaeté/ Tudo meu e dela/ A lagoa bela sabe, cala e diz/ Eu cantar-te nos constela em ti/ E eu sou feliz.” Ainda mais depois de ter conhecido a praia de Itapuã e ter sentido física e espiritualmente suas “palmas altas”, suas “águas que se movem” e sua “areia branca”, tão “assim: Caymmi”, como dizem os versos.

Igualmente, toca-me fundo “Boas-Vindas”, um samba-de-roda típico da região de onde Caetano vem, o Recôncavo Baiano. Isso porque o artista celebra a renovação da vida com a chegada de seu novo filho, Tom, ainda na barriga (“Lhe damos as boas-vindas, boas-vindas, boas-vindas/ Venha conhecer a vida/ Eu digo que ela é gostosa...”), cantando com a família e amigos (“Minha mãe e eu/ Meus irmãos e eu/ E os pais da sua mãe...”). O eterno companheiro Gilberto Gil, com sua inconfundível batida de violão; o “príncipe” Naná Vasconcelos, na percussão (talking drum, cerâmica e congas); e D. Edith do Prato, tocando, como diz sua alcunha, um prato de cozinha raspado com um talher. Ainda, Moreno, junto com os outros músicos, mantém o ritmo nas palmas, numa verdadeira festa de interior animada ao som de samba rural. Lindíssima.

Dando uma estratégica pausa nessa sequência, a complexa “Ela Ela” carrega um manancial de referências e sensações. Apenas com Caetano à voz e Arto Lindsay na guitarra, é uma verdadeira peça avant-garde. O característico som do instrumento de Arto, com sua afinação diferenciada e em altas distorção e amplificação, cria traços sonoros que se assemelham aos criados por Cage com seu piano preparado, às cordas agudas de Ligeti, às percussões exóticas de Xenakis e aos ruídos eletroacústicos das fitas magnéticas de Stockhausen. Caetano, por sua vez, exercita um arranjo vocal assimétrico e dissonante, o que, junto aos grunhidos da guitarra, formam não uma melodia palpável, mas um corpo sonoro de puro atonalismo. A letra, por sua vez, remete ao modernismo e ao dadaísmo. “Ela Ela”, no entanto, não lembra apenas essas pontes externas. Na própria obra de Caetano ele já visitara os caminhos da vanguarda (e seguiria visitando, haja vista a “doidecafônica” “Doideca”, do disco “Livro”, de 1997, ou “Cantiga de Boi”, de “Noites do Norte”, 2001). Na trilha que compusera para o filme “São Bernardo”, em 1971, nota-se também semelhanças pelo estilo de canto. Igualmente, nas colaborações com Walter Smetak, nas experimentações de “Araçá Azul” (1973) e “Jóia” (1975) e na explosão moderno-nordestina “Triste Bahia”, do memorável disco "Transa", de 1972.

Se “Ela Ela” quebra a emotividade com seu hermetismo, “Santa Clara, Padroeira da Televisão” volta a fazer os olhos marejarem. Numa interessante abordagem sobre a simbologia e a relevância da tevê, Caetano desmistifica a visão preconceituosa geralmente atribuída a esta mídia (“Que a televisão não seja sempre vista/ Como a montra condenada, a fenestra sinistra/ Mas tomada pelo que ela é/ De poesia...”) e, ainda por cima, expõe recordações e impressões pessoais muito belas (“Quando a tarde cai onde o meu pai/ Me fez e me criou/ Ninguém vai saber que cor me dói/ E foi e aqui ficou...”). Coisa de poeta. Ao final, depois de todos os instrumentos calarem, ainda um improvável solo de trompete bem jazzístico.

Viro de lado a minha fita e me deparo com bucolismo e melancolia. É a versão de Caetano para um baião clássico: “Baião da Penha”, em que reduz o compasso festivo do ritmo para criar uma peça extremamente sensível e chorosa. Caetano a canta no mais alto nível técnico apenas acompanhado de seu próprio violão. Em seguida, “Neide Candolina”, talvez a mais pop do disco cujo brilhante arranjo coloca o baixo e a guitarra em segundo plano para destacar o ritmo da bateria, o arranjo de voz criado por Bebel e, principalmente, os samples do mestre Ryuichi Sakamoto, o compositor japonês mais brasileiro da world music. São os efeitos eletrônicos de Sakamoto que dão o direcionamento da canção, que, ao que se nota só pela descrição, é diferenciada e original.

Tanto quanto é a letra de “Neide Candolina”, que homenageia a professora de Língua Portuguesa que Caetano tivera no primário e com a qual me identifico tamanhamente. Isso porque eu também tive minha “Neide Candolina”: professora Berenice Brito, a Berê. O significado de Berê para mim, também homem das letras, é muito parecido dada a importância formativa que ele atribui à sua mestra. Primeiro, o fato de serem duas “pretas chiques”, “lindas” e “elegantes”, ambas ostentando seus cabelos “pixaim Senegal” onde estiverem, seja na “sua suja Salvador” (no caso de Berê, na também emporcalhada Porto Alegre) ou na “Europa” – ainda mais pelo fato de Berê ter um namorado italiano e ir para o Velho Mundo seguidamente. Igualmente, há a parte em que ele diz: “Tem um Gol que ela mesma comprou/ Com o dinheiro que juntou/ Ensinando Português no Central”. Dadas as devidas localidades e modelos, Berê, que ensinou a mesma matéria a mim e a centenas e centenas de alunos gaúchos na Intercap, tendo se aposentado exercendo isso, também tinha um veículo próprio Wolkswagen (um fusca). Afora todas essas coincidências, ainda o exemplo de caráter e cidadania é característico das duas. Se Neide “nunca furou um sinal” por ser uma “preta correta democrata social, racial”, lembro claramente de Berenice fazendo qualquer aluno (mesmo os que se davam bem com ela, como eu) redigir repetidas vezes como tema de casa todo o hino nacional caso ela tivesse percebido um erro na hora de ouvir-nos cantá-lo.

O clima animado é substituído, em seguida, por um de epicismo e contemplação. É “A Terceira Margem do Rio”, outra obra-prima do disco que se trata de, nada mais, nada menos, uma das raras parcerias de Caetano com outro mestre da música brasileira: Milton Nascimento. Encomendada para a trilha sonora do filme homônimo de Nelson Pereira dos Santos, baseado na obra de Guimarães Rosa, carrega a atmosfera rica e densa do escritor tanto na elegante melodia quanto na letra de alto poder poético de Caetano. O que são de bonitos esses versos? “Meio a meio o rio ri/ Por entre as árvores da vida/ O rio riu, ri/ Por sob a risca da canoa/ O rio riu, ri/ O que ninguém jamais olvida/ Ouvi, ouvi, ouvi/ A voz das águas...”. A música, típica composição de Milton, traz seu tom grandioso, muito brasilianista mas quase românico, e isso apenas em violões e percussões (cerâmica, caxixi e cabaça).

Não deixando a bola cair, “O Cu do Mundo”, bossa-nova meio rock com direito a samples e urros da guitarra de Arto, é outras das mais legais do disco. Lembro-me de ouvi-la na antiga (e finada) Ipanema FM e me impressionar com aquela letra indignada e sem papas na língua: “O furto, o estupro, o rapto pútrido/ O fétido sequestro/ O adjetivo esdrúxulo em U/ Onde o cujo faz a curva/ (O cu do mundo, esse nosso sítio)”. A palavra “cu” dita de forma aberta, no título, era uma das primeiras mostras conscientes de libertação da censura que o Brasil recentemente vivia e que descambaria na idiotice desbocada dos Mamonas Assassinas. À medida que as partes vão se repetindo, vão entrando as vozes convidadas: primeiro, de Gilberto Gil e, depois, de Gal Costa, num arranjo vocal precioso que Caetano forjaria de maneira semelhante novamente 19 anos depois na música “Cobra Coral”, quando chamara para dividir os microfones com ele Lulu Santos e Zélia Duncan. Até o jazzista Butch Morris faz uma ponta em “O Cu do Mundo”, com um intenso solo de corneta, certamente contribuição como produtor de Arto, o pernambucano mais norte-americano da world music.

Canção irmã de “Você é Linda” (e de “Você é Minha”, que seria gravada seis anos depois em “Livro”) “Lindeza”, romântica e suave, é realmente muito bela. Juntamente com o violão-base, estão o contrabaixo, as cordas e o piano de Sakamoto, que retorna para finalizar o disco em grande estilo num arranjo criado a seis mãos por ele, Arto e Caetano. Um acorde grave e ressonante do piano desfecha esse disco irrepreensível, resultado de um momento de aperfeiçoamento das técnicas de estúdio (foi gravado no Brasil e em Nova York, onde também foi mixado e masterizado) e de boas parcerias com a permanente criatividade de Caetano. “Circuladô” é tão representativo que passou a servir como referência para outros discos do próprio autor no que se refere à arquitetura de repertório. Além das parecenças que já mencionei durante essa resenha, isso fica evidente ao se fazer ainda outros paralelos, como os começos pop de “Zii et Zie” (2009, com “Perdeu”) e "Abraçaço" (2012, com “A Bossa Nova é Foda”), a musicalização de autores da literatura como tema principal do projeto (“Noites do Norte”, este sobre texto de Joaquim Nabuco) ou a faixa dedicada à indignação político-social (“Haiti”, de “Tropicália 2”, de 1993, e “A Base de Guantánamo”, de “Zii et Zie”).

Quanto a mim, o impacto que “Circuladô” exerceria seria ainda maior. Com apenas 13 anos, fui ao show de sua turnê em Porto Alegre, no antigo Teatro da Ospa, o primeiro que assisti sozinho em minha vida. Claro que eu, negro de classe média e muito jovem, era uma entidade estranha naquele lugar, principalmente considerando aquela Porto Alegre de era Collor em que a maioria dos meus pares ou não se interessava, ou se constrangia em ir ou não tinha condições de ver um espetáculo como aquele. Mas os olhares eram mais de admiração do que de censura. Para mim, foi divertido e emancipador. No entanto, mais do que isso, foi a partir dali que definitivamente me apaixonei pela obra e pelo universo de Caetano. Foi a partir dali que meu amor por ele resplandeceu. Foi a partir dali que tudo virou fulô.

vídeo de "Fora da Ordem", Caetano Veloso

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FAIXAS:
1. Fora da ordem
2. Circuladô de fulô (Caetano Veloso/Haroldo de Campos)
3. Itapuã
4. Boas vindas
5. Ela ela (Veloso/Arto Lindsay)
6. Santa Clara, padroeira da televisão
7. Baião da Penha (Guio de Morais/David Nasser)
8. Neide Candolina
9. A terceira margem do rio (Veloso/Milton Nascimento)
10. O cu do mundo
11, Lindeza

todas as composições de autoria de Caetano Veloso, exceto indicadas.
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OUÇA O DISCO: