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quinta-feira, 15 de junho de 2017

cotidianas #514 - Pílula Surrealista #19



Cumpria bem a sua função na firma. Cordata, fala miúda, solícita e sorridente a todos, mesmo que o arco do sorriso não passasse de determinado ângulo indiscriminadamente. Não por timidez: é que não tinha mais sorriso para oferecer além daquilo. Ninguém exigia mais, entretanto, até porque a maioria
dos colegas da fábrica - escapavam uns dois ou três -  não se prestava a prestar atenção sequer no que ela oferecia dentro das suas limitadas condições faciais e emocionais. Sem formosura, então: descartada. Dos 30 e poucos anos que somava, pelo menos a metade tinha o peso dos mesmos 30. Alguns deles perdera pelo caminho entre idas e vindas do trabalho para casa, da casa pro trabalho. 4 horas para ir, 4 para voltar. Ainda, a prevalência desde cedo da vida escassa camuflava o que talvez ali restasse de beleza, e, como bem se sabe (e ela mesma sabia com tocante aceitação), gente feia não se enturma. Sozinha na sua rotina, batia o ponto desacompanhada e voltava pra casa cheia de gente em volta mas sempre solitária. Depois das segundas 4 horas perdidas daquele dia, estava em casa novamente sozinha, agora, completamente. Nem alívio, nem tristeza. Tudo dependia se ele aparecia. Quando sim, a visita fazia com que pelo menos aquele dia tivesse valido a pena. Sentado no banquinho acomodado permanentemente ao lado do liquinho, pois foi onde que parou desde a primeira vez, o menino africano surgia. O mesmo que ela, um dia assistindo ao noticiário, fez materializar-se ali: pernas juntas, mãos sobre os joelhos, roupa esfarrapada, rosto tristonho, barriga de bicho. A princípio, pareceu-lhe tétrico, visto que o garoto não se movia, mas à medida que ela ia contando-lhe as histórias, sorria e soltava gargalhadas. Daquelas que só criança solta, mesmo as desnutridas e desumanizadas. Não falava nada, somente ria. Eram histórias infantis, histórias de vida dela, coisas que inventava na hora. Tudo os divertia. Não havia o que fosse capaz de romper o cordão que ligava aqueles dois. Ficavam ali, sabe-se lá por quanto tempo, rindo os dois, ela contando histórias, ele a ouvir. A trocarem olhares de cumplicidade, de afeto. Até que uma hora ela caía no sono exausta da lida interminavelmente cíclica. Acordava no dia seguinte com o banquinho já desocupado, decerto desde que a sessão de histórias cessara. Era hora de lavar a cara e arrumar-se para mais um dia de trabalho e indistintos sorrisos pela metade.

Daniel Rodrigues

terça-feira, 13 de junho de 2017

"Toni Erdmann", de Maren Ade (2016)



Tinha tudo para ser um novelão chato e clichê, além de cansativo (bom, isso é um pouco). A forma como "Toni Erdmann", filme da diretora alemã Maren Ade, apresenta elementos muito malucos como um homem fantasiado de monstro peludo de mais de dois metros no  meio de uma festa onde todos os convidados estão nus e ao mesmo tempo consegue ser tão real e pé no chão retratando de maneira extremamente crua o convívio de pai e filha já distantes um do outro é fascinante.
Winfried (Peter Simonischek) é um senhor que gosta de levar a vida com bom humor fazendo brincadeiras que proporcionem o riso nas pessoas. Seu jeito extrovertido fez com que se afastasse de sua filha, Ines (Sandra Hüller), sempre sisuda e extremamente dedicada ao trabalho. Após se afastar, Winfried ressurge na vida de Ines sob o alter-ego de Toni Erdmann, especialista em contar mentiras bem-intencionadas a todos que ela conhece.
É uma obra bem longa, quase três horas de duração, e assisti-lo pode se tornar uma tarefa cansativa. Apesar do ótimo roteiro, o filme tem algumas barrigas, há muito tempo tela mostrando a rotina de trabalho de Ines. Aí o espectador pergunta: é importante que saber disso? Sim, mas não de maneira exagerada. Temos cenas longas de reuniões de negócios e inúmeras festas. Chega ser repetitivo. Algumas cenas poderiam ser cortadas tranquilamente, o que ajudaria muito no ritmo do filme que ali pela metade fica bem arrastado.
Toni e Ines indo para mais uma importante reunião de negócios.
Apesar desta parte arrastada, o filme consegue nos apresentar bem os personagens centrais: a filha viciada em trabalho que esconde suas frustrações e o pai que já se sentindo velho e procurando um sentido para vida, tenta se aproximar. Como Maren Ade nos mostra, a união desses dois personagens, através da solidão de ambos, é apaixonante. Esse relacionamento pai e filha é muito bem trabalhado, mesmo sem muito contato. Com suas diferenças, os dois revelam uma química, um sentimento que por mais que Ines tente esconder, é impossível.é
Em nenhum momento o filme chega a ser piegas, ou meloso. "Toni Erdmann" é bastante real. É algo que você vê no dia a dia, pessoas envolvidas excessivamente com seus trabalhos tentando aparentar estar sempre bem, associando apenas isso à felicidade.
A aproximação pai e filha, na forma como é mostrada, é a melhor parte do filme. Como o pai, agora na figura de Toni, consegue se aproximar de sua filha. É claro que nem sempre esses momentos são lindos como na cena do abraço no parque ou o momento em que eles tocam cantam para uma família humilde que estavam visitando. Temos situações em que o pai é completamente invasivo. Por mais que suas intenções sejam as melhores possíveis, suas atitudes são bem questionáveis. Invadir o apartamento da filha escondido, se intrometer nas baladas que ela vai ou interferir nas reuniões de negócio são exemplos de situações que me colocaram muitas vezes contra o pai.
É uma obra cansativa e parada, mas que quando se chega o final percebe-se que foi compensador. Uma ótima construção de personagens com uma narrativa muito real. Há momentos de fantasia, é verdade, mas a gente sente que a história até seria capaz de acontecer. De repente se amam mas nem sempre as atitudes são acetadas mesmo quando cheias de boas intenções. É da vida o errar e aprender com os erros. O que fica talvez seja que devamos tentar ser um pouco melhores para nós mesmos do nos esforçarmos para ser para os outros.
Eu simplesmente amei essa sequência. Sinta-se livre e me diga que significado você viu nela.




por Vagner Rodrigues


domingo, 11 de junho de 2017