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quarta-feira, 31 de agosto de 2011

cotidianas #101 - Aposta




Atravessava o corredor agora com a maca vazia. O corredor vazio. Vazio e silencioso. Àquelas horas tudo já estava mais calmo, o dia havia sido agitado mas agora tudo o que restava eram as paredes brancas, o avental branco e o lençol branco sobre a maca. Perdera a conta de quantas vezes fizera aquele trajeto durante o dia, na verdade perdera a conta de quantas vezes fizera durante todos aqueles anos. Mas agora estava quase na hora do final do seu expediente e acabara de fazer o último 'carreto' que era como gostava de chamar as remoções. Dirigia-se agora para o elevador; era deixar a maca no subsolo, trocar de roupa e ir pra casa. Os ombros já lhe pesavam, os olhos pesavam...
Apertou o botão. Desce. Aquela hora o elevador vinha rápido. Sabia que ia encontrar ali o João, colega de tantos anos. Gente boa o João.
Chegou. A porta automática se abriu e um longo elevador metálico se apresentava  à sua frente.
- Desce?
- Tu sabe que desce, ô, seu fidaputa - respondeu gracejando e fingindo irritação.
- Então entra duma vez que eu não tenho a noite toda, ô, corninho - retrucou oascensorista no mesmo tom bem-humorado de mau gosto.
Todos os dias era aquela troca de 'gentilezas' características de homens que, talvez para evitar algum sinal de sensibilidade, preferiam ofender-se carinhosa e mutuamente ao invés de demonstrar o afeto que tinham um pelo outro construído ao longo de todo aquele tempo de convivência no trabalho.
- E aí, foi o último, Zé? - quis saber o ascensorista entre um bocejo.
- Se não me aparecer mais ninguém pelos próximos... - parou para olhar o relógio - dez minutos, foi.
- E então, o que que foi o último 'carreto'? - inquiriu agora interessado o ascensorista.
- Me deve cinquenta.
- De novo?
- Haha! - riu zombeteiro o maqueiro José.
- Mas não é possível... Tu deve de saber a informação antes - disse sacando o pagamento do bolso - Toma aí - sentando o dinheiro com força na mão do outro.
- Hehe! - riu-se novamente com gosto o maqueiro enquanto o elevador chegava ao seu andar - Eu só fico sabendo lá na hora. Não tem trampa, não tem trambique.
- Vai lá safado - ordenou o João com falso transtorno - Vai com Deus. Bom descanso - desejou abandonando o falso tom beligerante e adotando um fraternal.
Mas  no momento em que empurrava a maca para fora do elevador, o alto-falante o desapontava com um chamado: "maqueiro José, comparecer ao quarto 811 e levar a paciente à Sala de Parto nº 4, com urgência."
- Ih!
- Sobe? - presumiu obviamente o amigo.
- É, sobe, né... - disse resignado o Zé, recuando com a maca para dentro do elevador - Vou aproveitar pra te tirar mais um trocado, então.
- Agora não. Dessa vez eu ganho.
- Que que vai ser então?
- Pra mim vai ser menino - afirmou o ascensorista com a convicção de ganhador.
- Eu vou continuar nas menina.
- Cinquenta centavos, de novo?
- Cinquenta centavos.
- Oitavo andar. Chegamos. Vai lá, ô, corninho.
- Té depois. Volto aqui pra tu me pagar - ainda disse o maqueiro enquanto saía do elevador já empurrando a maca corredor afora para mais um carreto.



Cly Reis

2 comentários:

  1. Mais uma ótima crônica. Tá formando um livro.

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  2. Muito boa. Retrata bem o cotidiano do trabalhador brasileiro, que mesmo na dureza do trabalho, consegue levar a vida com leveza.Iara.

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