Curta no Facebook

sexta-feira, 4 de agosto de 2017

O puro conteúdo


 Eu era um inexperiente repórter, ainda estagiando no Jornalismo, que trabalhava para a coluna de um jornal de Porto Alegre. O ano era 2003. Às vezes, o editor e colunista me destacava para realizar algumas entrevistas, principalmente as que eram ligadas à música e artes, pois sabia de minhas preferências e que eu as faria com todo gosto. Numa delas, fui designado a entrevistar um distante conhecido chamado Luiz Melodia.

Por conta de um novo show em Porto Alegre, o artista me recebeu numa sala de reuniões do hotel em que estava hospedado, no bairro Moinhos de Vento. Era manhã, e ele, acompanhado de assessoria de imprensa e mais alguns profissionais de produção, já estava gelando-se com uma cerveja, a qual, degustada ali por umas 10h, certamente não tinha sido a primeira do dia. Não sei se por identificação da raça, carisma, se “alegre” por conta do álcool ou simplesmente por uma questão de empatia, nos gostamos imediatamente.

A entrevista foi engraçada. Tinham perguntas fixas de um questionário que eu aplicava, mas a conversa correu tão naturalmente que em nenhuma delas ficamos apenas na resposta pura e simples. Parávamos a cada questão para refletir, conversar, trocar ideias, rir. Ele contava histórias, cantarolava, fazia observações. E eu admirando-o. Lembro que, por exemplo, muito emocionado pela conquista de uma digna representante afro-brasileira, ele comentou sobre a ginasta Daiane dos Santos, que recentemente encantara o mundo todo com seu salto “duplo twist carpado”, o salto Dos Santos, no Campeonato Mundial de Ginástica. Referia-se a ela carinhosamente como “a gauchinha”.

A coisa corria tão amistosamente que parecíamos velhos conhecidos. Ele, por óbvio, não demorou muito a me oferecer uma cerveja. Queria que a conversa se estendesse mais – e regada a bebida, claro. Infelizmente, tive que recusar, pois estava a trabalho. Isso não impediu, entretanto, que nossa identificação se fortalecesse cada vez mais naqueles momentos de entrevista. Parecíamos parentes distantes que nunca tinham se conhecido e festejavam a oportunidade do primeiro encontro.

A assessora de imprensa, a certa altura, já estava meio de cara, pois aquilo, que deveria levar uns 15 minutos, se estendia há quase uma hora. Pensei: “Que se dane!”. Afinal, não é todo dia que se está cara a cara com um dos teus ídolos, com alguém que é uma das tuas referências. Eu estava de frente ao mesmo Luiz Melodia das composições inspiradas, das letras de pura poesia, do domínio total dos mais diferentes estilos musicais, do belo canto anasalado. O Luiz Melodia do Estácio, das maravilhas contemporâneas, do pós-tropicalismo, das negras melodias. Ele, da "Juventude Transviada", do “Forró de Janeiro”, da “Magrelinha”, das “Fadas”, do "Codnome Beija-Flor". O Negro Gato. A Pérola Negra. O Ébano. O maldito. O Mico de Circo.

Ele seguia sorvendo o conteúdo de puro malte em sua taça. Repetiu o convite a mim para que não seguisse bebendo sozinho. Era-lhe incabível que aquele encontro não pudesse ser brindado. Ouvindo minha nova recusa, deu a entender, então, que gostaria de conhecer a noite de Porto Alegre, e que depois do show, que ocorreria naquele dia, poderíamos, aí sim, sem o impedimento do afazer profissional, tomar umas juntos. Trocando em miúdos: encher a cara a noite toda e continuar a conversa entre irmãos. Irmãos de cor e, agora, de alma.

A entrevista acabou – uma hora haveria de acabar, mesmo que não quiséssemos – e o tchau teve um ar de ruptura prematura. Fez-me sentido naquele rápido momento de despedida o olhar melancólico que lhe era característico, o qual jogou sobre mim não sem certa frustração.

Não fui ao show e nem tampouco curti a noite de Porto Alegre ao lado de Luiz Melodia. Sem grana e sem carro, não tinha condições – nem maturidade – para aceitar uma empreitada noturna daquelas. Se hoje, nem pestanejaria, à época, seria impossível. Precisei caminhar um pouco mais atrás da rua pra aquietar. Pra me convencer que aquela madrugada deu em nada, deu em muito, deu em sol. E entender que o tudo que se tem não representa nada, pois tá na cara que o jovem tem seu automóvel. Que o tudo que se tem não representa tudo, e o puro conteúdo é consideração.


LUIZ MELODIA
(1951-2017)



por Daniel Rodrigues

quinta-feira, 3 de agosto de 2017

Meus 10 melhores baixistas de todos os tempos

Não é a primeira vez – nem deve ser a última – que, abismado com alguma lista de supostos “melhores” publicada na imprensa, eu venha aqui por meio do Clyblog manifestar a minha contrariedade. E preferências. O modo de fazê-lo é, no entanto, não apenas criticando, mas montando a minha própria lista em relação àquele mesmo tema. Desta vez, o alvo é uma listagem publicada pela famosa revista de música britânica New Musical Express, que elencou os 40 maiores baixistas de todos os tempos (?!).

De novo, minha ressalva é pelos critérios. Como respeitar uma seleção que não inclui, pelo menos entre os 40, nomes fundamentais do instrumento para o desenvolvimento da música pop como Geddy Lee, do Rush, ou Steve Harris, do Iron Maiden? “Ah, Simon Gallup (The Cure) e Matt Freeman (Rancid) não são ‘dinossauros’ virtuosos”. Mas Krist Novoselic (Nirvana) nem Colin Greenwood (Radiohead) o são – e estão entre os votados. E mais: está lá – por merecimento, diga-se – o jazzista Charles Mingus. Ok, mas, se vai entrar na seara do jazz, da qual diversos músicos são de altíssima qualidade, técnica e influência, como não abarcar os óbvios nomes de Ron Carter, Paul Chambers, Jimmy Garrison, Stanley Clarke, Marcus Mïller e Dave Holland? Ou ainda: em 40, nenhum brasileiro? Nem Dadi, Bi Ribeiro ou Arthur Maia? Num mundo globalizado e conectado como o de hoje, foi-se o tempo em que músicos como eles eram meros desconhecidos de um país de música desimportante para o cenário mundial.

Como dizem por aí: “se não sabe brincar, não desce pro play”! Parece, sinceramente, que a tão consagrada NME não tem gente suficientemente entendedora daquilo que está tratando. As lacunas, sejam pelos critérios tortos, desconhecimento ou até preconceito, comprometem as escolhas largamente. Além disso, a ordem de preferências é bastante questionável. Parece terem optado por contemplarem baixistas de todos os estilos e subgêneros dentro daquilo que se considera música pop e deram “com os burros n’água”. Claro que há acertos, mas muito mais pela obviedade (seriam também loucos de não porem Jaco Pastorius, John Paul Jones, Kim Deal ou John Entwistle), fora que há aberrações como Flea aparecer numa ridícula 22ª posição - a Rolling Stone, em 2011, havia escolhido o baixista do Red Hot Chili Peppers como 2º melhor...

Pois, então, minimamente tentando “corrigir” o que li, monto aqui a minha lista de 10 preferidos do contrabaixo. Toda classificação deste tipo, inclusive a minha, é cabível de julgamento, sei. Porém, ao menos tento, com o conhecimento e gosto que tenho, desfazer algumas injustiças a quem ficou inexplicavelmente mal colocado ou, pior, nem incluso foi. E faço-o com algumas regrinhas: 1) sem ordem de preferência; 2) lançando breves justificativas e; 3) ao final de cada, citando três faixas em que é possível ouvir bons exemplos do estilo, performance e técnica de cada um dos escolhidos.

1 - Peter Hook
Um dos mal colocados da lista da NME, Peter Hook é certamente o baixista da sua geração que melhor desenvolveu sua técnica, tornando-se quase que o principal “riffeiro” do New Order. Entretanto, seu estilo próprio e qualidade já se notam desde o 1º disco da Joy Division. Baixo inteligente, potente e de muita personalidade.

Ouvir: “She’s Lost Control” (Joy Division); "Leave Me Alone" (New Order); “Regret” (New Order)



2 - Ron Carter
Qualquer um que pense em elencar os melhores contrabaixistas de todos os tempos, jamais pode deixar de mencionar o mestre do baixo acústico, cujo toque inconfundível tem inequívoca presença para a história do jazz, da MPB e da música pop moderna. O homem simplesmente tocou no segundo quinteto clássico de Miles Davis, participou da gravação de “Speak No Evil”, do Wayne Shorter, e tocou nos discos “Wave” e “Urubu” de Tom Jobim, pra ficar em três exemplos. Aos 80 anos, Ron Carter é uma lenda vida.

Ouvir: “Blues Farm” (Ron Carter); “O Boto” (com Tom Jobim); “Oliloqui Valley” (com Herbie Hancock)


3 - Flea
O cara parece de outro mundo. Compõe linhas de baixo complexas e não apenas sustenta tal e qual durante os show como o faz improvisando e pulando enlouquecidamente. Vendo Flea no palco, seja na mítica banda punk Fear, no Chili Peppers ou em participações como as com Jane’s Addiction e Porno for Pyros, parece fácil tocar baixo. Como diziam Beavis & Butthead: “Flea detona!”

Faixas: “Sir Psycho Sexy” (Red Hot Chili Peppers); “Pets” (Porno for Pyros); “Ugly as You” (Fear)


4 - Jaco Pastorius
Dos acertos da lista da revista. Afinal, como deixar de fora a maior referência do baixo do jazz contemporâneo? O instrumentista e compositor, presente em gravações clássicas como “Bright Size Life”, de Pat Metheny, e “Hejira”, de Joni Mitchell, equilibra estilo, timbre peculiar e rara habilidade. Como seria diferente vindo de alguém que se diz influenciado (nessa ordem) por James Brown, Beatles, Miles Davis e Stravinsky?

Ouvir: “Birdland” (com Weather Report); “The Chicken” (Jaco Pastorius); “Vampira” (com Pat Metheny)


5 - Geddy Lee
Quando o negócio é power trio, fica difícil desbancar qualquer um dos três no seu instrumento. Caso de Geddy Lee, do Rush. Mas acreditem: ele não está na lista da NME! Pois é: alguém que cria e executa linhas de baixo altamente criativas, de estilo repleto de contrapontos (e ainda toca teclado com o pé ao mesmo tempo), não poderia deixar de ser citado jamais. Pelo menos aqui, não deixou.

Ouvir: “La Villa Strangiato”; “Xanadu”, “Spirit Of The Radio


6 - Les Claypool
Outro dos gigantes do instrumento que não tiveram sua devida relevância na lista da NME (29º apenas). Principal compositor de sua banda, o Primus (outro power trio), Claypool, além disso, é um verdadeiro virtuose, que faz seu baixo soar das formas mais improváveis. Tapping, slap, dedilhado, com arco: pode mandar, que ele manja. Domínio total do instrumento.

Ouvir: “My Name is Mud”; “Tommy The Cat”; “Mr. Krinkle


7 - Simon Gallup
Se Peter Hook aperfeiçoou o baixo da geração pós-punk, colocando-o à frente muitas vezes da sempre priorizada guitarra no conceito harmônico do Joy Division e do New Order, o baixista do The Cure não fica para trás. Dono de estilo muito próprio, seu baixo é uma das assinaturas do grupo. Se a banda de Robert Smith é uma das bandas mais emblemáticas dos anos 80/90 e responsável por vários dos hits que estão no imaginário da música pop, muito se deve às quatro cordas grossas de Gallup.

Ouvir: “Play for Today”; “Fascination Street”; “A Forest


8 - Mark Sandman
Talvez a maior injustiça cometida pela NME – pra não dizer amnésia. Se fosse apenas pela mente compositiva e pelo belo canto, já seria suficiente para Sandman ser lembrado. Mas, além disso, o líder da Morphine, morto em 1999, era um virtuose do baixo capaz de inventar melodias com a elegância do jazz e a pegada o rock. Fora o fato de que seu baixo soava a seu modo, com a afinação totalmente fora do convencional, que ele fazia parecer como se todos os baixos sempre fossem daquele jeito: geniais.

Ouvir: “Buena”; “I'm Free Now”; “Honey White



9 - Bernard Edwards
A Chic tinha na guitarra do genial Nile Rodgers e no vocal feminino e no coro de altíssima afinação uma de suas três principais assinaturas. A terceira era o baixo de Bernard Edwards. O toque suingado e vivo de Edwards é um patrimônio da música norte-americana, fazendo com que a soul disco cheia de estilo e harmonia da banda influenciasse diretamente a sonoridade da música pop dos anos 80 e 90.

Ouvir: "Good Times" (Chic); “Everybody Dance“ (Chic); “Saturday” (com Norma Jean)"



10 - Bootsy Collins
Quando se pensa num contrabaixista tocando com habilidade e alegria, a imagem que vem é a de Bootsy Collins. Ex-integrante das míticas bandas Parliament-Funkadelic e da The J.B.’s, de James Brown, Bootsy é um dos principais responsáveis por estabelecer o modo de tocar baixo na black music. Quem não se lembra dele no videoclipe de “Groove is in the Heart” do Deee-Lite? A NME não lembrou...

Ouvir: “P-Funk (Wants to Get Funked Up)” (com Parliament); “Uncle Jam” (com Funkadelic); “More Peas” (com James Brown & The J.B.'s)



por Daniel Rodrigues
com a colaboração de
Marcelo Bender da Silva
e Ricardo Bolsoni

quarta-feira, 2 de agosto de 2017

cotidianas #520 - "Ao Sol"




 "Jionki Batika Toscany" - Seebauer, Christian

oil on canvas 
Ela foi encontrada!
Quem? A eternidade.
É o mar misturado
Ao sol.

Minha alma imortal,
Cumpre a tua jura
Seja o sol estival
Ou a noite pura.

Pois tu me liberas
Das humanas quimeras,
Dos anseios vãos!
Tu voas então...

— Jamais a esperança.
Sem movimento.
Ciência e paciência,
O suplício é lento.

Que venha a manhã,
Com brasas de satã,
O dever
É vosso ardor.

Ela foi encontrada!
Quem? A eternidade.
É o mar misturado
Ao sol.
***********
"Ao Sol"
Arthur Rimbaud

O Frango Atirador

segunda-feira, 31 de julho de 2017

"Boa Noite, Mamãe", de Severin Fiala e Veronika Franz (2016)



Tenso...
Tenso do início ao fim.
"Boa Noite, Mamãe", prende  a tenção do espectador desde as primeiras passagens em que os irmãos gêmeos Elias e Lukas, no milharal, no túnel, no lago. se confundem e se misturam instigando as primeiras de muitas dúvidas que o filme propõe.
A mais importante destas questões, a central pelo menos, é a que envolve a mãe das crianças, que em seu retorno para casa, depois de uma cirurgia plástica, ainda com ataduras no rosto, parece revelar um comportamento diferente do seu habitual despertando nos meninos a dúvida  de se aquela seria verdadeiramente a pessoa que diz ser, ou seja, sua mãe. Ela, ríspida, rigorosa, impaciente, egoísta, chega mesmo a ignorar um dos gêmeos fazendo com que ambos, revoltados e desconfiados, unam-se mais do que nunca e comecem a conspirar cometendo primeiramente desaforos infantis mas logo passando a pequenas vinganças à mulher que não reconhecem como mãe. Só que à medida que a desconfiança cresce por uma série de pequenos detalhes como a foto escondida da mãe com uma mulher muito parecida com ela, ou a diferença da cor dos olhos da mãe para a "pessoa" que encontra-se na casa, aumenta também a intensidade dos atos de rebeldia dos garotos e de sua investigação em busca da verdade que procuram, culminando na captura, cativeiro e torturas psicológica e física daquela mulher a fim de que confesse não ser quem diz e que revele o paradeiro daquela a quem substitui.
Mas se não é a mãe, quem seria
a mulher por trás daquelas ataduras?
Classificar "Boa Noite, Mamãe" como um filme de terror em função de suas cenas visualmente chocantes, pelo sinistro visual mumiático da mãe ou por uma suposta sobrenaturalidade, seria uma simplificação quase ofensiva para um filme com tamanha qualidade e méritos cinematográficos diversos. As cenas são minuciosamente pensadas, os diálogos econômicos são precisos, a fotografia neutra é irreparável e o roteiro é extremamente bem desenvolvido deixando, propositalmente, uma série de pontas soltas de modo a provocar dúvidas no espectador e deixá-las vivas até o final.
As fotos borradas, o silêncio, o vazio da casa, o isqueiro, à ida á floresta... Por quê a casa esta à venda? Qual a causa da cirurgia plástica? Houve um acidente? Que tipo de acidente? Foi incêndio? Se houve, os meninos têm algo a ver com a causa? Por que então a bronca pelo isqueiro? Sabemos que houve um divórcio, mas por que? Por que, como ela afirma, "as coisas ficaram mais difíceis depois do divorcio"? O que ficou mais "difícil"? O temperamento dos meninos?
Os diretores austríacos Severin Fiala e Veronika Franz até vão nos dando algumas respostas aos poucos, vão nos alimentando com algumas migalhas, é verdade, mas fazem questão de não nos matar a fome. Questões continuam inteligentemente em aberto mantendo nossa tensão e expectativa no nível máximo o tempo todo.
Vi várias manifestações sobre o filme e estas lacunas acabam deixando margem a diversas interpretações e versões não somente sobre o final como mesmo sobre o desenrolar, o desenvolvimento da trama, o que vejo como extremamente positivo ainda que muitas dessas manifestações também tenham sido depreciativas entendendo que o filme teria sido mal feito, mal conduzido ou mal acabado, o que pode-se entender pela acomodação que o cinema norte-americano, que dá tudo mastigadinho, já conseguiu incutir em grande parte do público. "Boa Noite, Mamãe" não dá sustos nem tem reviravoltas mirabolantes, seu pavor vem exatamente de nossa impotência total diante do que está adiante de nós. Perturbador e inquietante, o longa é construído, montado, arquitetado de tal maneira que consegue deixar o espectador desconfortável do início ao fim. Durante pouco mais de uma hora e meia somos tão reféns das crianças quanto aquela mulher que se diz ser sua mãe. E que talvez seja...
A assustadora cumplicidade dos gêmeos e seus misteriosos cochichos.



Cly Reis