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sábado, 17 de setembro de 2011

cotidianas #104 - O Barroso


Éramos os renegados.
Éramos aqueles que não serviam para os melhores times do bairro ou do colégio, então resolvemos nos juntarmos e fazermos nosso próprio time. De início sem uniforme mesmo. Sem nome. Somente um bando de desprezados juntos. Éramos aqueles com pouca habilidade, pouco trato, dribles parcos e criatividade mínima. Embora dotados de muito interesse e muita paixão pela bola, não havíamos sido contemplados com a benção de seu manejo. Eu um avante tosco; o Cabelo um zagueiro baixo e porra-louca; o Alembér que tinha um bom chute mas não muito mais que isso; o Carlos Henrique rápido mas sem cérebro; o Éderson, um pouco mais habilidoso mas insuficiente; e aí por diante.
Deve-se, contudo, fazer justiça ao nosso goleiro, o Tairone, frequentemente solicitado e pretendido pelos melhores times do bairro e para os torneios mais importantes. Havia treinado no Inter até, mas embora não fosse exatamente baixo, sua estatura mediana não favorecia a pretensões profissionais. Assim, ficava atendendo a diversos timezinhos pelas redondezas. Mas apesar de tanto prestígio e procura, colocando como critério maior a amizade, a camaradagem, a curtição, o Tairone seguia conosco; ao lado dos perdedores. E nosso time começava com ele, que invariavelmente evitava vexames maiores contra o time do Leléco, para o qual sempre perdíamos. O Leléco jogava nas categorias de base do Internacional mas volta e meia, quando não tinha compromisso com o clube, se prestava a juntar-se ao pessoal da Saldanha da Gama para nos humilhar. Os demais não eram lá tudo isso: tinha o Ronaldo que era goleador, o Mad que achava que jogava mais do que realmente jogava e tinha esse apelido por ser a cara do Alfred Newmann da revista MAD; tinha o Testa que até jogava bola mas que sempre queria dar um lençol em qualquer jogada, e alguns outros certamente mais hábeis que nós, mas que sem o ‘craque’ semiprofissional, o Leléco, até seriam possivelmente batíveis.
Mas todo domingo de manhã quando nos encontrávamos no campinho do colégio Caldas Júnior, onde passávamos por um buraco na cerca para jogar, embora enchêssemos-nos de expectativa de que daquela vez o Leléco estaria doente, viajando com a delegação dos juniores do Inter, indisposto, ou qualquer coisa assim, e seria então desta vez mais fácil vencê-los, lá vinha ele com seu andar de boleiro, meio de lado, insolente. Resultado: mais uma goleada. Estávamos convencidos que só um alguma coisa fora do comum, uma nevasca, um furacão, um fenômeno natural poderia nos fazer ganhar a primeira.
Então que numa daquelas manhãs de jogo, no inverno gaúcho, chegamos a ficar em dúvida se deveríamos ou não comparecer ao nosso compromisso dominical, tal era a intensidade da chuva e o frio que fazia. Domingo 8h da manhã, sair de baixo do cobertor pra levar outro ‘arrodião’? A resposta foi 'sim'! A fome falava mais alto.
Chegamos no campinho de terra do colégio e além do frio que era maior do que imaginávamos, as gotas de chuva batiam na pele como pedras, grossas e geladas, mas já que estávamos ali, o melhor que se podia fazer àquelas alturas era rolar o caroço pra se esquentar. As condições adversas nos davam a esperança que alguns deles tivessem desanimado e preferido ficar debaixo dos cobertores e chegassem bem desfalcados, mas para nossa decepção, assim como nós, não tinham resistido ao chamado da bola e todos, inclusive o Leléco, tinham tomado coragem e resolvido ir jogar bola naquele domingo tempestuoso.
Mas naquele dia não adiantou Leléco nem telecotéco. Parecia que a chuva derramava-se sobre nós como uma espécie de mágica e naquela lama toda, era como se nos transformávamos em gigantes. Não chagava a fazer o milagre de nos fazer jogar como Zicos, Sócrates ou Falcões mas nos imbuía de uma coragem e uma raça que até então não conhecíamos em nós mesmos e que surpreendia até o adversário deixando-os um tanto atônitos.
Assim, de forma surpreendente e heroica os gols foram se sucedendo: de cabeça, de falta, com a bola parando na poça, com falha do goleiro, um gol meu de carrinho no lamaçal da pequena área, um dos Henrique driblando meio time, e por fim, um golaço do Alembér do meio da rua, no ângulo. 7x4! Tínhamos vencido! Tínhamos vencido!
A nossa vitória fora tão impressionante pela entrega, pela luta, que o Testa, um dos bons do time deles, provavelmente impressionado pela força coletiva, a partir daquele dia preferiu os mais fracos porém mais apaixonados, do que aquele outro bando de futeboleiros pedantes. O Leléco ainda saiu de campo nos tentando nos zombar, “ganharam uma, hein!”, mas não estávamos nem aí. Sabíamos que a partir daquele momento éramos um time.
Naquela época rolava uma propagando do Conhaque Dreher que duvidava que um jóquei conseguisse ganhar com um cavalo pangaré. O cara olhava para o cavalo e dizia pro jóquei, “quero ver ganhar com esse, Barroso” e no final da propaganda, provavelmente por ter tomado o tal conhaque, o jóquei, o Barroso ria por último. Nós, também desacreditados, tínhamos vencido com nosso pangaré. E naquele barro, então!!! Aí foi inevitável: brincávamos com nossa própria desgraça e triunfo: Éramos o Barroso.
O nome foi mesmo mais folclórico e acabou que durou pouco. Logo achamos a necessidade de ter um nome um pouco mais respeitável, nos levamos mais a sério, nos estruturamos a partir dali, compramos camisetas, tivemos dificuldades de nos firmar com um bando de ruindades, agregamos mais qualidade com o tempo e o Barroso acabou-se transformando na temível Juventus, um time de bairro extremamente competitivo e vencedor como nunca poderia-se imaginar ao ver naquele domingo chuvoso de junho ou julho, aquele bando de guris perebas correndo atrás de uma bola no meio do barro.
Ao voltar pra casa naquela manhã, imundo e enlameado, entrei pela cozinha pra não molhar a casa toda, e enquanto minha avó ralhava comigo pelo estado em que chegava, ouvia no rádio dela que aquela manhã havia sido a mais fria do inverno e uma das mais frias dos últimos tempos na cidade com sensação térmica de 4 ° negativos. Nossa! Não havia sido à toa que tínhamos ganho naquele dia. Não tinha sido uma nevasca, é verdade, nem um furacão tampouco, mas aquele pequeno dilúvio e todo aquele frio naquela manhã de Porto Alegre, não tinha lá sido uma coisa muito comum.



Cly Reis

Um comentário:

  1. Eu ainda era piá no tempo do Barroso, mas ouvi muito se falar deste fatídico jogo. Nos tempos de Juventus, mais crescido e já participante como atleta, presenciei muitas histórias legais também. Mas esta tem o frescor de ser a primeira grande história, e ficou muito bem contada aqui. Show de bola, literalmente.
    Dã.

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