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quarta-feira, 8 de novembro de 2017
Música da Cabeça - Programa #32
Uma das definições possíveis para “música” é a de que o músico traça notas em conjunto como que num desenho. Pois essa analogia entre música e figuração vamos ter no Música da Cabeça de hoje num bate-papo muito legal com o ilustrador Guilherme Tesch no quadro “Uma Palavra”. Além disso, claro, os sons que rodearam nossa mente na semana, como Marvin Gaye & Diana Ross, Stevie Wonder, Jamiroquai e Portishead. Pra finalizar, um “Palavra, Lê” com a poesia de Nei Lisboa. Motivos para você não perder não faltam, né? Então, escuta lá hoje, às 21h, na Rádio Elétrica. Produção, apresentação e rabiscos: Daniel Rodrigues.
Ouça: Programa #32
segunda-feira, 7 de novembro de 2016
“Zoravia Bettiol – o lírico e o onírico”, de Zoravia Bettiol - Museu de Arte do Rio Grande do Sul Ado Malagoli (Margs) – Porto Alegre/RS
O belo e moderno autorretrato de 2002 |
“Zoravia faz arte como vive.”
Moacyr Scliar
Mais de um motivo levou Leocádia e eu a irmos a vernissage da exposição
de Zoravia Bettiol no Margs. O
primeiro e mais óbvio é a importância de sua obra para as artes visuais no Rio
Grande do Sul e no Brasil nos últimos 60 anos, tempo o qual está sendo
comemorado juntamente aos 80 de vida da artista admirada por gente como Jorge Amado, Moacyr Scliar, Erico Verissimo, Mário Quintana, Mário Schemberg e o
próprio Vasco Prado, marido por quase três décadas e com quem compartilhara,
inclusive, admiração. Só isso, já justificaria a ida. Mas tem mais. Filha de
Iemanjá assim como Leocádia, a quem conhece e nutre amizade há pelo menos uma
década, Zoravia dedica, entre as 150 obras selecionadas de diversas fases,
técnicas e produções, algumas aos orixás e, obviamente, à Rainha dos Mares. Mas
não para por aí. Justamente uma das obras mais representativas e impactantes da
mostra, uma escultura em ferro fundido de cerca de 1 metro e meio chamada
exatamente de “Iemanjá”, de 1973, é do acervo pessoal de Leocádia, que a cedeu
para a rica exposição “Zoravia Bettiol –
o lírico e o onírico”. Claro que estaríamos lá.
Tal foi nossa surpresa que a referida escultura encontra-se logo na
entrada das quatro salas que compõem a diversa e numerosa seleção feita pelos
curadores Paula Ramos e Paulo Gomes, a qual vasculha as variadas fases
criativas de Zoravia. Há desenhos, pinturas, gravuras, arte têxtil, objetos,
ornatos e joias, além de registros de performances. Disso, resulta uma
impressionante diversidade de técnicas e estilos, as quais Zoravia domina com
naturalidade, sem excetuar seu rigor de perscrutadora voraz e quase obsessiva. Além
da visível liberdade criativa e da utilização das cores, nota-se um exercício
permanente para encontrar a trama certa dos fios, a pincelada mais expressiva,
a textura ideal da impressão. Tudo intenso, em permanente ebulição.
Esse cuidado e labor extremos se notam muito nas xilogravuras, das
especialidades de Zoravia. O detalhismo do desenho se expressa lúdico na Série
“Circo”, de 1967, cujos traços refazem de os cordéis nordestinos,
principalmente na forma das figuras humanas. Na série que versa sobre os
pecados capitais, é possível identificar a textura do tramado da corda, vista
em trabalhos têxteis feitos à base desse material. O lúdico, igualmente, está
presente de maneira incisiva, caso das séries Namorados (1965) e as dedicadas
aos deuses gregos (1965-66/76), onde se nota, aliás, parecença com as imagens
do candomblé – o maravilhoso “Netuno”, tal um preto velho, não deixa dúvida
dessa universalidade. Desta cultura tão brasileira quanto universal, Zoravia
extrai outros trabalhos e séries, como a própria série “Iemanjá” (1973). Sobre
isso, Jorge Amado tem um depoimento sobre Zoravia destacado na mostra: “Como ninguém, Zoravia canta e transmite a
atmosfera desse universo infantil onde o maravilhoso é o cotidiano e onde o
insólito é a terra”.
Há também lindas obras como “Criança Adormecida” (xilo, 1961), em que o
traço do desenho mostra-se rigorosamente estudado na criação final, e “Meias
Amarelas”, da série Romeu e Julieta (1970) A temática sociopolítica, igualmente
forte em toda sua carreira, tem uma das longas paredes da mostra praticamente
dedicadas com exclusividade. “Só o povo pode fazer o novo” (acrílica sobre
madeira, 1984), carrega o espírito do período do clamor pelas Diretas a qual o
Brasil passava naquele então. Visto com o olhar de hoje, em que aquele grito
democrático parece ter perdido significado, lembrei-me dos realistas versos de
Nei Lisboa: “cada povo tem o novo que
merece”.
Adentrando a sala mais ao fundo, depara-se com o que talvez tenha mais
impressionado a mim e até a Leocádia, acredito: o conjunto completo de
xilogravuras para a lenda “A Salamanca do Jarau”, publicada por Simões Lopes
Neto em seu célebre “Lendas do Sul” (1913). Zoravia ilustrou o texto em 1959,
produzindo 27 imagens que estão sendo expostas pela primeira vez em sua
totalidade, acompanhadas por vários – e belos – estudos preparatórios. Cada
imagem é de uma riqueza impressionante. Para mim, que já vi algumas séries
baseadas em obras literárias, como as que Dalí fez para a "Divina Comédia" ou
“Alice no País das Maravilhas”, esta não fica a dever em nada.
Uma exposição de absoluta diversidade, que instiga justamente por isso.
Como bem descreve o texto curatorial: “O
fato é que Zoravia Bettiol, ao contrário de muitos artistas de sua geração,
preocupados com a unidade estilística e fiéis a determinado meio expressivo,
buscou na diversidade parcelas dela mesma. Porém, em cada manifestação, em cada
trabalho, é sempre ela, Zoravia.”
*********
“Zoravia Bettiol – o lírico e o onírico”
onde: Margs - Museu de Arte do Rio Grande do Sul Ado
Malagoli
(Praça da Alfândega, s/n° Centro – Porto Alegre/RS)
quando: até 11 de dezembro, de
terça a domingo, das 10h às 19h
entrada: gratuita
curadoria: Paula Ramos e Paulo
Gomes
Obra da série Namorados. |
Os Deuses Gregos em traços que remetem ao candomblé. |
Netuno imponente sobre as águas |
Estandarte de Oxóssi, da série Iemanjá. |
A belíssima criança adormecida, dos anos 60. |
Sensualidade na obra da série dedicada a Romeu e Julieta. |
Política e causa social em acrílica sobre madeira. |
Uma das mais belas séries, inspirada nos 7 Pecados Capitais, de 1987. |
Zoravia desenhada pelo marido Vasco Prado a traços próximos aos de Picasso. |
Uma das obras de 2005 em que a artista interage com diversas técnicas. |
Capa da impressionante série dedicada à obra de Simões Lopes Neto. |
Mais uma das xilos de A Salamanca do Jarau. |
Outra das gravuras da série inspirada em Simões Lopes Neto. |
As duas filhas de Iemanjá com a escultura em homenagem à orixá. |
por Daniel Rodrigues
quarta-feira, 16 de setembro de 2015
“Filme sobre um Bom Fim”, de Boca Migotto (2014)
Ando escrevendo bastante sobre Porto Alegre e sobre o Bom Fim
especialmente nos últimos tempos. Talvez não seja acaso, pois a considerar os
sentimentos que venho nutrindo pela cidade, mais para mal do que para bem, ter
assistido ao documentário “Filme sobre
um Bom Fim” deve significar alguma coisa. Tanto para bem quanto para mal.
Para bem, porque é um barato conhecer mais da história, identificar-se e ouvir
os depoimentos de quem presenciou e viveu os períodos heroicos do famoso “Bonfa”.
Para mal é que, infelizmente, minhas queixas e decepções se confirmam nas de
outras pessoas – e não qualquer uma, mas as que ajudaram a escrever a biografia
cultural recente da cidade.
Mas comecemos pela parte boa. Dirigido por Boca Migotto, com fotografia
competente de Bruno Polidoro, “Filme...” resgata de forma bastante eficiente a
história do Bom Fim, bairro boêmio (muito mais no passado do que hoje) que, no
final dos anos 60 até o início dos anos 90 – ou seja, percorreu basicamente
toda a época do Regime Militar no Brasil – foi ponto de confluência das mais
ricas manifestações artísticas de Porto Alegre. Numa narrativa tradicional,
cronológica e construída com base em depoimentos de figuras-chave entremeados
de imagens de arquivo e locações coerentes, o filme cumpre muito bem o objetivo
ao qual se presta: evidenciar a importância do bairro enquanto arcabouço de
toda uma cena que, por diversos motivos (nem sempre lógicos), se criou em torno
deste.
Bares lotados na movimentada Osvaldo Aranha dos anos 80. |
Começa de forma bem poética e veneradora ao fazer um paralelo entre o documentário
e o longa “Deu pra ti, Anos 70” (de Nelson Nadotti e Giba Assis Brasil, de
1981) repetindo um plano-sequência em que uma câmera (digital, no atual; Super
8, no antigo), como um ponto-de-vista de um passageiro da janela de um ônibus que
sai do viaduto da Conceição, saindo do Centro da cidade, em direção à
consagrada Osvaldo Aranha, avenida principal do Bom Fim, percorrendo-a de ponta
a ponta. É a partir dessa cena que Migotto constrói toda a genealogia cultural
e sociopolítica que se manifestou ali, desde a época da “Esquina Maldita”, nos
anos 60, até o seu declínio, nos anos 90, quando a pressão imobiliária e a ação
política esvaziaram física e emocionalmente a movimentação em prol da “família
e dos bons costumes”. Aspectos como a delimitação geográfica do bairro, suas
origens e fisionomia arquitetônica dão suporte para, partindo de depoimentos
bastante ricos e bem estruturados, contar como o cinema, o teatro, a música, o
rádio, a boemia e, principalmente, a ação de vários personagens ajudou a criar
uma cena de absoluta democracia e diversidade que chegou ao ápice nos anos 80,
quando a Osvaldo fechava para receber até 5 mil pessoas aos finais de semana.
Todas bebendo, curtindo, andando, trocando (coisas lícitas ou não) e tendo como
ponto principal os bares, tanto os de antigamente (Copa 70, Lola, Escaler,
João) quanto os de ainda hoje (Ocidente, Lancheria do Parque, Mariu’s).
Dessa trajetória, muito legal ver como se deu o surgimento da galera do
cinema (Carlos Gerbase, Giba, Jorge Furtado, Werner Schünemann, Marcos Breda),
embrião da Casa de Cinema de Porto Alegre e do atual cinema gaúcho. As cenas
dos primeiros filmes, “Deu pra ti...”, “Inverno” e meu amado “Verdes Anos”, bem
como o ambiente em que foram filmados, são resgatados de maneira bonita,
mostrando a paixão com a qual se dedicavam a rodá-los, bem como as referências
estéticas novas que trouxeram. Igualmente, passa pelas sessões de cinema nos
saudosos Baltimore e Bristol; pelas funções do teatro: montagem de “Deu pra ti,
Anos 70” (diferente do filme mas quase simultânea a este) e a formação dos
grupos Terreira da Tribo, Vende-se Sonhos e GTI; da rádio: a já saudosa Mary
Mezzari e Mauro Borba falando da Ipanema FM; e da tevê, em que programas revolucionários
como Quizumba e Pra Começo de Conversa, da TVE dirigida por Cândido Norberto,
deram espaço para os roqueiros malucos, bem como para os primeiros trabalhos
jornalísticos e audiovisuais de gente renovadora como Furtado e Eduardo Bueno (Peninha).
Edu K, figura essencial na movimentação cultural da cidade. |
Mas é especialmente legal ver que tudo se construiu a partir da
juventude, motivo pelo qual todos os momentos são muito ligados ao rock, seja o
pop de Nei Lisboa, o rockabilly d’Os Cascavelletes,
o hardcore d’Os Replicantes ou o
pós-punk do De Falla. Nisso, interessante notar a devida reverência à figura de
Edu K como pioneiro e agitador cultural e a liderança de Gerbase não só no
cinema, mas na cena rock. Engraçado e saboroso ouvi-lo dizer que, à época da
formação da banda, notara o desconforto do colega de cinema Giba Assis Brasil,
que não apreciava a barulheira e inaptidão técnica dos Replicantes, inclusive a
de Gerbase com as baquetas. Ele explica: “O
negócio é que eu não queria tocar bateria: eu queria era bater naquilo”.
E a parte ruim? Nada que se refira à qualidade do filme, mas justamente
quanto à conclusão que o próprio levanta: a de que Porto Alegre estagnou
culturalmente. Isso fica claro no final, seja em forma de provocação, como
fizera Peninha desafiando que o provassem que o momento áureo do Bom Fim
significara de fato um “movimento cultural”, seja em depoimentos mais
moderados, nos quais se ouve e/ou se subentende expressões como “estagnação”,
“desdém” e “descontinuidade”. O próprio filme é um exemplo: mesmo sendo um
sucesso garantido de público (a sala estava lotada, o que se repete desde sua
estreia), levou sofridos 10 anos para ser aprovado na lei de incentivo do
município, e isso por causa de muita insistência.
Peninha, ferino e hilário. |
Tristes constatações que, mais tristemente ainda, coferem com as
minhas. E não somente as dos últimos tempos, mas a da real validade de produtos
artísticos porto-alegrenses endeusados aqui mas que, num contexto geral (e no
comparativo com as coisas boas daqui mesmo), são bastante fracas. Carlos
Eduardo Miranda ainda tentar argumentar que bandas como De Falla e Graforréia
Xilarmônica influenciaram o rock brasileiro dos anos 90, porém (e aí se entende
o fundamento da provocação lançada por Peninha), está longe de poder ser
considerado um movimento cultural de sotaque gaúcho. Cabe ao próprio Gordo
Miranda finalizar num depoimento romântico de que, um dia, quiçá, se repita um
momento tão efervescente e interessante na cidade.
Sabemos que não se repetirá.
A Casa de Cinema ganhou relevância nacional e mudou para melhor o
cinema e a televisão brasileira a partir dos anos 90; porém, não formou escola.
Do rock gaúcho, por motivos diferentes, grandes bandas surgiram, mas nenhuma
engatou uma carreira contínua e de real expressão nacional – fora os Engenheiros do Hawaii, que rumaram para longe demais da capital – ou, muito
menos, internacional. Do teatro, a monopolização dos mesmos nomes para, pateticamente,
não apresentarem nada de novo desde aquela época. Só posso concluir que tudo
isso é junção de fatores psicossociais, como falta de antevisão e renovação, pouco-caso
para com o seu semelhante, um sentimento de superioridade intelectual
injustificável e a crise econômica que se arrasta há anos no Estado. Mas tudo,
na verdade, não seria importante se não faltasse de fato um quesito: qualidade.
Ter, tem; mas só em algumas frentes e que não são suficientes para formar algo
que se possa intitular propriamente como porto-alegrense.
No entanto, até as constatações negativas de “Filme...” são méritos do
filme, que não temeu em mostrá-las ou escondê-las num endeusamento pró causa
abordada, como acontece em alguns filmes do gênero (o às vezes parcial “Lóki”,
a respeito do mutante Arnaldo Baptista, ou "O Sal da Terra", que parece não abordar o que realmente deve). O formato clássico de documentário, aliás, é o
mais recomendável quando o próprio tema fala por si como neste caso. Inventar
narrativas “poéticas” ou “modernas” nem sempre é um bom caminho, pois se pode
cair no erro de diluir o principal, que é a história que se está querendo
contar. Menos é mais em documentário. Afora isso, as reveladoras falas de gente
como Juremir Machado da Silva, Polaca, Fiapo Barth, Cikuta, Biba Meira, Luciana
Tomasi e os já citados Nei, Gerbase, Werner, Peninha, Mary, entre outros, são
de grande identificação a quem sempre esteve ligado à cena alternativa de Porto
Alegre de uma forma ou de outra como eu.
Impossível não mencionar que, ainda por cima, assisti à sessão
acompanhado de Leocádia, que nasceu no Bom Fim e morou lá alguns anos da
infância, e na presença da radialista Kátia Suman, com quem já tive momentos
marcantes na minha trajetória como jornalista e ser cultural da cidade, desde quando
a ouvia na Ipanema até momentos presenciais, como no Clube do Ouvinte que
apresentei na rádio, em 1994, ou o Sarau Elétrico, que participei como autor em
2012, em pleno Ocidente. Simbólico, no mínimo.
trailer de "Filme sobre um Bom Fim"
quarta-feira, 2 de setembro de 2015
cotidianas #391 - Ildo e a Porto Alegre que está se indo
Ildo, o garçom mais querido da cidade. |
Não sou um andarilho de Porto Alegre. Já fui, não sou mais. O perímetro
limitador do círculo casa-trabalho ajuda a isso. Mas não SÓ por isso. Cada vez
mais desinteressada consigo, minha cidade vem ficando cada vez mais
desinteressante para os outros. Políticas públicas burras, mal pensadas, não planejadas,
intransigentes e corruptas a acinzentam diariamente. É resultado visível o atraso
econômico, social e cultural a cada meio-fio sem pintura, a cada negócio de
anos que fecha as portas, a cada buraco que aniversaria, a cada reestreia de peça
teatral igual há 30 anos, a cada mão de via pública invertida sem por que. Não
que deixe de circular e ir a lugares, teatros, museus, parques, shows,
restaurantes, bares, etc. Faço; entretanto, em virtude de alguma atração ou
programação prévia. Ir pelo prazer de ir, deriva, raramente.
Essa “desidentidade” que a cidade Porto Alegre (ou seria uma
“des-cidade”?) vem sofrendo de mais de uma década para cá (assim como o Estado
gaúcho, haja vista esse atual governo, a institucionalização do escapismo) com
certeza é o que vem me afastando dela mesma. Adoro suas ruas, sua luminosidade
subtropical, seu céu de azul paralelo 30, a beleza inequívoca de suas gentes, sua
infinita e mal aproveitada capacidade intelectual. No entanto, de lugares,
pontos-chave da urbanidade porto-alegrense, aqueles que são sinônimos e se
confundem com a urbe, poucos se salvaram da despersonalização. Poucos, cabem
nos dedos, mas existem. E a Lancheria do Parque é um deles, graças a Deus.
Por essas coisas que talvez somente Ele possa explicar (se quiseres,
estou aqui de ouvidos atentos, combinado?), estávamos livres Leocádia, Carolina
e eu antes do show de Caetano Veloso e Gilberto Gil, no Araújo Vianna, quase
ali de fronte para a Lancheria. A conclusão foi óbvia: paramos antes na “Lanchéra”
e depois “s’imbora pro show!”. Além do mais, fazia anos que cada um de nós não
voltava lá. Desavisados de que um fato importante ocorreria dali a horas (menos
de 48), sentamos no aperto das mesas e pedimos a um dos garçons mais novos xis
e um balde de suco a preço de um copo cada um, como todo bom frequentador dali
faz.
A emblemática Lancheria, de tão homogeneizada com o Bom Fim, com as
imediações da Redenção, com a cidade de uma forma geral, parece existir ali
desde que éramos ainda a Porto dos Casais (Não é essa a impressão que lhes dá
também?). QG dos alternativos, cozinha dos moradores do bairro, ponto de
encontro e turístico. Circulam ali jovens, velhos, crianças, hippies, punks, rajneeshes e até gente
normal. E todo mundo convive todos os dias, como se o exótico não fosse exótico
aos normais e como se os normais não fossem normais aos exóticos. Ou
vice-versa. Essa naturalidade é tão mais democrática e simbólica do que
qualquer protocultura de CTG nativista, muitas vezes segregadora e sexista. Uma
Porto Alegre que tenta dar certo.
Histórias dali? Eu, como qualquer jovem porto-alegrense e roqueiro,
tenho. Lembro de uma vez que, ainda redigindo meu livro "Anarquia na Passarela", estava com a bíblia punk “Mate-me, por Favor” a tiracolo para
pesquisa. Lá pelas tantas, na mesa com alguns amigos meus, um frequentador, um
cara vestido de forma simples mas com uma expressão nada simples – perturbada,
pra ficar por aqui – vidrou no meu livro e veio até mim pedir-me emprestado
enquanto eu permanecesse ali – e fez isso com toda a educação que podia,
registre-se, até porque era evidente que queria MUITO ler o que desse e não
podia correr o risco de receber de mim uma negativa. Claro que disponibilizei
(não sou louco de negar pra um maluco daqueles!). Enquanto conversava com meus
amigos, de vez em quando percebia o “colega” parar a leitura e virar
devagarzinho não só para mim, mas para todos no bar, como numa panorâmica de
filme de terror que antecede uma cena horripilante. Os olhos vidrados e um
sorriso entre o sarcástico e o psicótico na boca. De arrepiar! Ficava
imaginando e comentando na mesa: “que parte ele deve estar lendo pra ter essa
reação?” Na hora de ir embora, mesmo com certo receio de pedir o volume de
volta, tomei coragem e, em troca, fui até abraçado por ele num esfuziante
agradecimento.
Coisas de Lancheria do Parque.
Pois uma dessas coisas peculiares ocorreu não naquela ida que nós três
fizemos antes do show, mas logo depois. Espetáculo assistido, corações ainda
pulsando, demos passos desnorteados pela Osvaldo Aranha em direção ao HPS pela
quadra da esquerda. Ao passarmos pela Lancheria, brinquei:
- Vamos, então, na Lancheria? – num tom de como não tivéssemos feito
isso a menos de quatro horas.
Já passos adiante da porta de entrada, Leocádia e Carolina param e
respondem:
- Ué, por que não?
Voltamos. Para encerrar a noite com um derradeiro café e acalmar os
ânimos daquele momento glorioso do qual vínhamos. Entramos no mesmo fuzuê de
sempre: muita gente na porta, muita gente na frente do caixa, muita gente nos
corredores estreitos, todo o tipo de gente sentada tomando uma ceva, comendo um
lanche, mandando ver num suco. Nós queríamos um simples café. Já nos bastava.
Naquela mesa lá do fundo, aquela encostada na escadinha que dá para a
cozinha (a mesma em que vi Nei Lisboa certa vez, sozinho e de porre), sentamos
e enxergamos no cardápio a palavra que queríamos encontrar: “Café”. Estava
completo nosso fechamento da noite. Até estranhamos nós, que não voltávamos lá
fazia anos, estarmos ali pela segunda vez no mesmo dia... Quem veio nos
atender? Não o mesmo garçom de horas atrás, mas o Ildo. Ele, que seria dali a
menos de 48 horas o tal fato importante ao qual me referi. Pedi-lhe três cafés
e ele, na sua simpatia de sempre, desculpou-se:
- Puxa, meu amigo, vou ficar te devendo. A essa hora a gente não serve
mais café.
Entreolhamo-nos e, antes de nos esboçarmos frustração, Ildo largou uma
joia:
- Café a essa hora só na Rodoviária!
Sim: em Porto Alegre, cujos atrasos e intransigências não preciso
repetir, café àquelas alturas só mesmo na deslocada Rodoviária. Não falo de uma
desértica madrugada de domingo, mas de um horário antes da meia-noite de uma
agitada sexta-feira. Contudo, não ficamos chateados com o Ildo, afinal, a
própria Lancheria fecharia dali a 15 minutos. De resto, é mais uma nesse poço
que a cidade e seu comércio, por consequência, se meteu. Nem um local de
circulação garantida 24 horas por dia com ali resiste ao empobrecimento social,
econômico e cultural dos melancólicos dias atuais da metrópole gaúcha.
Segurança? Hábito? Invalidade da demanda? Não sei; só sei que saímos com mais
uma desgostosa confirmação da cidade onde vivemos.
Afora isso, Ildo, simpático e espirituoso, nos deu ao menos uma
sensação de acolhimento, mesmo sem os cafés. Tentei argumentar, em vão, e foi
então que ele completou com algo que me marcou. Simbólico por demais o diálogo:
- É que a gente teve aqui mais cedo, e agora só voltamos pra tomar um
cafezinho – disse eu, ao que ele me responde:
- Eu sei que vocês tiveram aqui. Eu conheço todo mundo.
Tinha essa sensação de acolhimento na infância no antigo Naval, no
Mercado Público, sobre o qual já falei noutra crônica. Paulo Naval e Mauro, os
eternos garçons de lá, nos recebiam, desde guris, com esse mesmo espírito
atencioso, honesto e alegre, invariavelmente com brincadeiras comigo ou com meu
pai, com quem ia sempre. Era nítida a percepção de que eles, igualmente a Ildo,
conheciam “todo mundo” que passava por ali. Embora de épocas diferentes em
minha vida, ambos os estabelecimentos carregam o mesmo clima de um lugar que
você entra e se sente bem. Digo sempre que a Lancheria, especificamente, é tão
legal que não tem nada de especial: não há um prato campeão de concurso
gastronômico, uma bebida conhecida da casa, nada suficientemente marcante de
sua cozinha ou geladeiras que justifique tamanha fama. O legal da Lancheria é a
Lancheria. E ponto. A atmosfera; o movimento; a luz branca forte; a permanente
fila do banheiro feminino; a comida indigesta que passa o dia inteiro próximo à
porta que dá pra avenida; a visão da Redença quando se está dentro.
E pessoas como o Ildo, ele, símbolo desse ambiente, desse universo.
Ildo estava, sim, sempre de olho em tudo e sabia quem entrava e quem saía, por
anos a fio, dia a dia. Até que resolveu dignamente recolher de vez o guarda-pó,
o boné e o paninho úmido no armário.
Ildo está indo embora.
Soube pela Carolina, no dia seguinte, que Ildo se despediria da
Lancheria, dos fregueses e amigos no último dia 30 de agosto. Estava explicada
nossa misteriosa segunda ida na noite anterior. Uma comoção bonita na cidade a
fez ganhar quase esquecidas cores de beleza e sinceridade, abafando um pouco o
cinzento cotidiano. Ildo recebeu centenas de pessoas, que foram se despedir dele
num domingo de sol quente em temperatura e afetividade. Mal trabalhou: ficou
ali tirando fotos e selfies, dando
entrevistas, brindando com a cerveja que era acostumado a servir. Recebendo o
destaque que alguém como ele raramente recebe. E que bom que numa época como a
de hoje alguém com ele receba. Vendo a mobilização, uma amiga postou no face
algo como: “às vezes, ainda creio na humanidade”.
Não fui à despedida oficial do Ildo. Nosso último encontro dentro da
Lancheria valeu como uma. Informal, como ele sempre agiu com todos que atendia.
Afinal, não acredito (e é aí que Tu entras, viu, Deus?) que aquele improvável e
até mal explicado retorno nosso à Lancheria, quase à meia-noite, como que
empurrados para retroceder os passos que já dávamos adiante, tenha sido uma
coincidência. Foi algum toque dos deuses do Bom Fim (Scliar, Nêga Lu, Röhnelt, Nico,
Hartlieb), das forças míticas oswaldeiras que nos puseram lá de novo para
sermos atendidos pela derradeira vez por Ildo. Justo por ele entre tantos
garçons. Definitivamente, não era o café que nos aguardava. Era ele, para um
último aperto de mão engendrado pelo destino.
Embora sutil e desavisada, foi uma despedida como a que não pude ter
com Paulo e Mauro do Naval: quando voltei lá, uma nave espacial clean e carioquesada havia aterrissado
sobre o verdadeiro boteco. Mas a Lancheria do Parque permanece lá, orgânica e
resistente. Mesmo sem o querido Ildo. Diferente de lugares como o próprio
Naval, irremediavelmente solapados pela nossa “desidentidade/des-cidade”. Não
sou um andarilho de Porto Alegre; já fui, como disse. Mas bem que vale a pena
às vezes circular, mesmo numa cidade que está se indo a olhos vistos. E pior: sem
a integridade com que Ildo o fez.
segunda-feira, 2 de março de 2015
20 filmes para entender o cinema brasileiro dos anos 80
Enfim, chegamos à terceira e última listagem de filmes brasileiros essenciais para se entender o nosso cinema no final do século XX, terminando com a safra dos 80. Mais do que para com os anos 60 e 70, a década de 80 foi a que mais tive dificuldade de escolher entre tantos títulos que considero fundamentais. Talvez pelo fato de, dos anos 60, embrionários e revolucionários, haver mais clareza quanto ao que hoje é tido como essencial, bem como pela até injusta comparação com os sofridos e minguados anos 70. O fato é que a produção dos 80 vem justificar, justamente, o decréscimo quali e quantitativo da sua década anterior. Tanto é verdade que, com os reflexos visíveis da Abertura Política e já se enxergando a tão sonhada democracia não apenas como uma miragem, os cineastas brasileiros – mesmo com a menos rígida mas ainda existente censura – passam a ter uma até então inédita estrutura através de verba do próprio Governo via Embrafilme.
Foi aí, então, que
os cineastas daqui mostraram o quanto são, de fato, brasileiros. Se
já haviam conseguido, nos 60 e 70, realizações memoráveis sem uma
Atlântida ou Vera Cruz por trás, quando tiveram um tantinho mais
fizeram “chover pra cima”. Desfalcados a maior parte da década
da tempestuosidade de ideias de Glauber Rocha, falecido em 81, além
de Leon Hirszman e Joaquim Pedro de Andrade, também vitimados cedo,
outros cabeças do cinema nacional avançaram em temática, nível
técnico, concepção e apelo com o público. Ironicamente,
entretanto, se os 80 justificaram a baixa dos 70, também herdaram o
inevitável: justo na década que talvez melhor se tenha produzido
para as massas até então, recaiu-lhes a pecha de cinema malfeito e
sem qualidade, motivado, principalmente, pela herança das
famigeradas pornochanchadas, naturalmente desvalorizadas com o
declínio do discurso do Governo Militar – estigma do qual o cinema
nacional tenta se livrar até hoje.
Para além das
comparações, a diversidade do cinema nacional dos 80 é grande. As
abordagens vão desde cinebiografias (pouco vistas até então),
felizes adaptações do teatro para as telas (finalmente!), avanço
do documentário, início da descentralização da produção eixo
Rio-São Paulo e, principalmente, uma maior liberdade de expressão.
Sem o fantasma constante das torturas e perseguições, as histórias
tocavam agora direto nas feridas da ditadura. “Nos nervos, nos
fios”. Ainda deu tempo, inclusive, de tanto Glauber quanto Leon
produzirem as talvez obras-primas de ambos. Diretores surgiam; uns,
despontavam; outros, afirmavam-se. Nesse contexto, sobraram títulos
que, por restringirmos a 20, não puderam entrar na lista, mas que
merecem menção: “Barrela”, “Cidade Oculta”, “A Dama do
Cine Shangai”, “Quilombo”, “Um Trem Pras Estrelas”,
“Gabriela”, “Índia, a Filha do Sol”, “O Romance da
Empregada”, “Inocência”, sem falar nas produções televisivas
de Walter Avancini. Mas, com esses 20 não tem erro: só filmaços.
1 - “A Idade da
Terra”, Glauber Rocha (80) – Poesia total. O último e
criticado filme de Glauber, fábula sobre as possíveis vidas e
mortes de Cristo num Brasil moderno, pode ser visto até como uma
metáfora visionária da morte do cineasta, que, entristecido com o
Brasil e com a recepção a seu filme, sucumbiu um ano depois de
lançá-lo. Esqueça os detratores: “A Idade...” é grande,
potente, cáustico, catártico, altamente filosófico. Um dia será
devidamente reconhecido.
2 - “Os 7
Gatinhos”, Neville D’Almeida (80) – Neville é daqueles
cineastas da “elite intelectual carioca” que só fala besteira e
produz coisas intragáveis e ininteligíveis, mas esse é um acerto
inconteste. Baseado em Nelson Rodrigues, tem o dedo do próprio no
roteiro e, além de trilha com músicas de Roberto e Erasmo, é uma
tragicomédia crítica e consistente à hipocrisia e depravação da
sociedade brasileira. Interpretações (Thelma Reston, Melhor
Coadjuvante em Gramado) e cenas inesquecíveis como a dos
“caralhinhos voadores” e “me chama de contínuo” estão neste
longa referencial.
3 - “O
Beijo no Asfalto”, Bruno Barreto (80) – Outra feliz adaptação
de peça, outra feliz adaptação de Nelson Rodrigues. Essa, no
entanto, deixando de lado a linguagem metafórica e fantástica de
“Os 7 Gatinhos”, investe numa história contada com rigor e
direção segura, apoiada pelas ótimas atuações de todos: Ney,
Tarcisão, Daniel, Torloni, Lídia. Daqueles filmes que, se está
passando na TV, não se fixe por 15 segundos, pois senão acabarás
terminando de assisti-lo inevitavelmente.
4
- “Pixote, A Lei do Mais Fraco”,
Hector Babenco (80) – Babenco chega à maturidade de seu cinema e
faz o até hoje melhor trabalho de sua longa e regular filmografia.
Com ar de documentário, toma forma de um drama realista e trágico,
trazendo à tona mais uma mazela da sociedade brasileira: a
desassitência político-social às crianças e a violência urbana.
O pequeno Fernando, que, ao interpretar Pixote, faz bem dizer ele
mesmo, nos emociona e nos entristece. Marília está num dos papeis
mais espetaculares da história. Indicado ao Globo de Ouro e vencedor
do New
York Film Critics Circle Awards (além de Locarno e San Sebastian), é
considerado dos filmes essenciais dos anos 80 no mundo.
5 - “Eles não
Usam Black Tie”, Leon Hirszman (81) – Como um “Batalha de
Argel” e “Alemanha Ano Zero”, é uma ficção que se mistura
com a realidade, e neste caso, por vários fatores. Adaptação para
o cinema da peça dos anos 50 de Gianfrancesco Guarnieri sobre uma
greve e a repressão política decorrente, transpõe para a realidade
da época do filme, de Abertura Política e ânsia pela democracia,
retratando as greves no ABC Paulista. E ainda: tem o próprio
Guarnieri como ator, que, segundo relatos, codirigiu o filme. Filme
lindo, que remete a Eisenstein e Petri. Música original da peça de
58 de autoria de Adoniran Barbosa. Prêmio do Júri em Veneza.
6 - “Sargento
Getúlio”, Hermano Penna (81) – Pouco lembrado, mas talvez o
melhor filme nacional da década. Adaptação do romance de João
Ubaldo, dá ares de tragédia shakesperiana à história em plenos
sertão e Ditadura Militar. Crítico, poético e altamente literário,
sem deixar o aspecto fílmico de lado, haja vista a fotografia,
cenografia e a arte primorosos. E o que dizer de Lima Duarte, Melhor
Ator em Gramado, Havana e APCA? Ponha sua atuação entre as 20
maiores do cinema mundial sem pestanejar. Ainda levou Melhor Filme e
Crítica em Gramado.
7 - “O Homem
que Virou Suco”, João Batista de Andrade (81) – A forte
atuação de José Dumond (Melhor ator em Gramado, Brasília e
Huelva), mais uma vez espetacular como em “A Hora da Estrela” e
“Morte e Vida Severina”, leva o filme conta a história do poeta
popular, o nordestino Deraldo, quer tenta viver em São Paulo de sua
arte mas é irresponsavelmente confundido com um assassino. Suas
raízes e verdades, então, viram “suco” na grande cidade. Melhor
Filme em Moscou e Nevers.
8 - “Bar
Esperança, O Último que Fecha”, Hugo Carvana (82) – Poético
e divertido, “Bar...” é o típico filme do novo Brasil que se
construía com a Abertura, o que significava transformações
irrefreáveis, como o avanço da modernidade e a morte da antiga
boemia poética. Junto com a companhia Asdrúbal Trouxe o Trambone,
lançou toda a geração de atores que viriam a desembocar na TV
Pirata e afins e no cinema que se constituiu no Brasil na
pós-retomada. Cenas memoráveis, atuações impecáveis, diálogos
idem. Música-tema de Caetano com Gal Costa. Vários prêmios em
Gramado. Uma joia.
9 - “Pra
Frente, Brasil”, Roberto Faria (82) – Tijolaço na cara da
ditadura, que, embora mais branda, ainda se mantinha no governo
Figueiredo. Corajoso e sem dó, evidencia a desumanidade do regime
militar ao contar a história de um homem confundido com um
“subversivo” e que é dura e aleatoriamente torturado, fazendo um
paralelo com o clima festivo da Copa de 70. Primeiramente proibido
pela censura, depois de liberado arrebatou Gramado (Filme e Edição)
e levou prêmio em Berlim, entre outras premiações e indicações.
10 - “Nunca
Fomos Tão Felizes”, Murilo Salles (84) – O letreiro inicial
diz tudo, quando o título do filme se constrói de forma a se
entender “Tão Felizes Nunca Fomos”. Estocada forte na Ditadura,
rodado no último ano do Governo Militar, conta a história de um
filho de um misterioso militante político que é retirado de um
colégio interno para viver temporariamente num moderno e entediante
apartamento. Alto nível técnico. Arrebatou Brasília e prêmio da
Crítica em Gramado.
11 - “Verdes
Anos”, Carlos Gerbase e Giba Assis Brasil (84) – O cinema
gaúcho, encabeçado pela galera da Casa de Cinema, começava nos 80
a mostrar suas qualidades: roteiros tratados literariamente, ares de
cult movie europeu, técnicos competentes e sotaque diferente do
“carioquês” ou “paulistês” que todos eram acostumados a
ouvir no cinema nacional. Um sopro de criatividade que revolucionaria
o audiovisual brasileiro a partir dos anos 90. Tema musical clássico
de Nei Lisboa.
12 - ”Cabra
Marcado para Morrer”, Eduardo Coutinho (84) – Mestre do
documentário mundial, Coutinho não se entregava mesmo quando
parecia impossível. “Cabra...”, um dos maiores filmes do gênero,
é um documentário do documentário. Interrompido em 1964 pelo
governo militar, narra a vida do líder camponês João Pedro
Teixeira e teve suas filmagens retomadas 17 anos depois, introduzindo
na narrativa os porquês da lacuna. Premiado na Alemanha, França,
Cuba, Portugal e Brasil, onde conquistou Gramado e FestRio.
13 - “Memórias
do Cárcere”, Nelson Pereira dos Santos (84) – Prova de que
Nelson Pereira não tinha “perdido a mão” depois de erros e
acertos nos anos 70, se debruça novamente sobre Graciliano Ramos,
mas desta vez não como fizera com seu grande romance, “Vidas
Secas”, mas sobre o próprio escritor quando de sua prisão pelo
Governo Vargas. Um épico que ganhou prêmio da crítica em Cannes.
14 - “A Hora da
Estrela”, Suzana Amaral (85) – Exemplo de como se fazer um
filme pequeno, com baixo orçamento, mas de muito, muito esmero de
roteiro (baseado no forte texto de Clarice Lispector) e cenografia.
Cartaxo interpreta a inocente Macabéa, noutra atuação espetacular
dos anos 80 no cinema mundial, que a fez ganhar Urso de Prata em
Berlim, onde a diretora também ganhou prêmio da crítica. O filme
ainda levou tudo no Festival de Brasília.
15 - “O
Beijo da Mulher Aranha”, Hector Babenco (85) – Uma história
improvável em uma produção brasileiro-americana ainda mais
improvável de dar certo. Mas Babenco, talentoso e sensível, amarra
tudo com maestria. De roteiro primoroso, é mais uma pungente crítica
ao Governo Militar e que tem nas atuações dos estrangeiros John
Hurt e Raul Julia e na dos brasileiros, Lewgoy, Sônia Braga e Milton
Gonçalves sua base. Cannes e Oscar de Ator para Hurt, mas concorreu
também a Filme, Direção e Roteiro na Academia e a Palma de Ouro.
16 - “O Homem
da Capa Preta”, Sérgio Rezende (86) – Na sua longa
filmografia, Rezende se especializou em rodar temas ligados à
história do Brasil. Porém o seu maior acerto é justamente o
primeiro com esta temática. Sobre o controverso político de Duque
de Caxias, Tenório Cavalcanti (Wilker, incrível), é um exemplo a
se seguir de cinebiografias, as quais hoje tanto se fazem mas que
resvalam na superficialidade. Grande vencedor de Gramado.
17 - “O Grande
Mentecapto”, Oswaldo Caldeira (86) – Das melhores comédias
do cinema nacional, filme mineiro que, na linha de “Verdes Anos”,
direcionou a produção a outros Estados que não Rio e SP, e que
sedimentou a geração TV Pirata (Diogo Vilella, LF Guimarães,
Regina Casé) numa história de Fernando Sabino ao mesmo tempo
deliciosa, cômica, poética e aventuresca. Um dos finais de filme
mais bonitos do cinema brasileiro. Trilha do Wagner Tiso marcante.
Melhor Filme pelo júri em Gramado e concorreu em Cuba, Canadá e
EUA.
18 - “Ópera do
Malandro”, Ruy Guerra (86) – Ruy é o cara que sempre
produziu com alto padrão de qualidade desde que surgiu, nos anos 60.
Em “Ópera...”, coprodução da Embrafilme com a França, ele
eleva ainda mais o nível. Numa adaptação da peça de Chico Buarque
(por sua vez, baseada em Brecht e Gay), ele se vale do apoio do amigo
e parceiro não só para os maravilhosos temas musicais como até
para os diálogos. Tiro certeiro. Musical que não te cansa, pois
integra tanto a cenografia às canções que todos os atores se saem
bem cantando.
19 - “Ele, O
Boto”, Walter Lima Jr, (87) – Lenda popular e realidade se
misturam nessa fábula contada com muita poesia sobre a beleza do
imaginário e da sexualidade feminino, tema que Lima Jr. recuperaria
10 anos depois em “A Ostra e o Vento”. Dos primeiros filmes
brasileiros que me arrebataram. Nunca me esqueci da lindeza da
fotografia das cenas noturnas, com a claridade (muito bem
fotografada) da lua na praia. Outra ótima trilha de Tiso.
20 - “Faca de
Dois Gumes”, Murilo Salles (89) – Terminando a década,
Murilo acerta a mão em cheio de novo, desta vez adaptando
Best-seller de Sabino. O resultado é um drama policial potente e não
menos crítico no que se refere ao sistema. Atuações memoráveis de
José Lewgoy, Pedro Vasconcelos e Paulo José, principalmente.
Direção, Fotografia e prêmios técnicos em Gramado, além de Filme
em Natal e Rio.
**********************
Embora goste menos
desses títulos ou até não goste de alguns, acho justo, por uma
questão jornalística e histórica, ao menos citá-los, pois cada um
tem seu grau de importância dentro do período dos anos 60, 70 e 80
que abordamos:
60: “Macunaíma”
(Joaquim Pedro, 69); “Cara a Cara” (Bressane, 67); “A Falecida”
(Leon, 65); “Porto das Caixas” (Saraceni, 62); “Bahia de Todos
os Santos” (Triguerinho, 60); “A Grande Feira” (Pires, 61); “A
Grande Cidade” (Cacá, 66)
70: “A Lira do
Delírio” (Walter Lima. 78); “O Amuleto de Ogum” (Nelson
Pereira, 74); “A Dama da Lotação” (Neville, 78); “Toda Nudez
Será Castigada” (Jabor, 73); “Doramundo” (Tizuka, 78); “A
Rainha Diaba” (Fontoura, 74)
80: “Eu te Amo”
(Jabor, 80); “Eu Sei que Vou te Amar” (Jabor, 86); “Festa”
(Giorgetti, 89); “A Marvada Carne” (Klotzel,
85); “Amor Estranho Amor” (Khouri, 82); “Das Tripas Coração”
(Ana Carolina, 82); “Superoutro” (Navarro, 89); “Bonitinha, mas
Ordinária” (Chediak, 81)
por Daniel Rodrigues
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