Curta no Facebook

quinta-feira, 5 de outubro de 2017

"Tarântula", de Bob Dylan - ed. Planeta / Tusquets Editores (2017)


"olha! como eu tinha te dito, não
importa onde isso está! isso não
existe. o que você precisa saber é onde
isso não está."
trecho de "Tarântula"


O próprio Dylan diz que tudo em sua obra que não puder ser cantado ou que for longo demais para ser um poema, é romance. Apenas uma definição como esta pode ajudar a enquadrar seu primeiro livro, na referida categoria uma vez que "Tarântula", trabalho do cantor, compositor e poeta, não tem exatamente um formato definido. Editado no Brasil pela primeira vez em 1986 e relançado agora impulsionado pelo prêmio Nobel de literatura recebido pelo artista, o primeiro livro de Dylan é um brilhante conjunto de crônicas, prosa, versos e situações cotidianas pintadas sob as cores de um surrealismo repleto de sarcasmo, crítica e poesia. Frases muitas vezes aparentemente sem sentido e desconexas carregam por meio de uma escrita ácida uma visão crítica e ao mesmo tempo bem-humorada de seu país e seus habitantes ("o senador vestido que nem ovelha austríaca. parando prum café & insultando o rábula").
Embora "Tarântula" não seja música, suas linhas, seus capítulos, suas crônicas são extremamente musicais seja pelas menções a clássicos de sua discografia ("tropeça para a luz aqui abraão...  e que tal esse teu patrão? & não me venha com essa que você só cumpre ordens") ou pelo ritmo que consegue proporcionar com aliterações, explorações fonéticas ("broa betty, ébano diabrete ba-ba-blam, ba-ba-blam! bandida, teve um bebê ba-ba-blam! e ponha na roda ba-ba-blam, ba-ba-blam! queime o cara com o café ba-ba-blam..."), sequências de vírgulas ou barras e períodos curtos ("... a boa e velha debie, ela aparece & ela & dale & eles começam a morar nos jornais & jesus quem é que pode culpá-los & Amém & oh deus, & como as paradas não precisam da tua grana baby..."). A obra de Dylan, escrita no auge de seu sucesso e em um momento de transição artística no qual expandia suas possibilidades musicais com o uso de instrumentos elétricos, é exatamente o reflexo de uma mente brilhante em efervescência explorando o máximo de sua capacidade. Não sei se hoje, do auto de sua experiência e maturidade, Dylan escreveria '"Tarântula" da mesma forma, tão descompromissadamente, tão impetuosamente, como que o fizera lá em 1966, mas parece-me que se, por ventura, a voz da razão viesse a intervir hoje em dia nas linhas poderosas com as quais temos o privilégio de nos depararmos neste livro, ele perderia um pouco de seu encanto uma vez que grande parte do que torna a obra tão especial e valiosa é exatamente essa juvenilidade, essa pureza, sua irreverência e subversão. "Tarântula" é Dylan na melhor forma desconstruindo o sonho americano, traçando um retrato da decadência da América, e isso, note-se, no final dos anos 60. As pessoas, seus medos, seus anseios, suas esperanças, seus erros, seus defeitos, colocados pelo artista diante de uma espécie de espelho de Dali, no qual o reflexo pode ser visto mas não da forma que se está acostumado a ver. O que impressiona é quando notamos que muitas vezes essa distorção da imagem é exatamente o que nos permite ver as coisas como realmente são. E esse é o trabalho do poeta. Esse é o trabalho do artista.


Cly Reis

quarta-feira, 4 de outubro de 2017

Música da Cabeça - Programa #27


Aqui no Música da Cabeça é assim: Outubro ou Nada! Para celebrar a entrada do mês mais primaveril do ano, a gente vai, claro, de muita música. E variada, como sempre! Paulinho da Viola, Happy Mondays, João Bosco, Red Hot Chili Peppers e The Police estão na playlist. Também, os quadros ‘Música de Fato’ , ‘Palavra, Lê’ e um ‘Sete-List’ especial ao mês de outubro. Então, não perde, ok? É hoje, às 21h, na Rádio Elétrica. Produção e apresentação: Daniel Rodrigues.



OUÇA: Programa #27

terça-feira, 3 de outubro de 2017

cotidianas #529 - Pílula Surrealista #21



Chovia. Ela, então, decidiu sair à rua com seu guarda-chuva com todas as cores do espectro. Não havia nada o que fazer na rua. Apenas, saiu. A tarde caía, e antes que acontecesse o crepúsculo, o sol, até então desacorçoado, voltou à sua posição para, junto com ela e suas cores, compor um arco-íris.



Daniel Rodrigues

sexta-feira, 29 de setembro de 2017

"Raw", de Julia Ducournau (2016)



Diante de tantos filmes de terror tão iguais e sem bons argumentos, o franco-belga "Raw" consegue se destacar como uma obra que, além de perturbar por seu tema central, suas cenas pesadas, grotescas e chocantes, também o faz por carregar consigo assuntos como maturidade, autodescoberta, feminismo e sexualidade, abordando-os de forma muito engenhosa e inteligente. Justine uma garota vegetariana, pura, virginal, que acaba de entrar na faculdade de veterinária, entre uma série de trotes pesados impostos pelos veteranos, num deles é obrigada a comer rim de coelho. A partir daí seu comportamento transforma-se totalmente, passando não somente a consumir o alimento que até então repudiava como a agir de forma estranha, impulsiva, inconsequente e desmedida. É como se a ingestão da carne tivesse levado embora sua "pureza". Sinto aí uma certa provocação a vegetarianos e veganos mas pode ser apenas impressão minha. Mas fato é que essa iniciação é um dos símbolos interessantes do filme no sentido de uma espécie de "lançamento para a vida", uma vez que o ingresso numa faculdade funciona também simbolicamente como uma etapa de entrada para a vida adulta. Sua visão das coisas aos poucos vai se transformando, sua relação com a irmã já veterana na faculdade também muda, com seu amigo homossexual colega de quarto, seu corpo muda e nela começam a se manifestar desejos... alguns bastante inusitados, diga-se de passagem. A carne funciona como uma volta ao instintivo, ao animal, ao seu "eu" mais puro. É a autodescoberta. É o deixar-se aceitar como é. Só que no caso de Justine, e aí entra o terror, o que ela descobre em si, é absolutamente assustador.
"Raw" não vai lhe dar sustos, não espere por isso, mas pode fazer você desviar o rosto da a tela. A cena em que Justine come o dedo decepado da irmã, por exemplo, é horripilante, repugnante mas ao mesmo tempo sensual e fascinante. Só para que se tenha uma ideia, depois das primeiras exibições nas quais o longa já causara desmaios na plateia, algumas salas de cinema passaram a distribuir sacos de vômitos para os espectadores antes das sessões. Mas é injusto com um filme tão bom, tão bem trabalhado, bem elaborado, lembrá-lo somente por estes tipos de reações. "Raw" é um daqueles filmes de terror nos quais o terror, em si, é quase que somente um detalhe integrante de uma boa ideia cinematográfica.
Podem estar certos que aquilo na mão dela não é uma batata frita
e o vermelho não é catchup.

Cly Reis