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quinta-feira, 31 de março de 2011

cotidianas #74 - Hoje eu vou comer sua bunda


"A bunda é cara da alma do sexo."
Charles Bukowski



D esde aquela noite percebeu que as coisas não seriam tão simples quanto tinham lhe parecido antes. Para satisfazer seu mais novo hábito não poderia simplesmente vestir-se, virar as costas e ir embora. Não, aquilo sempre exigiria alguma medida mais séria. Só que agora que tinha gostado e sabia que ia querer fazer aquilo de novo.
Tudo começou com uma raspadinha de dentes, com um mordiscada no traseiro do rapaz. Adorava bundas, bundas masculinas, as admirava, as desejava, verdadeiramente as cobiçava. Não como a maioria das mulheres com aquela admiração pouco palpável, ou melhor, até palpável porém pouco objetiva. Sim, porque há de se admitir que a fixação do homem pelo traseiro do sexo oposto tem a objetividade da posição, do domínio, do instinto, da voluptosidade da mulher, e de uma eventual e afortunada penetração por trás, ao passo que a da mulher costumeiramente é mais visual, mais contemplativa e, se tanto, se limita no mais das vezes, a não ser em casos mais extremos de taras, sadomasoquismos ou fetiches específicos, a beliscões, tapinhas, circustanciais lambidas e para as mais ousadas ou íntimas, leves dentadinhas às vezes.
Mas ela era diferente. Esta tinha a motivação daquele objeto e normalmente ansiava por um contato mais forte: uma enterrada de unhas nas carnes suculentas, um dedo mais abusado, uma inversão do cachorrinho mesmo sem ter pênis. Ah, se tivesse pênis de vez em quando! O que não faria com aquele macho, ali, de quatro...
Não era insatisfeita com sua condição de fêmea. Adorava ser mulher, adorava ser penetrada, possuída pela frente e por trás, como fosse. Submetida conforme sua vontade, é claro, mas a mera perspectiva de proveito prático daquela posição a seduzia. Suas tentativas de ousadias com dedos quase sempre eram repelidas, salvo raras exceções; tapinhas costumavam ser bem entendidos e correspondidos, tirando uma vez que um desses aí interpretou mal, achou que ela gostava de apanhar, abusou um pouco da força o que a obrigou a chamar por socorro, que por sorte veio logo antes que ele conseguisse lhe aplicar outro soco; mas via de regra sua postura propositiva não era muito bem encarada e costumava intimidar alguns parceiros e até mesmo afastar namorados. Por isso ultimamente resolvera maneirar. Limitava-se mesmo aos beliscos e leves abocanhadas até ver em que terreno estava pisando.
Foi assim com o rapaz que conhecera naquela noite. Danceteria-beijos-mãos-carro-motel e lá estavam os dois nus começando aquele ritual preliminar longo e molhado. Mamilos-nucas-coxas-barrigas-costas e ela consegue deixá-lo deitado de bruços na cama. De joelhos na cama, leva a cabeça até a altura da bunda do rapaz, abre lentamente a boca soltando um bafo quente e ameaçador que ele não vê, só sente o quente da respiração. Dá então uma raspadinha com os dentes de baixo para cima e uma mordiscada de leve na parte mais rechonchuda daquela bela bunda, à que ele parece reagir com um arrepio.
Sem levantar muito a cabeça, ofegante como uma onça, com um aspecto selvagem e mirando o rosto dele pelo espelho, ela então anuncia:
- Hoje eu vou comer a sua bunda!
Ele sem se abalar, sem abrir os olhos, acha graça da exclamação de desejo tipicamente masculina. Ri da piada. Mas a risada é interrompida por um assustador grito de dor. Salta para o lado levando a mão à nádega esquerda. Olha atônito para a mão: sangue!
- Tu é maluca? Tu é maluca? Eu vou te matar, sua vaca! Eu vou te matar! - e em meio à fúria, ainda consegue ficar surpreso ao perceber que ela, inacreditavelmente, está mastigando com prazer e satisfação. Mastigando um pedaço dele. Um naco da sua bunda!
- Sua desgraçada! Ó o que tu fez comigo? – e grita, grita mais alto enquanto ela acaba de engolir o pedaço que tirara daquele corpo delicioso.
Ela, com a cara praticamente toda suja de sangue, continua olhando para ele com um olhar fixo, parado, felino e ameaçador, como quem já sabe que depois de um ato como este não poderá simplesmente vestir-se virar as costas e ir embora. Então sai da cama, abaixa-se tranquilamente, pega um pé do seu scarpin preto, dá dois passos em direção a ele, que diante daquele avanço ameaçador vê trocar sua fúria matadora de segundos atrás pelo acuamento tal qual o de uma criança indefesa, e crava-lhe o salto do sapato entre o pescoço e o ombro.
Ele fica indeciso por um instante entre tentar estender os braços até ela para tentar agarrá-la, ou atender ao sangue que jorra abundante e impiedosamente. Opta, por fim, pela segunda alternativa mas sem efeito. É muito sangue. Perde sangue demais e em pouco tempo lhe faltam totalmente as forças e se esvai o último fio de vida.
Ela então respira fundo, pensa com calma, planeja: aquilo ali é um motel, centenas de pessoas vão lá por dia, se fossem procurar digitais, encontrariam milhares; na boate, no escuro passariam por mais um casal qualquer na noite, na saída não chamariam mais atenção que quaisquer outros; na entrada do motel provavelmente a moça prestara mais atenção ao motorista do que nela. Com sorte não teria chamado muita atenção em nenhuma destas situações. Tratou de recolher qualquer coisa que a identificasse, que pudesse comprometê-la e agora só restava sair dali.

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“HOMEM MORTO EM MOTEL COM MUTILAÇÕES"; ou

“SEXO E BRUTALIDADE EM MOTEL DA CAPITAL”; e ainda,

“HOMEM ENCONTRADO MORTO EM MOTEL SEM PEDAÇO DA NÁDEGA”.

Eram as manchetes principais das páginas policiais dos jornais no dia seguinte. Tudo vago. Em nenhum deles alguma menção mais objetiva à acompanhante. Um dizia “moça bem apresentável”, outro, “mulher não identificada”, outro “garota de programa”, sempre com informações desencontradas quanto ao tipo físico. Parecia que safara-se. O leão-de-chácara da boate dizia ter visto uma morena saindo com o rapaz, a moça da portaria do motel vira uma loira no banco do carona; o flanelinha dizia que era meio coroa; um amigo do rapaz afirmava que não tinha mais de 25; o barman da boate dizia que era bem alta, uma transeunte da madrugada teria visto uma baixinha. A que poderia ser a melhor testemunha, a garçonete do motel que fora chamada no quarto para limpar alguma coisa não conseguira ver ninguém porque a mulher, ou quem quer que fosse, provavelmente estava atrás da porta uma vez que assim que entrara no quarto com a vassoura e o balde, fora golpeada na cabeça e só lembrava de ter acordado horas depois nua. Tinha também um mendigo que a teria visto abandonar um avental e um gorro na rua, estava muito bêbado para se dar crédito para qualquer coisa que dissesse. Bingo! Estava limpa.
Agora aliviada pela impunidade praticamente garantida daquele ato terrível, finalmente conseguia saborear as sensações da noite anterior. O tamanho da sua ousadia, do seu atrevimento, a excitação que aquilo causara. E aquela mordida, daquele jeito, nunca tinha ido tão longe, uma dentadinha vá lá mas cravou-lhe os dentes, tirara um pedaço, e o pior, tinha gostado daquele ato. E a carne, o sangue... E o sabor? Até que não era ruim. Não, não, era bom mesmo. Tinha gostado e sabia que ia querer fazer aquilo de novo.
Sucedeu que começaram a ser encontrados corpos de homens em lugares variados; motéis, casas de praia, de campo, apartamentos, barracos, terrenos baldios; todos eles com um traço em comum: a ausência de pedaço substancioso de nádega. Peritos garantiam que tinham sido arrancados por dentes. Dentes humanos!
A polícia começava a ter pistas daquela curiosa serial-killer e o cerco contra ela se fechava, afinal de contas não era uma profissional, nunca sonhara em ser uma assassina em série - as circunstâncias a fizeram assim - e desta maneira, neófita na prática criminosa cada vez mais cometia erros, deixava traços e tornava-se então uma presa possível e cada vez mais próxima da justiça. Mas não estava exatamente preocupada com isso. Sabia que mais cedo ou mais tarde seria apanhada mas enquanto isso aproveitava o máximo para desenvolver sua tara que agora agregara este caráter assassino.
As autoridades policiais tinham pistas quentes de possíveis locais que frequentava: shopping centers, barzinhos, museus, etc. Tinham a informação de que naquela noite possivelmente estivesse naquela boate badalada da zona sul. Havia pelo menos três detetives à paisana atentos circulando pela boate. Um deles se aproxima do balcão e pergunta ao barman por uma descrição de uma moça, mais ou menos 27 anos, altura média, olhos castanhos, bonita...
- Passa um monte dessas por aqui toda noite, cara! Como é que eu vou saber!
O policial então, meio desapontado, afasta-se do bar e dirige-se ao banheiro meio conformado. Vai dar uma mijada pra planejar uma melhor maneira de encontrar a canibal filha-da-puta.
Enquanto ele se afasta, uma moça bonita de cabelos e olhos castanhos, não muito alta, aproxima-se do bar e dirige-se a um rapaz que está ali parado sozinho tomando uma cerveja:
- Me paga uma bebida?

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