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quinta-feira, 13 de outubro de 2011

cotidianas #108 - O Velho-do-Saco


Minha mãe, quando eu era pequeno, costumava me assustar com aquela história de Velho-do-Saco. Usava este artifício normalmente para me convencer a desistir de alguma peraltice em curso, tipo, ‘desce daí senão vou chamar o Velho do Saco’ ou algo assim. Para a sorte dela, dando mais credibilidade àquela ameaça, havia um homem que passava sempre pela minha rua catando coisas no lixo; um senhor com barba branca desgrenhada e suja , quase calvo, olhar sem vida, corpo magro mas longe de ser raquítico, poderia até se dizer atlético mesmo, e que carregava nas costas um saco de linho imundo e esfarrapado.
Eu muito impressionável naquela época, diante da horripilante ameaça, obedecia  assustado  imaginando que se não fizesse o que minha mãe dizia o mendigo aquele, na primeira oportunidade, me apanharia, me colocaria dentro daquele trapo horrendo e me levaria para algum lugar escuro e assustador. Quanto ao que faria comigo, havia várias hipóteses: minha mãe mesmo dizia, reforçando seu covarde terrorismo infantil, que o velho me levaria para um porão onde me moeria e transformaria em salsicha; entre nós crianças rondava o medo de que nos comesse como um bom almoço na falta de encontrar alguma iguaria gostosa nas latas de lixo; mas conversas também davam conta que na verdade apenas matava as crianças para beber seu sangue e viver para sempre e naquela época já se dizia que ele ia lá pelos  90 anos de idade. O medo se reforçava pelo sumiço, lá na época que eu devia ter uns dez anos, de um menino das redondezas. Falou-se de sequestro, de venda para o exterior, de aliciamento, de pedofilia mas o caso nunca ficou explicado.  Eu nessa idade já não me impressionava (muito) com o tal do velho, mas tenho certeza que muitos pais se utilizaram da circunstância para convencer suas crianças a não falar com estranhos.
O fato é que sempre que passava por ele na rua, primeiro de mãos dadas com a minha mãe, depois crescendo, já sozinho mesmo, tinha uma espécie de calafrio. Mas como minha mãe desde cedo costumou me incumbir de ir ao açougue do Seu Elias buscar bifes, me colocava à prova desde pequeno, pois  aquele era pra mim um momento de terror, no qual eu esperava não topar com o Velho, mas se na pior das hipóteses desse o azar de encontra-lo, prontamente dava um jeito de atravessar a rua.
Mas tudo isso foi naquela época, tinha eu, sei lá,  4 ou 6 anos. Acho que o medo durou mais por causa da aparência realmente  horripilante do velho. O tempo passou, a fase de criança assustável foi-se e hoje os terrorismos da minha mãe são outros: “se não arrumar o quarto não vai ganhar aquele tênis... não vai ter aumento de mesada... vou te tirar esse videogame” e assim por diante.
 O velho vive até hoje. Incrivelmente, mesmo naquela vida de catar em latas, de exposição à chuvas e frios, continua vivo e quase com a mesma aparência daquele tempo. É como se não tivesse envelhecido um dia desde que me lembro dele e ouvia aquelas histórias que cotavam sobre ele. Às vezes ainda o vejo passar lá na frente de casa com seu olhar vazio, andar resoluto e com o mesmo velho saco nas costas, cada dia mais nojento e seboso.
Nessa idade em que me encontro agora, ainda dependente dos pais, volta e meia acabo me sujeitando a servir de mandalhete da minha mãe para compras e tarefas na rua. Ela sabe que eu não gosto muito mas alega que sou mais novo e nunca estou fazendo nada. Creio que se eu ainda acreditasse, por certo, me ameaçaria com a história do Velho-do-Saco, mas como sabe que não cola mais, se limita a me jogar na cara que moro naquela casa, que sou um preguiçoso, um vadio, que só faço comer e dormir e blablablá. Quase sempre contrariado por interromper minha TV ou videogame, respiro fundo, levanto e saio. Às vezes é para buscar tomate, às vezes leite, outras para ir na costureira, às vezes para comprar pão, carne, etc.. Naquele dia me pediu para que comprasse os bifes, o que eu fazia desde que me entendia por gente. Ah, os bifes da minha mãe mereciam o sacrifício. Tá certo que a carne do Seu Elias era extremamente macia, a mãe sempre elogiava, mas o preparo dela fazia valer a pena interromper o meu Messenger pra ir buscar a tal da carne.
 Então fui eu lá ao velho açougue de sempre que ficava mais ou menos a uma quadra de casa. No caminho então deu-se, depois de todos aqueles anos, o meu grande desafio: eu avistara o velho. O Velho-do-Saco vindo na direção contrária do mesmo lado da rua que eu. Poucas vezes o via ultimamente e há muito sequer cruzava com ele na rua. Contnuava com a mesma aparência. Nem lembrava mais da sensação que tinha ao vê-lo mas ela não tardou em manifestar-se. Não vou negar que por um momento me vieram à cabeça os velhos temores de criança, as lendas, os sustos, mas ri de mim mesmo interiormente e tratei de seguir marcha em frente. Já próximo àquele senhor, esbocei mesmo um sorriso, como que tentando ser simpático simbolizando um ‘bom dia’, o que não foi correspondido. Ao cruzar por mim, apeas olhou-me com aqueles olhos fixos e frios e passou caminhando às minhas costas. Dei de ombros, tipo, ‘coitado, é meio trantornado’, mas mal tive tempo de concluir o pensamento e senti uma pancada dura e seca na cabeça, quase no pescoço, e depois disso não vi mais nada. Tudo ficou escuro...
Não tenho noção de quanto tempo depois acordei. Abri os olhos lentamente mesmo com a visão um tanto turva pude notar que estava num espécie de depósito, um porão talvez, escuro, úmido, com gotejamentos por todos os lados, poças pelo chão, um cheiro pesado e correntes penduradas caindo do teto baixo e claustrofóbico. Eu mesmo me encontrava pendurado pelos pulsos na vertical por uma dessas correntes e com os tornozelos unidos por uma corda ou algo do tipo, erguido do chão mais ou menos meio metro. Me debati tentando me soltar, tentando alcançar o chão mas só o que consegui foi fazer tilintar o metal que me prendia. Corri os olhos ao redor e além de uma ratazana e um amontoado de alguma coisa gosmenta num canto, pude notar no outro lado do galpão, de costas, sentado diante de uma bancada, um vulto, um homem... Alguém concentrado em alguma tarefa repetitiva mas que eu não conseguia distinguir. Quem poderia ser? Seria?... Parecendo ter acabado o que fazia tratou de levantar e então virou-se na minha direção, mas a distância e a pouca luminosidade ainda me dificultavam alguma identificação embora tivesse uma pequena desconfiança. Porém ao começar a vir em minha direção, meu pior temor se confirmava: sim, era ele, o Velho-do-Saco. Mas o que fazia ele ali? O que fazia eu ali? O que ele fazia com aquele... cutelo? O que ele fazia com aquele cutelo na mão? Devia ser alguma brincadeira. Alguém querendo me pregar um susto. Só podia ser.
E então ele veio se aproximando, se aproximando cada vez mais até chegar bem perto, perto o suficiente para que eu pudesse sentir seu cheiro nauseabundo. Eu tremia. Estando eu erguido pelas correntes olhava–me de baixo para cima e mirava-me fixamente nos olhos com aquele olhar vazio de sempre .
Eu tremia, tremia, tremia, babava e acho que já tinha feito tudo nas calças. Estava verdadeiramente assustado, aterrorizado, já pensava no pior quando ao fundo, quase à minha direita, uma nesga de luz apareceu de uma porta que se abria. Dela surgiu então a figura Seu Elias!
Seu Elias! Nunca tinha ficado tão feliz em vê-lo! Por certo minha mãe devia ter dito a ele que sumira quando ia ao seu estabelecimento, ele tratara de descobrir para onde o maníaco me levara e viera me salvar. Eu estava salvo!
Mas minha felicidade se transformou em perplexidade quando ele se dirigiu ao velho e falou:
- Era esse que tu queria pegar há tempo? Haha – riu, maligno e completou - Tá crescidinho esse, hein. Olha aqui, ó, o sangue pode ficar pra tu, agora anda logo com isso que a carne tá acabando e eu preciso cortar mais bifes.



Cly Reis

Um comentário:

  1. Que estória inquietante! No inicio parecia uma análise do efeito dos artíficios usados pelas mães, geralmente, para assustar ou para se fazer obedecer através do medo incutido na criança.Mas a estória enveredou para uma coisa mais assustadora, que me fez lembrar o açougue do horror, que existiu em Porto Alegre, no inicio do século passado. Iara.

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